quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

In Corpore Sano



A meretriz
é feliz
na matriz
por um triz
cicatriz.
O vigário
faz bis
Corpus Christi
de giz
orando
ninguém diz.


Jeanne Chaves

sábado, 10 de dezembro de 2011

10º Mandamento da Democracia Representativa



Não mentirás a ti mesmo acreditando que existem pessoas acima da lei, há eleitores aquém da justiça, e togas não lustram o banco dos réus.



Jeanne Chaves

9º Mandamento da Democracia Representativa



Se algum político te disser: se não puderes viver, morre; mata-o na primeira chance, porque em verdade tu já terás morrido.



Jeanne Chaves

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

8º Mandamento da Democracia Representativa




Nunca te coloques em situação de dever favores a políticos e nem lhes faça favores, eles não distinguem a diferença entre o valor da tua lealdade e o preço da tua alma, se isto acontecer condenarás muitos à danação terrena.



Jeanne Chaves

7º Mandamento da Democracia Representativa




Se os teus amigos e inimigos tiverem como princípio de vida a mais valia, não votes nos partidos deles.




Jeanne Chaves

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

6º Mandamento da Democracia Representativa




Não mistures teu pensamento livre ao de eleitores que têm experiência extracorpórea em ídolos da mídia e em santos, mas caso alguma tragédia como violência, doença, desabrigo, miséria e morte os assole, ajuda-o nesse instante, eles terão se lembrado que a vida real dói.




Jeanne Chaves

5º Mandamento da Democracia Representativa




Lembra-te que indivíduos tiranos e Estados tiranos nem sempre o são pela força, mas por todo pensamento deles posto na tua boca.




Jeanne Chaves

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

3º Mandamento da Democracia Representativa




Na política, jamais acredite que alguém te faria um bem que não fizesse a si primeiro.





Jeanne Chaves

4º Mandamento da Democracia Representativa




Desconfia dos que fazem discursos pela tua paz; quem é da paz não pode ser da justiça e cordeiros não caçam lobos.



Jeanne Chaves

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

2º Mandamento da Democracia Representativa




Lembra-te que a verdade é abstrata, que a mentira é sofista, que uma medida de mentira e outra de verdade constroem uma democracia, e aquele que não discerne entre ambas, é vítima de si mesmo.




Jeanne Chaves

1º Mandamento da Democracia Representativa




Não dês ao poder o teu silêncio para que ele não o use como máscara.



Jeanne Chaves

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Estado de Crise





Sempre por último, uma esperança socialista vem como revés da falência.



Jeanne Chaves

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Semibreves



Daqui a nada
te canto
em notas
esfiapadas
olhos nos olhos
perdida do lado
haverá música
debaixo das folhas.


Jeanne Chaves


domingo, 27 de novembro de 2011

$ancto $anctuorum




* 
*su*
*mir*
*sumir*
*consumir*
*consumirconsumir*
*consumirconsumirconsumir*
*consumirconsumirconsumirconsumir*
*consumirconsumirconsumirconsumir*
*consumirconsumirconsumirconsumirconsumir*
*consumirconsumirconsumirconsumirconsumir*
*consumirconsummirconsumirconsumir*
sumir
sumir
sumir
sumir
sumir



Jeanne Chaves

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O Velho




Do que lhe pese
nos dias postos
quando a glória
miséria e idéia
seca se esquiva
ao plano da flor

do que lhe reste
em ditados gastos
na pouca memória
- como outrora -
somente durasse
a vontade da cor.


Jeanne Chaves

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Combinação Zero - Jeanne Chaves



A extinção de todas as éticas construídas para a convivência entre os povos os faz auto-suficientes do seu desaparecimento.



A água lodosa e pútrida lhe envolvia o corpo. Tudo aconteceu muito rápido depois da forte turbulência que pôs em pane os instrumentos de navegação do pequeno avião a jato e ele começou a cair aos solavancos, quebrando bruscamente a resistência do ar ao longo de vinte mil pés de altitude, enquanto uma densa tempestade elétrica iluminava a vasta escuridão que unia céu e terra transformando tudo em um único imenso vazio. Quando finalmente colidiram com a superfície, ela já havia perdido os sentidos.



Arrastando-se para fora daquela água pesada onde nada poderia adquirir o poder de flutuar, deitou-se de costas para abrandar a ardência dos ferimentos pelo corpo e esperar o nascer do dia, sem saber que não o veria surgir por trás daquele caldo pantanoso e do ar negro, nunca.


Ao longe, à luz dos raios, divisou sombras de elevações que ora se assemelhavam a cordilheira, ora a uma cidade de arranha-céus espetando a noite. Não se lembrava de quanto tempo passou lutando para permanecer à tona, agarrando-se em objetos irreconhecíveis e viscosos que semi flutuavam. Diante do terror que a imobilizava, o mau cheiro do lugar encontrava quase nenhum impacto, e assim, deixou-se ficar imóvel, respirando apenas pequenas porções do ar pernicioso, até que desfaleceu no sono.


Abriu os olhos ao sentir no rosto o toque de uma pequena mão surpreendentemente forte. A mão tentava lhe abrir a boca e ela pôs-se de pé, empurrando para o mais longe possível aquela criança, e depois, tentando recuperar a calma, perguntou que lugar era aquele e onde poderia encontrar ajuda para procurar os demais passageiros e tripulantes do jato. O garoto, como se também temesse, e usando de uma agressividade desproposital, respondeu em um idioma que ela nunca ouvira, mistura de castelhano, inglês, mandarim, árabe e outras inflexões guturais que pareciam palavras de um dialeto, fluindo em uma torrente incompreensível, contudo, ela entendeu que recebia ordens para acompanhá-lo.


Durante a caminhada que fazia sempre à frente do garoto, tropeçava em coisas que não distinguia, era como se o chão se movesse por sobre uma superfície dura. Os contornos das elevações que viu antes de adormecer foram ficando mais definidos na medida em que se aproximavam, eram altos prédios, dos quais nenhuma luz emanava pelas janelas e cuja distribuição das estruturas no espaço, daquela distância, não permitia perceber ruas de acesso, nada as iluminava, nenhum farol de um carro. Parecia um enorme túmulo dentro de outro túmulo. A fumaça que envolvia tudo fazia os olhos dela lacrimejarem. Outro tipo de medo a tomou depois de pensar que não sobreviveria ao pouso desastroso do avião, o medo por ter sobrevivido.


Olhou para trás no exato momento em que um relâmpago despejava sua luz branca sobre o breu e a fumaça, então percebeu que o garoto que a incitava a andar tinha cerca de um metro e quarenta de altura, e à exceção dos óculos a protegê-lo da fumaça, estava nu, exibindo um falo descomunal. Não era uma criança e também, não era homem.


***

Um gosto horrível espalhava-se pela sua boca, vindo das profundezas do estômago, o qual, nas três horas entre o encontro com o seu guia bizarro e aquele chão indeciso, tivera que tentar esvaziar por diversas vezes.


Tomando-lhe a frente aquela pessoa fez com que parasse, gesticulando para que ela ficasse ali e começou a se afastar lentamente, olhando de vez em quando para se certificar que a ordem fora entendida, depois ela ouviu passos ligeiros de quem corre a toda velocidade. Deixando-se cair, quase em alívio, pois tinha a esperança de que o seu salvador tivesse ido à busca de ajuda, apalpou o chão onde estava sentada e dele recolheu e jogou fora novamente uma variedade de lixo, papéis úmidos, embalagens, componentes que um dia tinham feito parte de uma máquina inteira, e pensou consigo que se tivesse morrido, seus méritos como ser humano garantiram-lhe apenas o inferno.


Sabia que estava à beira da histeria e pôs-se a andar marcando os passos, para cada dez de ida, um pensamento, para cada dez de volta, outro.


Um, dois, três... Fabrice, que nesta hora...


Tentou ler as horas no pequeno e sofisticado relógio de pulso sem marcadores fosforescentes, não viu nada, estaria preso no trânsito, telefonando para ela e justificando o atraso...


Nove, dez. Um, dois...


- Eu disse bonsais, bonsais! Como diabos você foi entender bromélias? Leve isto daqui e me traga bonsais, não quero um jardim semi-árido.


E a reclamação malcriada do paisagista.


- Seu gosto me deixa inseguro, senhora, farei o que pede, mas que isto fique em segredo de morte e eu não assinarei o projeto!...


Um, dois, três, quatro...

