sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Atualizando Cândido - I I


CÂNDIDO OU O OTIMISMO, de François-Marie Arouet - Voltaire (1694-1798)

Cândido e Sua Própria Institucionalização

"Existe um único Aparelho (repressivo) de Estado, enquanto que existe uma pluralidade de Aparelhos Ideológicos de Estado." (Louis Althusser)

"Eis que o senhor é o apoio, o sustento, o defensor, o herói dos búlgaros; sua fortuna está feita, e sua glória, assegurada."

"Imediatamente, põem-lhe correntes nos pés e levam-no ao regimento. Fazem-no virar à direita, à esquerda, levantar a vareta, baixar a vareta, deitar sobre o rosto, atirar, dobrar a marcha e dão-lhe trinta cacetadas; no dia seguinte, faz o exercício um pouco menos mal, e só recebe vinte cacetadas; no terceiro dia, só lhe dão dez, e é visto pelos colegas como um prodígio." (Voltaire)

O Homem 'moderno' de mentalidade mediana e sua lide com o Aparelho Ideólogico da Informação (Classificação de L. Althusser), ou...


"O Bombeiro Big Brother"


Após quarenta minutos aguardando uma mesa, o casal finalmente se acomoda e pede duas refeições ao garçon da única lanchonete daquele centro de convenções. Aquela hora, em que o dia ia na metade e o calor era toruturante sob toda a extensão da lage mal cuidada, repleta de fissuras e infiltrações, a jovem, filha do senhor pálido e franzino que a acompanha, acomoda várias sacolas contendo portfólios e lembranças do congresso em uma cadeira e olha o movimento das pessoas em volta. Quando seus pedidos chegam ela ainda se encontra distraída com o ambiente, se pondo a comer de forma autômata.

Um homem que observava o casal percebeu imediatamente quando o senhor pálido principiou a ficar cinzento, suas pernas ficaram frouxas debaixo da mesa, seus braços se distenderam sobre ela e sua cabeça pendeu para frente, quase caindo sobre o prato trivial. A jovem nada notara. O homem se aproxima deles e alerta a moça para o estado do seu acompanhante. Por momentos, ela se desorienta completamente.

Com a atenção despertada pelo alvoroço que se formou ao redor do casal, um garçon sai correndo em busca de ajuda. Eis que a mesma se encontra a poucos metros do local, andando vagarosamente sobre uma velha passadeira vermelha e puída; um par de bombeiros. O garçon relata o fato, seus gestos são nervosos, em verdade, ele tem pressa de que seja dado um destino àquele homem, afinal, as várias, muitas, mais de mil pessoas que circulavam por alí poderiam pensar que a comida fizera mal.

Agora, os mais de mil pares de olhos vagam entre os bombeiros e o homem com seu ataque: ansiosos. Impacientes.

O mais alto deles, com quase dois metros de altura, moreno, vestindo uma camiseta vemelha colada ao corpo, cujas mangas dobradas imitam o estilo baby look e evidenciam os bíceps trabalhados, se mostra inteiramente consciente de sua sensualidade. Olha em volta a fim de saber se a assistência também estava consciente dela. Caminha muito, mas muito lentamente, tentanto tranformar os trinta metros de passadeira que o separava do local de atendimento do caso em pelo menos trinta quilometros de fama temporária. Seu parceiro, mirrado, opaco às vistas do 'grande público', o segue na mesma irritante velocidade, sem deixar de olhar ao redor.

Enquanto isso, o homem do ataque verte saliva misturada a restos de comida, dentro prato.

Ao se aproximarem, o bombeiro mais alto toma o pulso do homem e olha ao redor, se certificando de que estava sendo observado. Perscruta a artéria jugular e olha ao redor. Levanta a cabeça do homem para desobstruir sua garganta cheia de saliva e comida e olha ao redor. Olha ao redor novamente, noutra direção, e retira da bolsa que traz amarrada na cintura e na coxa um estetoscópio e um tensiômetro. Desenrola o tensiômetro e olha ao redor. Instala o tensiômetro no braço do homem e... Adivinhem... Olha ao redor. Coloca o estetoscópio no pescoço, e todos já sabiam que ele olharia ao redor. Estica o tubo do estetoscópio, tal carícia fálica e, olha ao redor. Pôe as olivas nos ouvidos e olha ao redor. Leva o diafragma ao peito do homem sem tirar os olhos da platéia. Compenetra-se na auscuta dos batimentos cardíacos, por instantes, só o tempo necessário para não se esquecer do público, e o agracia novamente com seu fascinante olhar de candidato a herói.

É impossível não detectar nele os cacoetes de estrelismo, aprendidos e reproduzidos ao melhor modo dos 'Cães de Pavlov', o que faz dos procedimentos de primeiros socorros um 'sucesso', mas o paciente se vê obrigado a tocar a campaninha dos portões do céu, enquanto os que estão ao redor olham a vontade.

Jeanne Chaves