O resultado dos exames de sua mãe depois de última sessão de rádio terapia...

Um, dois...


Concentrou-se no retorno apressado do seu acompanhante, juntamente com mais três iguais a ele.


Eles a cercaram, o mais alto deles, vestido com uma túnica de ráfia e mais nada, a empurrou rudemente, eles precisavam correr.


Correram cerca de vinte minutos no meio do que parecia uma avenida, pequenos grupos de dez ou quinze pessoas tentavam impedir a progressão deles e eram repelidos violentamente com pedaços de pau.


O mais alto deles se antecipou na corrida e virando em uma esquina parou na frente de um prédio de dois andares, empurrando estrondosamente a porta dupla de madeira pesada. Sentindo o oxigênio faltar completamente, na soleira da porta, sua visão turvou e ela tombou desacordada. Eles a arrastaram para dentro e trancaram a porta com travessas de ferro. Depois acertaram entre eles os turnos de vigília. Dali a algumas horas tudo ficou em silêncio, mas ela não ouviu.


***

Ao ser aberta, a porta do cubículo rangeu nas dobradiças e uma tênue luz de lanterna a querosene penetrou a escuridão.


Deitada no chão de pedra, em posição fetal, ela viu um par de botas pretas desgastadas de cano alto, o homem usava uma capa de couro escuro e uma espécie de máscara para respirar que deixava oculto o seu rosto, e apenas a fronte alta e os cabelos louros à mostra.


Fechando a porta atrás de si, caminhou até ela e a pôs de pé quase com gentileza. Olhou-a de cima a baixo sem dizer uma única palavra, nem parecia sentir repugnância por sua aparência imunda.


Ela ensaiou algumas perguntas, mas ele fez sinal para que calasse. Caminharam por um corredor úmido e opressivo até desembocar em uma sala espaçosa, onde uma lareira ardia alimentada de lixo e fornecia a única luz do ambiente, e onde doze daquelas criaturas pareciam esperá-los.


Uns estavam completamente nus, outros resguardavam o recato com trapos, fêmeas, ao que ela pode ver. Umas velhas, outras apesar de possuírem quase a mesma estatura, eram ainda muito jovens. Não tinham pelos sobre a pele olivácea e os olhos eram muito grandes e arredondados, como os de animais noturnos.


Uma das fêmeas se aproximou bradando aquele idioma incompreensível e o homem de botas a fez baixar a cabeça. A fêmea não queria que os olhasse.

O homem deu uma ordem e o grupo que a resgatou na praia saiu, voltando logo em seguida com várias caixas contendo alimentos, medicamentos e água. Depois, ele a algemou e saíram do prédio, então ela compreendeu que havia sido produto de uma troca.


A carroça que usaram para chegar ao outro lado da ilha era puxada por quatro daqueles seres. Pelas ruas, eram observados com curiosidade, mas algo lhe dizia que ninguém ousaria nada contra a autoridade daquele homem. Quando chegaram ao prédio que parecia ser um hospital, ele pagou com antibióticos pelo serviço de transporte, ao que os seres agradeceram com uma reverência.




Dentro do prédio havia luz e o ar era refrigerado, com energia fornecida por enormes geradores instalados no subsolo, como ela descobriria mais tarde. Um assistente de aspecto idiotizado veio recebê-los à porta. Logo ela foi encaminhada para uma espécie de câmara de descontaminação, na qual a água que saia do chuveiro tinha cheiro de produtos químicos e fez queimar os ferimentos dos quais agora ela se dava conta. Um dos pulsos, onde estava o relógio inútil, pois as horas haviam parado de correr, estava fraturado. Tinha escoriações nos braços e no rosto, havia lama misturada a sangue coagulado dentro dos ferimentos, alguns voltaram a sangrar.


Assustou-se ao perceber a volta do assistente para lhe trazer um pijama e tentou esconder a nudez, mas ele parecia não fazer caso do seu embaraço, apenas pendurou as peças de roupa num cabide da parede e saiu.


No consultório, sobre uma mesa de mogno, havia uma bandeja com comida e água, nos primeiros goles, sentiu a garganta doer, engasgando até quase sufocar.


O homem das botas, agora sem máscara, recomendou em inglês, que ela tomasse a água devagar e do mesmo modo, fizesse com a sopa. Quando ela terminou de comer o que conseguiu, ele tratou dos ferimentos dela, aplicou-lhe antibióticos e colheu amostras de sangue.


- Que lugar é esse?


- O término do fim - Ele se limitou a responder.


- Como o termino do fim? Que resposta é essa? Aqui há de ser algum lugar!


- Era, mas não está mais no mapa.


- Pode me falar alguma coisa coerente, por favor? As pessoas que viajavam comigo, onde estão?


- Quantas eram?


- Cinco.


- O Presidente ordenou a formação de um grupo de busca, mas só trabalharão quando chegar combustível para o barco.


- E quando vai ser isso?


- Garanto-lhe que eu gostaria que fosse o mais breve possível, a chance de sobrevivência no nosso mar é nenhuma, e se tiver alguém vivo quanto mais o tempo passa menores as chances dele e nossas de algum aproveitamento.


- Aproveitamento de quê?


- Das suas vidas.


- Quando eu vou falar com o Presidente?


- Não vai.


- Está bem. Eu quero um telefone, um computador, qualquer coisa de onde eu possa me comunicar com o meu país.


- Lamento, não há nada disso aqui.


- Como não? Como fazem para falar com o mundo lá fora?


- Não falamos, não existe outro mundo lá fora.


- Você é louco ou quer me enlouquecer... O que são aquelas criaturas?


- São pessoas.


- Pessoas? Parecem animais!


- Como você, elas são sobreviventes.


- Sobreviventes de quê? Houve um grande cataclismo e eu não estava na janela para ver?


- Mais ou menos isto. Eles são sobreviventes de si mesmos.


- E você?


- Sou igual a eles e igual a você. Como se chama?


- Laira.


- Me chame de Doc.


- Como soube que eu estava lá naquele lugar horrível?


- Eles vieram me avisar.


- Você me negociou?


- Você não estava sequestrada, apenas não tinha utilidade para eles.


- Como você é frio!


- Objetivo! Não existe caridade onde o dinheiro não circula. Eles não poderiam manter você. Acabaria perecendo nas ruas e virando combustível de fornos de cremação.


- Não usam dinheiro aqui?


- Não.


- Porque não?


- Não há trabalho, não há produção, o dinheiro é dispensável.


- O que vale aqui?


- Estar vivo.


- E considera isto vida?


- Enquanto houver um único Ser com os sistemas funcionando, os instintos de sobrevivência atuarão sobre ele.


- Não! Isto não existe! É um pesadelo, já vou acordar!


- Quando fizer isto, não haverá dias, suas janelas se abrirão para ruas cobertas de lixo e para um céu de fumaça, únicas formas de proteger a nós e o solo dos raios ultravioleta.


- Nada cresce aqui?


- Só a população e o desespero.


- Você disse que não há trabalho, não há produção... De onde vem a comida, a água e os remédios?


- Por ora, chega de perguntas!


O arremedo de cortesia com o qual ele a tratara até então foi interrompido de forma incisiva e cortante, não lhe deixando alternativa ao não ser acompanhar o assistente débil que veio buscá-la como atendendo a um chamado inaudível, então ela foi levada a um quarto sem janelas, cujas portas travavam eletronicamente.


Chegavam ruídos através das paredes, passos ocasionais no corredor que tinha portas iguais à sua; ar, como se aspirado e soprado por uma máquina, e um estalido grave e breve a intervalos regulares. Estes sons se repetiam como obedecendo a uma escala musical para os mesmos instrumentos, mas que tocavam em tempos diferentes. Havia uma imperceptível variação de altura entre eles, como se estivessem relativamente distantes um do outro. Um barulho de fogos de artifício a zunir no espaço sem, contudo, estourar a espoleta, era constante. Descargas elétricas a propulsionar um motor que imaginou ser de um elevador, embora não tivesse visto nenhum da entrada do edifício até o consultório de Doc. Embutida entre essas vibrações havia outro som que sua óptica determinou como sendo... Música!


“Que droga de lugar era aquele? Quem eram aquelas pessoas? O que havia acontecido com elas? Com aquele lugar? Estava evidente a preparação do edifício para evitar fugas. Portas e janelas eram blindadas. Nenhuma placa sinalizadora nos corredores nem nas portas.”


Apesar da educação do médico, era óbvio que ele não se sentia na obrigação de fornecer nenhuma explicação mais contundente e pensou que não era porque ele não quisesse dá-las, mas talvez, diante das circunstâncias, e se fosse ela uma prisioneira, as explicações não fossem necessárias.

***

Decorreu muito tempo, não sabia precisar quantas horas, até que o assistente veio lhe aplicar uma injeção.

- Que dia é hoje? Que horas são?

Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, dando a entender que não compreendia.


- Doc... Preciso falar com Doc!


Depois de várias tentativas, de todas as palavras que ele pronunciou, ela entendeu apenas ‘en otra parte’, mas foi preciso segurar-lhe a mandíbula para forçar um ritmo mais lento na pronúncia das palavras. A expressão dele estava entre a demência e a diversão, mas ambas, delineadas por certa ingenuidade, dessas que se percebe nos filhotes de cães, Como se lhe faltasse faculdades adultas da espirituosidade e prevenção.

Um, dois, três...


Pense!...


Sete, oito, nove...


Pense!


Tinha de haver um jeito de sair daquele lugar...


Um, dois...

Não há outro mundo lá fora...


Sete, oito, nove...

Não há outro mundo lá fora...


Nove, dez...


As pessoas que estavam no jato...


Um, dois, três...

Desconhecidas...


Seis, sete...


Tinha que saber o destino delas...


Dez, um, dois...


Deviam ter família...


Sete, oito, nove...


Isto vem primeiro...


Quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez...


Sentou-se na cama e se distraiu a tentar se apoderar da intimidade de todos aqueles sons de fontes invisíveis. Não sabia, mas todos os seus sentidos se apuravam para a sobrevivência.

‘Música! Ainda tem gente viva aqui.’


***

Uma enfermeira trocava seus curativos enquanto a porta aberta do quarto exalava o cheiro forte de anti-sépticos. Ela realizava as tarefas com uma precisão automática. O rosto impassível e senil contraiu-se na testa ao verificar a temperatura de Laira. O filete de mercúrio tinha parado de subir no bulbo, e marcava trinta e oito graus.


Sem que houvesse percebido, Doc acompanhava os procedimentos do outro lado do corredor. Ele se aproximou e tomou o termômetro das mãos da enfermeira passando a lhe dar ordens, as quais ela saiu para atender.


- Você está com uma infecção.


- Bom dia, Doc!


- Desculpe-me, bom dia!


- Isto que dizer que não terei alta.


- Não se apresse, não há para onde ir.


- Eu mereço algumas explicações! Há alguns dias eu estava viajando para fechar um grande negócio no Oriente Médio e agora estou aqui, dentro do que parece ser um hospício, cercada de criaturas dementes e com você me dizendo que não há para onde ir. Porque faz isso comigo? O que eu lhe fiz? Onde estão os outros?


- Venha comigo!


Ela o acompanhou, observando mais detalhadamente o caminho. O prédio era velho, as paredes espessas revestidas de azulejo branco, a iluminação era deficiente nos dois lados, o consultório, ficava no corredor oposto ao que ao quarto que ela ocupava, delimitando-os, havia um portão de grades onde uma escada que descia se perdia no vão escuro. Ela notou a ausência dos movimentos normais de um hospital.


O consultório se parecia a uma sala de estar, tinha um jogo de poltronas de encosto alto à frente da mesa de mogno, dois sofás de desenho futurista, um à frente do outro, separados por um centro que sustentava um vaso de porcelana com flores artificiais. Atrás da mesa de mogno, quatro prateleiras, protegidas por vidro, iam do chão ao teto, exibindo instrumentos rudimentares de medicina. As duas do meio se apoiavam sobre pequenas rodas e eram unidas às da extremidade por fitas de dobradiças.


Ele apontou uma das poltronas e acomodou-se ao lado dela, na outra, e ela achou se tratar de um artifício para que ela não o olhasse diretamente.


- O que fazia no lugar de onde veio?


Ele perguntou com voz suave, como se realmente, desejasse aquela conversa.


- Trabalho para uma companhia exploradora de petróleo. As pessoas que viajavam comigo... Onde estão?


- Eram suas amigas?


- Porque está usando o verbo no tempo passado?


- Elas foram resgatadas. Mortas.


- Quando?


- A última, uma mulher, foi resgatada ontem.


- Onde elas estão?


- No necrotério.


- Quanto à sua pergunta; não eram meus amigos, a mulher representaria um agente financeiro, os outros dois eram os advogados da fusão que a minha empresa faria com a outra.


A notícia roubou de forma definitiva a possibilidade de preservação do vínculo que ainda julgava existir entre esse mundo e a sua vida conhecida e normal.


- Doc, me mande de volta!


- Não há como!


- Não insista nisso! Se nós chegamos até aqui, há um caminho de volta!


- Entenda, para mim é tão estranho ter você aqui, falando de um mundo que não existe mais quanto é para você essa existência num mundo derivado do que havia.


- Há quanto tempo estou aqui?


- Quinze ciclos.


- O que isto quer dizer?


- Quer dizer que a maré subiu duas vezes e desceu duas vezes em um intervalo de vinte e quatro horas vezes quinze.


- Então por que você não diz quinze dias?


- Por que não há luminosidade do dia, nem da lua. As rotinas são desnecessárias, por isso, as horas não têm importância.


Ela começou a chorar baixinho.


- Está me dizendo que estou presa numa morte pior que a morte?


Ele levantou-se, como se apanhado de surpresa por aquela expressão de emotividade.


- Alguém decidiu lhe dar uma escolha.


Falou de costas para ela.


- Quais escolhas?


- Viver assim, ou morrer completamente.


- Quem me deu?


- Eu.


- As escolhas que me dá são cruéis!


- São as que eu disponho para mim e para você.


- E se eu decidir morrer?


- Pode sair pela porta da frente, ou cometer suicídio.


- Você não me ajudaria nisso, não é?


- Não.


- Se eu decidir viver?


- Viveria aqui, e seguiria regras.


- Leve-me ao necrotério. Quero ver aquelas pessoas!


Ele a conduziu de volta pelo corredor, antes de descerem a escada que ela viu descendo a escuridão por trás das grades, lhe entregou uma máscara para respirar.


-A descida é longa, vamos devagar. Tente respirar compassadamente.


Na medida em que desciam, o ar ia se tornando mais frio e pesado, até que eles chegaram a uma cripta iluminada por lanternas de emergência. O piso, as paredes e o teto eram de pedra escura. A atmosfera recendia a necrose e formol. Os corpos estavam dispostos sobre mesas de pedra que formavam seis fileiras de oito, todas ocupadas, alguns corpos estavam no chão, descobertos. Havia muitas crianças entre eles.


Um homem de pele escura de olhar alucinado parou de manusear um cadáver e veio até eles manifestando surpresa, como se a presença de estranhos ali fosse algo incomum, no entanto, parecia à vontade com Doc.


- Ele está dizendo que à exceção da mulher, todos os outros corpos já foram incinerados. Quer vê-la?


- Sim. - Disse hesitante, lutando para não desmaiar.


A mulher estava em uma maca e como os demais, despida. Uma parte do seu rosto estava destruída por ferimentos e queimaduras, o restante do corpo tinha mutilações horríveis. Laira não conseguiu mais olhar, apenas, pediu entre soluços, que lhe fosse entregue a aliança de casamento que brilhava no dedo anular da mão esquerda, parcialmente íntegra.


Percebendo que ela desmaiaria Doc a segurou pelos ombros e a levou a uma sala contígua ao necrotério, onde eram feitas as incinerações, de lá, saíram por uma grande porta escotilha.


Caminhavam em um aclive suave para fora do prédio. No exterior, o terreno arenoso vinha aos seus pés em meio à bruma fumarenta. O percurso de volta até a enfermaria do hospital era mais longo, porém, menos desgastante. Laira pode ver, encravada em uma colina, uma casa com as luzes acesas.


- Você mora ali?


- Não fale, caminhe.


Suas vozes saiam abafadas pelas máscaras e eles não trocaram mais palavras até ela desabar na cama. Doc saiu e voltou com a enfermeira. Ela lhe aplicou uma injeção e antes que terminasse todo o conteúdo da seringa, Laira já estava sonolenta e confusa.


- Quando você vem? - Perguntou a Doc.


- Amanhã.

***

domingo, 16 de outubro de 2011

A Combinação Zero (Cont.) - Jeanne Chaves





- Engraçado... Parece que faz mais tempo do que o amanhã que você disse.

Doc colocou uma bandeja com medicamentos e ataduras ao lado dela, na cama, sem se importar com aquela saudação, mas também não disse que ela havia passado três ciclos, sedada.

- Como se sente?

- Com menos dores e menos febril.

- Do que se lembra?

- Do necrotério. Aquilo parece uma fábrica.

- Mas é uma fábrica. Parte da combustão dos corpos abastece de energia o hospital. Se a vida exige uma proficiência, a morte a exige também.

- Meu Deus!... Comece!

- O que?

- Conte-me que raio aconteceu aqui!

- Não sei de muitas coisas, sei que elas são assim desde que abri os olhos para esse mundo. Muitas informações se perderam em si mesmas e nos arquivos virtualizados. Tudo o que sabemos nos é passado de geração a geração. Meu pai me dizia que seu avô lhe contava que haviam nações distribuídas sobre os continentes e que cada uma delas tinha seu próprio idioma. Cada uma delas tinha suas próprias formas de sustentação do povo, mas então, as adaptações requeridas para que chegasse a esse nível de progresso negou-lhes o privilégio de progredir mais. A intelectualidade das civilizações ficou presa a produção e ao dispêndio. Um ciclo que nunca fechava. A queda foi paulatina e bárbara. O que temos aqui são os resquícios, pessoas que vivem para ver a sua própria morte, como os ciclopes dos mitos de uma extinta civilização.

- Vocês podem ver o dia em que vão morrer?

- Ter certeza, é como ver.

Doc lhe falava ao mesmo tempo em que realizava exames físicos, a blusa do pijama, levantada nas costas enquanto a auscultava, revelava uma pele morena com o arcabouço ósseo saliente sob ela. Os olhos, clareados por uma lanterna, verdes e viçosos. A boca larga, de lábios finos, escorada por uma arcada dentária branca e regular, estava ressecada, os cabelos igualmente, e tão embaraçados que não deixavam ver o seu tamanho natural, chegavam ao meio das costas.

- Onde você estudou, Doc?

- O tempo todo aqui. Meu pai e minha mãe me ensinaram tudo.

- Onde eles estão agora?

- A expectativa de vida aqui é bem limitada. Ambos mortos.

- Por que você não é igual aos outros? Digo; sua aparência não é como a deles...

- Bons genes, água e oxigênio limpos, alimentação... São meus privilégios para estar aqui.

- Você trabalha para poder respirar?

- Trabalho porque para fazer o que eu faço é necessário que eu respire, existem pessoas acima de mim das quais preciso cuidar, senão, esse equilíbrio se perde.

- Essa é toda a sua relação de trabalho?

- Essas são minhas relações de vida.

Ele terminou o exame e a troca de curativos. As mãos enlaçadas atrás das costas, parado na soleira da porta, ele ia se despedir.

- Eu quero ir lá fora

- Se quer encontrar alguma esperança, ela estará subindo por chaminés.

- Não acredito em você! Não acredito em ninguém que me algeme e me mantenha presa!

- Peço desculpa pelas algemas, mas eu não tinha como saber se você pertencia a algum clã rebelde, e quanto ao que você acha que é uma prisão, asseguro-lhe que está passando por uma quarentena. Ainda não temos como saber se está infectada por algum vírus ou bactéria letal produzidos nos inúmeros laboratórios clandestinos que existem. Os rebeldes já usaram esta estratégia antes.

- Não é ótima a nossa base de relacionamento? Você não confia em mim e eu não confio em você!

- Vou aumentar sua cota de água e alimento, e ver o que posso fazer quanto às suas roupas.

- Isto é tudo?

- Eu mereço essa sua impertinência, mas você a merece mais do que eu. Virei buscá-la amanhã.

Ou ela muito se enganava ou tinha conseguido adentrar na personalidade glacial daquele homem. Mas ela lhe falara a verdade em troca daquela rispidez. Não confiava nele e não sabia de onde vinha a descrença que se materializava, talvez, em sua própria ânima. Ligada por conexões fora do alcance dos cientificismos humanos e ainda muito mais aquém das suas manifestações de espiritualidade. Não era algo como uma vela a depender de um sopro para voltar a ser apenas parafina torneada e pavio de barbante, que depois de apagada pode voltar a se acender e acender até que a escuridão a consuma por inteiro. Não. Era como magma incandescente aquecendo as entranhas da Terra, viajando, se mostrando nos poros da superfície com uma força vital abissal e inacabável, na qual o movimento que erige e dissolve as coisas, que desloca os continentes como se brincasse de montar e desmontar quebra cabeças, massacra a ignorância das criaturas ocultas de sua própria pequena energia vital a se tornar outra, e na qual, essas criaturas são insignificantes.

Contudo, o que ela viu no ciclo seguinte baqueou seu coração com o impacto e o efeito de uma geleira a desabar, e ela chorou como se todo o mar nunca mais cessasse de lhe escorrer dos olhos.




***


Doc se mantinha à frente, iluminando a senda que levava ao alto de um promontório, uma única extensa rocha desnuda que se projetava para o interior do charco, parando de vez em quando para que Laira recuperasse o conforto de respirar dentro da máscara. Sentaram-se recostados à parede de um velho farol, cuja sinalização perdera a finalidade muito antes que a IV Ordem se estruturasse, pois quando isto aconteceu já não havia tráfego naquele mar, nem correntes, nem vida marinha.


- Essa é a nossa costa, foi aqui que a encontraram.


- Qual mar é esse?


- Chamava-se Mar Mediterrâneo, agora não tem mais denominação, assim como o oceano que o irrigava. Isto que vê é a pequena porção restante, tão sólida de detritos que virou uma ilha negra.


- O que tem depois dele?


- Uma paisagem igual a esta, uma terra com outros clãs. Quando o mundo antigo começou a se desmantelar estabeleceram-se várias correntes migratórias em busca de terras altas e seguras. Na primeira fase da falência, o nível dos oceanos subiu drasticamente, na segunda, houve muitas guerras. Toda a chuva caída na terra era veneno e levou à destruição de rios e oceanos já repletos de radiação.


- Foi assim que a os idiomas se perderam?


- Não só isso, muitos morreram. Grandes etnias ficaram reduzidas a clãs, alguns com o tamanho de uma família, como aquele que viu. Outros são maiores e funcionam como micro sociedades que sobrevivem à custa de tecnologias de combinações de genes pré-escolhidos em laboratórios clandestinos. São os clãs superiores, os inferiores, se contentam com antibióticos que atenuem as infecções disseminadas em seu próprio meio. São capazes de morrer e matar por eles, pois não tem em quantidade suficiente para todos. Mas para cada clã que se extingue, pelo menos dez outros surgem. São tão sexualizados que já nascem com suas estruturas neurais ajustadas ao estímulo da libido. Perderam os elementos culturais reguladores do instinto e procriam em terna idade.


- Isto não acontece com os clãs superiores?


- Sim, com alguns, aqueles cujos membros não optam pela psicocirurgia. A eles é facultado o direito de se submeterem ao tratamento.


- É uma espécie de regalia? Quem lhes dá esse direito? Quem são eles?


- Os membros do conselho da Quarta Ordem. Os Sábios do Espírito. Há muito tempo houve um sufrágio para eleição da Ordem. São seres perfeitos que se sucedem à frente de todas as organizações sociais pela perpetuação de suas réplicas.


- Clones?


- Isto mesmo.


- O que acontece aos outros?


- Eles têm seu protagonismo nesse equilíbrio.


- E a isto chamam de organização social?


- Conhece outra maneira de dizer?


- Não... É um padrão repetido, mas em um nível de decadência inumano...


Laira disse pensativa, transitando por pontes de cognição atemorizantes, nas quais seus próprios passos pareciam machucar-lhe o estômago, produzindo uma dor que ribombava nas têmporas, como uma substância amorfa que penetrasse o manto de uma ostra murcha do mar ausente, e só pudesse ficar estática e velha, dilatando abortos sucessivos da luz de uma pérola que não vinha.


- Vamos.


Disse Doc, erguendo-se e estendendo a mão à Laira.


- Podemos ir pelo outro lado? Quero ver a cidade.


Doc assentiu em silêncio, por seus olhos azuis, ela viu passar uma sombra de desalento.


Caminharam sobre esteiras de lixo e lama. Doc continuava a lhe segurar a mão, tanto para ajudá-la a se equilibrar quanto para manter as outras pessoas afastadas. Alguns trocavam provocações e insultos, dispunham-se nas ruas como uma turba agitada e violenta, exercendo suas maldades naturais intrínsecas livremente. Outros incitavam a balburdia, apreciando a barbaridade como se fosse diversão.


Laira viu bandeiras hasteadas em prédios e casas, todas brancas com letras, às vezes, símbolos, decorando o centro.


- O que significam essas bandeiras, Doc?


- É uma demarcação, indicam que a residência está ocupada, prédios têm mais de uma, ou duas bandeiras, pois às vezes abrigam mais de um clã. Quando o último membro morre, qualquer outro clã, o que for mais rápido em assumir a casa, se torna proprietário dela.


- E aquelas chaminés?


Apontava para um grupo de doze chaminés enegrecidas, visíveis atrás de um conjunto de construções baixas.


- São fornos crematórios que nunca param de arder.


De repente, uma mulher correu em direção a eles, com um grupo de pessoas a perseguí-la. Segurava algo por baixo das vestes maltrapilhas, o que a deixava mais lenta do que os seus perseguidores. Ao passar por eles, empurrou o que trazia para Laira enquanto Doc tentava afastá-la. A mulher continuou a corrida, mas ela foi logo alcançada poucos metros à frente. Muitas pessoas passaram por eles. Trêmula, Laira olhava o rosto de uma criança recém nascida, alheia ao tumulto, tranquila como se dormisse.


Doc quis tirar-lhe a criança para devolvê-la a alguém, mas Laira resistiu instintivamente, fechando com mais força os braços ao redor dela. Doc argumentava algo, tentando fazê-la mover-se para longe. Mas ela não ouvia, olhava para onde estava a mulher, caída, com dezenas de pessoas a disputarem o saque das suas carnes.


Laira lançou ao chão a máscara antes que o vômito a sufocasse, e rápido, alguém a apanhou desaparecendo no meio do bando barulhento. Doc, erguendo-a nos braços a levou dali. Em uma rua deserta, pois que todos se concentravam na avenida do incidente, ele deu-lhe a sua.


Ela não se lembrava de como tinham chegado ao hospital ou de como Doc a fez entrar na câmara de descontaminação, agarrada a criança tão ferozmente como se o que lhe quisessem tirar fosse um membro seu, enquanto o choro copioso soltava uma dor de quem já o tivesse perdido.


Aos poucos, Doc conseguiu transpor o delírio histérico. Gentilmente, tomou a criança em um dos braços e com o outro abraçou Laira pelos ombros, falando-lhe baixinho um tipo qualquer de acalanto, o qual sequer julgava-se capaz de pronunciar, habituado que sempre fora a sedar dores com a eficiência de medicamentos, mas abalado, e disso tinha consciência, por aquela condição extrema, diante de um amor tão cabal, que algum prodígio, por conceito eventual, valorasse nas relações individuais das criaturas, tonava-se misericordiosamente opaco em suas insuficiências.


Laira recusou o sedativo que o assistente lhe trouxe, ficou deitada de costas, na cama estreita do quarto asséptico, olhando além do teto, revirando imagens na memória, planos que tinha feito e se visto dentro deles, como se já completamente realizados; o jardim farto de vegetação exótica que circundaria a casa de dois pavimentos, reformada para permitir o máximo de aproveitamento da luz do sol. As horas felizes que desfrutaria com Fabrice, e mais tarde, com suas carreiras consolidadas, em companhia dos filhos, uma boa velhice. Um ciclo natural bem mais alargado e promissor nas suas regulações e obstáculos, nas suas aflições, encantos e encantamentos indispensáveis à sua longanimidade, e no qual se sabia, por mais que girasse, o atributo de girar era a própria valia. O sentido dessa exposição drástica a um universo inqualificável assumia a forma de escapismo, ela se perguntava se afrontar a si desse modo, conhecer o ponto exato do qual partira, lhe conservaria a lucidez com a qual utilizaria uma das opções oferecidas por Doc.


Doc foi vê-la depois de examinar a criança. Ela não o viu chegar, mas também não se mexeu ao ouvir sua voz.


- Aparentemente, a menina está bem.


- Uma menina... Como a chamaremos?


- Não pensei nisto. Aqui, ela é a paciente de número dois.


- Não tem mais ninguém nesse andar?


- Não.


Laira ficou em silêncio e depois, voltou para ele o rosto cansado.


- Hope. Nós a chamaremos assim. E se posso lhe pedir alguma coisa; não importa a minha decisão sobre as escolhas que me deu, não permita que ela suba por chaminés...


- Poderá vê-la amanhã.


- Você cumpre promessas?


- Eu sei dar alternativa.


- Então, faça esta escolha.


- Falaremos amanhã.


- Você vai me deixar?


- Precisa descansar.


- Não quero ficar sozinha agora. Meus pensamentos retornam ecos.


- Venha, vamos ao consultório.


- O que aquela mulher fez para merecer aquele tipo de punição, Doc?


- Ela roubou comida do clã. E quando alguém foge à regra geral, se arrisca a ter que dispor da própria vida. Sendo ainda saudável, serviu de alimento, do contrário, ela e a criança iriam para os fornos, é a pena capital para quem diminui dos seus pares a espécie legítima de sobrevivência.


- Então, ela deveria esperar e morrer de fome, tendo uma criança para alimentar? É nojento e irracional!


- Condena-os? As éticas não dispõem de abundância para se manifestarem. Vivemos a ética do mínimo, primitiva e essencial. O que quer dizer que há racionalidade, sim, mas sem os subterfúgios dos limites incalculáveis e prósperos a serem superados. Todos já o foram. Não lamente como quem os amasse de um falso amor, isolado, decomposto aos milhões de pedaços, como a dificultar o trabalho do amor inteiro, por que foi essa a conveniência de todos para sobreviverem.


- Ocorremos de lapsos, é isto o que está me dizendo. Foi isto o que quis me mostrar...


- Não, foi isto o que você quis ver. Pode aceitar ou se condenar por ter visto que o sentido da vida não é uma especificidade quântica ou teorias distraídas logo abandonadas por outras não mais benéficas, porém, mais aceitáveis à adaptação da própria vida.


- Não aceito esse caminho sem volta, e você não deveria falar como se aceitasse!


- Laira, nós estamos por aqui a tempo bastante para entender que todo aprendizado traz consigo no mínimo um trauma. Que para cada noção contraída muitas outras morrem, e que esse embate, esse contato com a transformação real é imperioso, sem ele não há aprendizado. Mas a sabedoria não veio a esse mundo orgânico divinal porque a humanidade o concebeu sumariamente assim, unicamente orgânico e dócil. Porque seria preciso o homem admitir que o que não foi aprendido também ensinou...


- Há quanto tempo... Há quanto tempo você está aqui?


- Desde que a Quarta Ordem se estabeleceu. Eu sou um clone.


- Seus pais não eram?


- Não. Eles sim foram sábios, praticavam a seu favor uma ciência mais austera, prorrogarem-se na expectativa de vida eterna seria para eles um engodo, mas já era uma época em que a ciência tinha assumido a mesma forma das religiões, mentia, matava, fraudava, vendia, usava, enfim, tinha os mesmos significados dos que a fizeram.


- E o que você espera Doc, uma saída milagrosa?


- Se existir alguma, ela não estará em nós, nem em nenhum deus, messias ou profeta irado e confortável.


- Onde ela estará?


- É essa informação pura que a Quarta Ordem busca, mesmo sem muito tempo para encontrar, e sem fugir da dinâmica pré-estabelecida, o último pedaço de silício tem a mesma gravidade de uma célula viva.


- Então, vocês já têm a resposta.


- Não é surpreendente o tempo que levamos para ter consciência dela? Desperdiçamos o tempo como mero fetiche da morte, e a crueldade está em não morrermos todos inteiramente ao mesmo tempo.


Laira sentiu, ele também padecia, nas entrelinhas do que dizia pairava certo desprezo pelo que o qualificava para buscar a saída, e o que se ocultava naquela indiferença estudada também era o medo.


- Venha, estamos acordados há quase dois ciclos. Precisamos descansar.



***
 



 

A Combinação Zero (FIM) - Jeanne Chaves



A porta de aço do quarto de Laira não ficava mais travada. À procura da criança deparou, no final do corredor oposto à saída do prédio, com uma escada de acesso ao andar de cima e ao subsolo, pela porta entreaberta, como se alguém tivesse acabado de passar por ela, vinham vozes, três ou quatro pessoas conversavam, tendo ao fundo os ruídos desconexos de uma sinfonia de máquinas para respirar que agora ela reconhecia. O andar era mais iluminado, e por trás do grupo de assistentes que conversava, através de uma espécie de vitrine sobre meia parede, ela contou pelo menos trinta pessoas inertes, com tubos e agulhas a lhes penetrarem. Seu sexto sentido alertou para que não prosseguisse, e meio escondida na sombra do vão da escada, tentou compreender o que era falado, inutilmente. Já estava a ponto de retornar quando teve a atenção despertada por um homem, dentre aqueles pacientes, que se parecia com o piloto árabe daquela viagem fatídica, e arriscando-se a ser descoberta avançou mais no interior do andar. Ao mesmo tempo em que confirmava sua suspeita, levou a mão à boca, imediatamente, para abafar a exclamação de susto.


“Era ele!”


Então, Doc mentira deliberadamente. Mas, por quê?


De volta ao quarto, decidiu esperar por alguém que a levasse até a criança. Esse alguém foi o próprio Doc.


Hope estava bem acomodada, recebendo a mamadeira de uma mulher jovem, que Laira não tinha conhecido antes, e como os outros, de aspecto alheado.


A boca pequena e rosada agarrava o bico da mamadeira com pressa, as mãos cerradas, como imprescindível à concentração. Era uma criança bonita, de cabelos castanhos finos e encaracolados, porém fraca, a pele enrugada sugeria a aflição da fome.


Antes de sair, a mulher entregou a criança a Laira para que a segurasse.


- Doc... Você vai ficar com ela?


- Não posso, Laira.


- Então, tudo o que fizemos foi para nada?


- Ela vai ficar aqui o tempo que for preciso, mas como paciente.


- Você não tem uma esposa, uma família que a receba?


- Não.


- O que mais lhe falta? Piedade... Humanidade?


- Essa criança, aqui, é uma concessão que eu faço à sua piedade e humanidade, a Ordem não sabe de você ou dela.


- Se é assim, então são concessões que faz a si mesmo. Por quê?


- Não sei, talvez porque tudo em você vive de uma vida diferente da que eu conheço.


- Você corre algum risco? Pode ser mandado fazer conosco alguma coisa que não gostaria de fazer, é isso? A essa altura, algum dos seus assistentes já o terá delatado. Então, faça o que tem que fazer e acabe logo com isso!


- Não, Laira, não será tão fácil como quer que seja. E quanto aos assistentes, não há com o que se preocupar, seus cérebros são programados, não fazem nada que eu não ordene.


- Lobotomia! Você fez isso com eles?


- É necessário. Não temos variedades de medicamentos. Seus afetos interfeririam no que precisamos fazer aqui.


- Meu Deus! É monstruoso!


- Alivie sua angústia. Eles são voluntários, só depois a Ordem consente a cirurgia.


- O que mais você vai me deixar saber, Doc? Vai me dizer de onde vem tudo isso que mantém o hospital funcionando? Vai me dizer se vai me transformar num desses zumbis ou se me reserva para outra finalidade?


A criança, que tinha começado a cochilar, embalada no calor do corpo de Laira, emitiu pequenos grunhidos de reclamação, e ela se obrigou a abaixar a voz.


- Você pode mudar para cá, se quiser, ficará mais perto da menina.


- Hope! O nome dela é Hope!


- Mais tarde, vamos a um lugar, então, poderá fazer as perguntas que quiser.


Ele saiu sem esperar resposta. A impassibilidade dele exasperava-a fortemente.


***


O caminho do hospital até a casa térrea, no cerro circulado em sua meia altura por uma alta muralha de pedras vulcânicas, guardava uma distância considerável, vencida com o auxílio de lanternas, em cujos fachos, pequenos insetos realizavam uma dança hipnótica, resistindo ao maltrato dos fumos que nunca abandonavam aquela terra de impossibilidades.


O sal das gotas escorrendo pelos cabelos para dentro dos olhos de Laira incomodava terrivelmente, mas Doc tinha sido categórico ao alertá-la para que não removesse a máscara sob nenhuma condição.


- Doc!


A voz baixa soava como um silvo. Um homem saiu da escuridão à frente deles, se colocando ao alcance dos círculos de luz, e mais três homens o acompanharam, eram agora sete figuras fantasmagóricas paradas na subida do morro. Pensando se tratar de um ataque, Laira já se preparava para correr quando Doc a segurou por um dos braços.


- Está tudo bem!


Em não mais de dez frases, trocadas entre Doc e o homem que não falava pela boca, mas por uma abertura na garganta, a conversa foi encerrada e os homens se foram.


- Quem são eles?


- São informantes. Vivem entre os rebeldes.


- Porque vocês precisam de espiões?


Doc continuou a andar, obrigando Laira e o assistente a segui-lo.


- Existe uma corrente religiosa que prega que o que fazemos aqui é uma aberração. Essas pessoas vivem para tentar e conseguir destruir a Ordem. Sua moralidade em tudo é semelhante a nossa, à exceção das religiões, as quais nós abolimos. São charlatães, mercadores hipócritas, produzem doenças em laboratórios, ameaçam e usam esses produtos para conquistarem uma superioridade ideológica na qual eles são os senhores da morte, e onde não haveria compensação se falhassem para com as determinações do seu líder espiritual, que diz receber mensagens telepáticas diretamente do próprio deus, e acredita que recebe. As pessoas lhes dão tudo o que podem, inclusive, seus próprios órgãos e caso sejam saudáveis, são aceitos como sacrifício de lealdade. Essas pessoas recebem o título de mártires do amor de deus, seus nomes são grafados nos muros, pelo punho do líder, o que para eles é uma honraria, nenhum deles consegue se expressar na escrita, falam, mas não lêem.


- Comparativamente, os métodos de despersonalização da pessoa, praticados pela sua Ordem tem mais moral, não é?


- A sua crítica é pertinente, mas lembre-se, são duas motivações distintas, a vida e a morte. De qual delas você desejaria ser mártir?


- Quando a única alternativa é a morte, ao menos, que haja um pretexto com mais esperança do que ela.


Doc estacou de repente e a segurou com violência pelos ombros, quase a sacudindo.


- Não use a palavra pretexto nunca mais comigo! Uma mulher devorada na rua por tentar salvar a filha não é um pretexto! A filha dela não é um pretexto. Um homem com um câncer a lhe corroer a voz, que se expõe e à sua família, ao risco de uma morte mais lenta e dolorosa do que a do próprio câncer, por acreditar na vida real que virá, embora não vá poder usufruí-la, não é um pretexto!


- Desculpe, Doc...


Foram poucos instantes de zanga, mas neles, Laira viu a dor gigantesca que era aquele homem magro, de pensamentos cristalinos e atitudes resolutas. Ele era tão frágil como quem nunca houvesse se permitido um sonho. Doc a soltou, um tanto constrangido por ter deixado a cólera apanhá-lo desprevenido, desculpou-se também, e além da sinceridade com que o fez, Laira percebeu fadiga.


Com um pouco mais de marcha, chegaram ao portão de ferro do muro de pedras. No interior do terreno, passaram por uma dezena de homens armados. O casarão inteiro sustentava-se sobre colunas que se uniam no topo através de amplos e delicados arcos mouriscos. Um luxo artístico antigo e decadente originalmente belo, que tornava impreterivelmente mais decadente e feia a paisagem urbana ao redor. Doc abriu a porta e deixou que Laira entrasse primeiro, então ela teve o impacto da música suave que os acompanhou por todo o caminho, mas perdida na distração dos seus sentidos, e teve também a consciência de pelo menos cem pares de olhos postos sobre ela.


Um rapazinho que pelas contas de Laira não deveria ter mais de dezesseis ou dezessete anos, deslocou-se de um dos grupos dos vários que conversavam baixinho e se dirigiu até eles, cumprimentou Doc com uma voz doce, e para Laira, olhou longamente, depois, pousou as duas mãos de cada lado de sua cabeça e a abraçou ternamente. O que ele não disse, mostrou durante aquele abraço, em imagens límpidas, milhões de fótons impregnando, nações, mares, montanhas, animais, campos verdes, florestas, pessoas, conflitos, guerras, vida e morte, como uma estampa holográfica em fundo escuro. Ele era velho a tempo demais para ter-se descoberto e apartado dos seus fatos e suas éticas. Existira e desistira sem procedências. Não no mesmo nível de uma placidez ofuscada, sem a propriedade de suas etapas, sem qualquer outra sucessão além da queda seguinte. Perecera e viera ao mundo para viver, repetidas vezes, um florescimento ainda mais violento, o que versava em ser dele e dos outros, a essência mais depurada de suas fugacidades, e para as quais jamais reivindicou qualquer negação, e em cujos filtros de conhecimento, restaram matérias primordiais das quais são feitas todas as vidas.


Laira voltou a si, a mente extenuada, quando Doc finalmente os apresentou.


- Este é Átis, o Presidente.


Mas, Átis já os deixava, voltando para os convidados, africanos, oceânicos, europeus, americanos, asiáticos, e outros que Laira não soube distinguir, de todas as idades, mas nem todos vivazes e salutares com a intensidade do adolescente.


- Se não tocá-los eles não a tocarão, suas consciências poderiam matá-la.


- O que são eles? Ídolos esotéricos? Semideuses paranormais?


- São os remanescentes das suas hipóteses.


- O seu presidente é um adolescente... É o seu maior representante do poder?


- O poder se dispersou nas suas interdependências, não existe se não houver sobre quem ele possa ser exercido, essa relação frágil não existe mais. No entanto, restaram os hábitos, eles incidem sobre os parcos recursos e abrigos disponíveis. Todos que aqui estão, em seus nichos, são mera representatividade da resolução do caos, mas sem ter que lidar com a política, apenas com a racionalidade, que neles, é equânime. Foi preciso aprender tudo sem se contrapor ao poder falível da coletividade obtusa, e quando este finalmente desapareceu, não foi o fim do mundo, antes, o começo da verdade de agora.


- Essa verdade inclui você me dizer por que o piloto do jato está lá no hospital?


- Ele é reserva de pele, ossos e órgãos, como os outros que estão lá.


- Você não se cansa de me horrorizar, não é?


- Ele foi encontrado ainda vivo. Ciclos depois, quando eu lhe disse que todos estavam mortos, foi verdade. Você teria muito tempo para se afrontar com a sua própria mortalidade. Agora, ela lhe parece mais atrativa?


- Não.


- Só você sabe a chave da saída. Sobreviva e nós sobreviveremos em você.


Dito isto, Doc a levou para sentar a uma das mesas, onde o jantar, um caldo sem frivolidades ao paladar e objetivo à fome, estava sendo servido, depois discutiram sobre a informação passada pelo homem que os abordou no caminho.


Os rebeldes planejavam um ataque biológico à ordem, ele só não sabia quando o atentado se daria ou qual agente seria usado, sabia apenas que seria para breve.


***


Os ciclos seguintes foram de intenso trabalho. Entre os cuidados à Hope e a desocupação do prédio, Laira descobriu o elevador, por trás da estante do consultório, que levava muitos metros abaixo do solo, a um ambiente que reproduzia o que havia na superfície em proporções menores, contíguo ao necrotério, a um depósito pouco abastecido de insumos e medicamentos, e em único pavimento, alcançado através de um trecho de duto que mal comportava uma pessoa de pé, e se abria através de uma porta escotilha de aço maciço. O duto se estendia até a fortaleza que os membros da ordem, dos quais apenas Átis havia permanecido, utilizavam para as reuniões, e seguia se bifurcando em uma ramificação de calibre mais espaçoso.


A estratégia adotada para a batalha que se travaria seria muito arriscada. Cadáveres, e clones voluntários seriam usados para dar a impressão de que o hospital mantinha suas atividades, depois do ataque, eles identificariam o agente e retomariam as rotinas, dando a entender aos rebeldes que possuíam drogas capazes de promover uma barreira contra a contaminação. Contavam que fosse uma operação planejada com a rapidez da covardia, e os rebeldes não se apercebessem dos exaustores e filtros de ar desligados. Os reservatórios e linhas de fornecimento de água receberiam reforço na vigilância, apesar de os membros da Ordem considerarem mínima a possibilidade de os rebeldes a quererem contaminar, eles a roubariam.


- Átis, a Ordem poderia atacar primeiro, não poderia?


- Nossa fundamentação é a vida, Laira, e não a morte, nós não adulteramos nada para a finalidade dela. Você sente medo, eu também, e afirmo que os rebeldes têm medo de não encontrarem o céu prometido. Usarmos do mesmo princípio que os move seria decretar a insolvência de tudo pelo qual resistimos.


- São pesos insuportáveis.


- Os antigos os carregaram mais pesados, pois não os percebiam se acumulando nos séculos de filosofia e religião apartadas dos processos vitais da Terra. Em um primeiro momento, poderá perdoá-los, baseada no que eles percebiam do seu meio próximo tão pouco exuberante de vida, no qual havia quase nada para o pensamento cobrir, em um segundo momento, pode condená-los por cegarem, convenientemente, à percepção acrescida de uma terra extorquida e com a crosta em alvoroço, e em um terceiro momento, este de espera no qual se encontra, pode esquecer o perdão e a condenação, eles já não têm mais importância.


- Você fala exatamente igual à Doc, e eu desejaria compreender e aceitar tudo isto como vocês.


- Não estranhe se eu lhe disser que tudo está dentro de você, quanto a Doc, ele também fala como quem a ama. E eu jogaria fora a hélice do meu DNA se você negasse honestamente que existe reciprocidade. É acerca do que lhe diz respeito que o homem encontra os maiores obstáculos para entender os próprios sinais.


- Nesse mundo não cabe amor, Átis.


- Engana-se, Laira, apenas urge que ele seja grande para além dos fatores limítrofes dos valores apreendidos e dos hormônios, como aqueles, estes últimos são portas que abrem outras até a última se fechar, e para transitar na matéria e na essência com a pureza de uma fera perseguida, há que se saber qual porta se fechou, então, ao final, pode-se contemplar o amor intocado, será ele toda substância, essência e lucidez.


- Uma fera perseguida não olha para trás. Fale por si, Átis. Substância e essência são sensoriais, necessitam de caracterização palpável.


- Então, aproveite para tocá-los sem as vicissitudes dos sentidos enganados, descobrirá que as consequências não atingirão o que não foi ainda descoberto, e por isso, o que está oculto, bom ou mau, só poderá ser modificado quando emergir à luz do conhecimento, e que o universo tem segredos feitos para permanecerem assim, segredos resguardados das avarezas e paixões humanas.


- Até quando esses segredos bastarão tão estáticos e indulgentes?


- Até quando o homem se aproprie de sua fragilidade e pare de andar em círculos, matando no caminho o que não compreende, meramente por não desejar assimilar. O que pode ser indefinidamente.


- Mas, era do amor que suspeita existir entre eu e Doc que você falava...


- O tempo inteiro eu falei tão somente de amor. Tudo o que não nasce no amor da Terra, já cresce escombros.


***


Ao final de vinte e seis ciclos, Laira tenazmente se habituou ao pequeno reservado que dividia com Hope, dormiam na mesma cama de campanha, e quando sabia que o leite racionado não atendia à sua satisfação, oferecia-lhe o seio. No início ela protestava até a exaustão, ludibriada, e com o tempo, não mais. Assim, Doc as encontrou ao abrir o cortinado de plástico que fechava suas intimidades. Laira, o tronco nu, alimentava Hope.


Ele se aproximou e pousou a mão suave e firmemente no ventre de Laira, e sobre ela a fronte. Ficou nessa posição, imóvel, ajoelhado sobre ela, apreciando o vestígio nervoso aninhado no escuro do útero, como se o visse, e quando finalmente voltou os olhos azuis ao encontro dos olhos dela havia toda uma tradução de certeza.


- Tenho até receio de fazer algo que o traga de volta a realidade e leve embora esse riso.


- Nunca estivemos fora dela.


Entregando a menina a Doc, Laira tratou de se recompor, de costas para ele.


- Tem algo errado comigo, Doc.


- Não, não tem. Você está grávida.


- Você não costuma fazer piadas... Eu e Fabrice não queríamos filhos agora, sempre me preveni... Para com isso...


- Quem é Fabrice?


- O homem com quem eu me casaria. Esqueça! O que está acontecendo aqui?


- Você foi inseminada, dentro de você há uma seleção de genes dos membros da Ordem.


Laira o encarou, estupefata, então se lembrou da sensação de vácuo que teve após a visita ao necrotério.


- Porque, Doc? Porque você me usou desse jeito?


- O nosso tempo se esgotava. Desculpe-me...


- Pede desculpas como quem tivesse tomado algo emprestado sem pedir e depois devolvesse estragado. Eu não sou um dos seus assistentes, clones ou cadáveres, Doc!


- Eu jamais deixaria que fosse qualquer dessas coisas. Você não reparou que ninguém desceu aqui nestes últimos dois ciclos? O ataque já aconteceu.


- Todos lá em cima estão mortos?


- Eu e Átis estamos nos preparando para fazer as confirmações e caso não voltemos, pegue aquela roupa, ela é hermética, o capuz é conectado com um cilindro de oxigênio, e vá por aquele túnel.


Doc indicou um armário sem portas, onde se via apenas um conjunto do equipamento e o seguimento mais largo do túnel.


- Quanto à Hope... Olhe...


Doc devolveu a menina para Laira e usando o lençol da cama, prendeu-a ao corpo dela.


- Depois, vista a roupa. Ela ficará bem enquanto você estiver também.


- Doc, tem partes de você aqui dentro?


Laira levou uma mão ao ventre e Doc assentiu. Então ela o abraçou tendo Hope entre eles, a ressonar confiantemente.


- Quem é Fabrice?


- Agora já não sei mais.


- O reconhecerá quando estiverem face a face novamente.


- Essa positividade me é estranha em você.


- Você gesta três pessoas que poderão mudar os desígnios do mundo, e deverá ensiná-las o que aprendeu conosco. Assegure-se de que Fabrice poderá amá-las sem restrições e protegê-las.


- Como você faz comigo?


- Como eu amo você.


Quando Laira estava pronta para verbalizar o mesmo sentimento, Doc a silenciou encostando os lábios nos dela.


- Eu sei.


Átis vinha entrando com todo o cuidado em se fazer notar e comunicou-lhes que subiria sozinho, naquele momento, pois acreditava que seja lá o que fosse que os rebeldes tivessem feito, a falta de movimento no hospital exporia possíveis saqueadores que poderiam se transformar em disseminadores de uma contaminação sem precedentes. Doc deveria ficar e aguardá-lo, somente ele saberia o que fazer depois.


Já na porta do elevador, Átis deparou com todas as superfícies do consultório cobertas por um líquido ralo e gelatinoso que em alguns lugares começava a ressecar formando cascas. Nas paredes do corredor, apresentava-se completamente seco, manchando as paredes brancas de filetes pardacentos. Os quartos e a unidade de terapia intensiva, onde cadáveres embalsamados faziam às vezes de pacientes, os móveis e equipamentos, o chão das escadarias, tudo havia sido aspergido, e os clones tinham sido assassinados.


Assim, ele só pode supor o que havia se passado. A invasão foi rápida. Apanhados de surpresa, os voluntários foram acuados, alguns chegaram a ser caçados, havia corpos nos quartos, no final do corredor e nas escadas. Todo o prédio estava em silêncio e o odor da morte impregnava o ar abafado e pestilento.


Ele dedicou-se a tarefa de remover os corpos para o necrotério, após o que, já cansado recolheu amostras do líquido para que Doc analisasse. Só então voltou ao subsolo, tomando o cuidado de se certificar que realizara todos os procedimentos de descontaminação.


A identificação do agente consumiu mais tempo do que Doc havia previsto. Não havia vírus nem bactérias de relevância que justificassem a ousadia e a carnificina promovida, entretanto, sabia que os rebeldes não se utilizavam do hábito de blefar, foi então que com a ajuda do adolescente, quase ao fim do décimo oitavo ciclo desde o atentado, Doc descobriu a proteína.


- O que é? - Perguntou Átis.


- Kuru!


- Eles se sofisticaram.


- Sim. Fatal, lenta e dolorosa.


- O que faremos?


- Eles conseguiram inviabilizar o hospital, precisamos queimá-lo o mais depressa possível. Depois, voltaremos para a fortaleza, de lá cruzaremos o mar e nos reuniremos aos outros.


- Não confia em que descobriremos a cura?


- Não aqui e nem com a rapidez que necessitamos.


***


Do ponto mais ao oriente da cidade, o hospital se assemelhava a uma tocha, cujas línguas de fogo trincavam o escuro ao redor e o movimento da fumaça se condensava na ausência de vento, oferecendo um espetáculo funesto para o povo que não tardou a encher as ruas, e que o preservava no ideário, sacralizado feito um templo, de onde não viessem maravilhas personalizadas para atenuar as penúrias que o assolava, mas no qual, a concretude do propósito redimia as suas desesperanças.


Muito vagarosamente, ondas de calor começaram a chegar ao subsolo, enquanto Doc, Laira e Átis se preparavam para partir, deixando para trás os pacientes comatosos da reserva estratégica. Nesse ínterim, os rebeldes finalizavam o ardil, um grupo seguia pelo túnel que ligava o hospital à fortaleza, o objetivo era encurralar e capturar o maior número possível de membros da Ordem.


Átis foi o primeiro a perceber que eles não estavam sozinhos. A única alternativa era retornar para as instalações do subsolo que já quase se encontrava em ebulição. Assim fizeram e travaram a porta escotilha.


Doc retirou de entre a pouca bagagem que eles levavam a roupa que tinha instruído Laira a usar e passou a ajudá-la a se vestir. Hope estava visivelmente inquieta, e nem quando Átis a acomodou o mais confortável possível, nas dobras e nós do pano que a prenderam ao corpo de Laira ela sossegou.


Em frente à boca do túnel maior, Doc recomendou:


- Não importa o que você ouça ou veja, siga à diante. Não deixe que a peguem.


- Onde ele vai dar?


- Na saída.


- Vocês vêm?


- Sim.


- É uma promessa?


- É uma possibilidade.


Laira retirou do pescoço uma delicada corrente de prata, na qual, a aliança resgatada da sua companheira de viagem servia de pingente e a entregou a Doc, esse gesto o fez sofrer, pois se tratava de um compromisso tardio e inconcretizável. Mesmo assim, havia um riso em seus olhos quando ele passou a corrente pela própria cabeça.


- Agora, vá!


Ela o abraçou uma vez mais e se despediu de Átis.


- Vá!


Laira procurava compassar a caminhada e controlar a ansiedade cada vez que o facho da lanterna não iluminava a porta de saída. Ela se mantinha consciente de que dentro da roupa eram duas pessoas a respirarem do mesmo cilindro, e se se apavorasse, o oxigênio talvez não fosse suficiente para quando chegasse ao exterior. Mas então, ouviu passos além dos seus e começou a correr.


Finalmente, chegou à porta de saída e a mesma estava trancada. De nada adiantou forçá-la, pois ela não se mexeu um único milímetro. Ao lado, Laira viu o mesmo mecanismo de travamento e abertura por código de quatro dígitos das portas do hospital. Em desespero, introduziu várias combinações que não funcionaram. Deixou-se cair no chão, agoniada, ouvindo os passos dos seus perseguidores cada vez mais perto. De repente, ergueu-se e pôs-se a andar de um lado para o outro.


- Não. Não vai ser desse jeito, não é Hope? Não. Não vai ser...


Um, dois, três...


Pense!...


Seis, sete, oito.


Pense!


Dez, Um, dois...


"Eles falam, mas não lêem"...


Sete, oito, nove...


Quem colocou ali aquela porta nunca usada antes obedecia a ordens...


Dois, três, quatro...


"O que não foi aprendido também ensinou"...


Oito, nove, dez...


Com mão trêmula ela introduziu o número zero nas casas digitais e ouviu estalido das travas se movendo, quando forçou mais uma vez a porta, esta se abriu.


***


Tingido em púrpura e cobre do pôr do sol, o mar, soberbo, exalava uma brisa morna a desfazer os cabelos das quatro crianças que brincavam e corriam na areia da praia, sob o olhar cuidadoso de Laira e um céu de nuvens esparsas e finas.




Fim



 

sábado, 15 de outubro de 2011

Rituais



Crepúsculo - Jeanne Chaves


Trajetória-ir
em tardes noites-maçãs
roer as manhãs

Amor-medida
extrapolada como se
uma faltasse

Tiros sobre o pão
Criação se rascunha
ser é ter unhas

Mil mortes rugem
como se Deus ouvisse
posto em transe

Trajetória-ir
quem ficou há de passar
sirenes no ar

Do harmônico
deslocado o centro
para mais dentro

Correr na Terra
aos plânctons do mar
novamente ar

Trajetória-ir
serafins tocam um jazz
não-ser -virar gás-


Jeanne Chaves