terça-feira, 21 de junho de 2011

O Mal do Século








Sucede que infecções altamente contagiosas no tecido cognitivo levam à falência múltipla dos óbvios.


Jeanne Chaves











domingo, 19 de junho de 2011

A Última Onda


É aquela que fere, que virá mais tranquila com a fome do povo, com pedaços da vida, como a dura semente que se prende no fogo de toda multidão. 
(José Ramalho Neto - 1981)



Ele chegava sempre, pontualmente, às 22:45h, a menos que precisasse dobrar o turno na fábrica. O cansaço marcava ainda mais os traços do seu rosto, sobretudo, as rugas verticais entre as sobrancelhas castanhas espessas, e as dos cantos dos lábios, retos de tão finos. Franzino, se movimentava com agilidade pela cozinha. Retirava da pequena mochila plástica a inseparável garrafa de café, lavava-a e depois destampava as panelas sobre o fogão, se o conteúdo o agradasse, revirava os olhos e se apressava para o banho, se não, deitava as tampas de volta nas panelas e entabulava assuntos corriqueiros do trabalho, até ir para o banheiro, de modo que só se sabia o que ele achava realmente do jantar através do seu humor. Em uma dessas noites do ano de 1976, ele chegou de outro jeito. As íris castanhas, muito claras, brilhavam feéricamente em órbitas avermelhadas, tornando-se verdes. A mochila com a garrafa de café ficou esquecida sobre a pia, enquanto ele contava a esposa, em voz muito baixa, o sequestro de um casal amigo da família. As luzes dos aposentos foram apagadas e todos se reuniram ao redor da chama de uma vela, como se o que fosse ser dito necessitasse unicamente desse acolhimento, em volta da mesa de madeira barata, pintada a tinta óleo de um azul de gosto questionável, semelhante ao fundo escolhido pelo pintor do quadro que ilustrava a Santa Ceia, pendurado e milimetricamente ajustado sobre um conjunto de rachaduras na parede pintada tantas vezes em diferentes cores que agora não só ela, mas todas as paredes da casa não tinham cor comparável.

Era uma época em que os ventos levavam muito longe, e às vezes nem tanto, as palavras. Tempos em que era necessário cuidar dos ventos e das palavras, sob o risco de se desaparecer como quem não teve nem terá história, e o medo, embalado pelo som de fuzis automáticos, era insone. Com pormenores, todos ficaram sabendo que o casal amigo fora denunciado juntamente com outras pessoas que se organizavam para exigir o pagamento de horas extras e reposição salarial. Já bem tarde, cada um foi dormir aspirando a fumaça de espirais repelentes de mosquitos que duravam o tempo bastante de se cair em sono profundo e as picadas não incomodarem mais.

Doze anos antes, os três filhos desse angustiado operário, regalavam-se com os muitos sanduíches de carne, trazidos da fábrica, onde foram servidos fartamente em celebração a um novo tempo, depois não mais. E embora o telejornal, exibido em aparelhos de marca japonesa, apregoasse a existência de um boi no pasto para cada cidadão, eles ainda não tinham visto os chifres dos seus, sequer um bife.

Todos os dias a TV dizia que o futuro seria generoso e todos os dias se aguardava a lâmina dilaceradora da perversidade incubada na onda retardada da industrialização do país e do cidadão. No dia em que ela chegou, ele reuniu a família e foi para o meio do povo na rua, como gente que pode toda a liberdade, mostrar aos filhos uma euforia diferente, incontida de expectativas, pois que apenas tê-las, mesmo cega dos olhos que se cabiam, já bastava, e se dignava a todos os exageros, como se quisesse deixar  as mentiras e o medo de ressaca, e a certezas fiadas em si mesma, sóbrias.

A lâmina viera tranquila, vagarosamente, ferindo as fomes, e nelas amola ainda os gumes durante o tempo em que ele pensa que se pudesse ter a rapidez para ver tudo, assistiria a todos nos trinta quilômetros por hora da velocidade da Terra, acelerando-se na quarta e última onda erguida, a mostrar o falso fundo, e tapar o mundo, uns ficando para trás, outros funcionando, acontecendo, ficando como os cocos verdes que rebentavam dos coqueiros tortos, plantados por ele há anos atrás de eternidade, aos quais não se pode prescindir de mutilar o corpo na busca da cristalinidade doce, e varar a carne para se provar o sabor.

Na idade em que quando se fecha os olhos não se sonha mais, acorrem as lembranças como recurso derradeiro do que se viu e realizou. Como se fosse fraco, ele fechou os olhos brilhantes em verde, e estendeu a mão a velha esposa que a tomou na sua, sob a mesma mesa de sessenta e cinco anos antes, vigiada diuturnamente por rachaduras e apóstolos, acomodou a testa na mão dela, sem que fosse uma bênção nem um perdão, e seu último pensamento, na casa em silêncio dos filhos, vagou para os coqueiros marcados com o nome de cada um deles há várias eternidades atrás de lembranças, quando uma brisa fria o fez descer da última das ondas, a sirene distante de uma fábrica soou seu epitáfio, então ele se foi, como quem pudesse ter sido grande.


Jeanne Chaves

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre Democracias Tupiniquins, Arquivos Secretos da Ditadura e Orçamentos Para Copa do Mundo e Olimpíadas.



Posso não concordar com uma só palavra do que você não diz, mas defenderei até o fim seu direito de não dizê-las.

Jeanne Chaves

domingo, 12 de junho de 2011

Marcas Registradas




A profusão de informações alcançou a funcionalidade almejada, e consumir se tornou mais fácil do que pensar.



Jeanne Chaves

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Como Um Pão e Dois Vinténs




Existem expressões antigas que assumem certo requinte de metáfora. Eu não conseguia entender, por exemplo, o que a minha mãe queria dizer quando se referia à circunstância da morte de algum parente ou conhecido com a frase: “acabou-se como um pão e dois vinténs.” Era uma espécie de jargão que ela aprendeu com a minha avó e ilustrava de maneira rápida e eficiente no diálogo, os desaparecimentos anônimos, sem brilho, em que o legado, independentemente da ‘causa mortis’, eram as incertezas para a família, caso existisse, se não, expressava da mesma forma a efemeridade da vida do finado ou da finada em questão.

A expressão descortinava uma compreensão subjetiva, embora sustentada na observação da realidade próxima, dos seus fatores de inserção social.

Minha avó, de quem minha mãe tirara o aprendizado daquela frase, era religiosa ao extremo do rigor, analfabeta e demasiado fecunda, o que a impediria de participar do mercado de trabalho de sua época mesmo que existisse algum que assim pudesse ser chamado na cidade em que ela viveu sua infância, juventude e boa parte da maturidade. Assim, alguém que não merecesse o pejo da expressão, apesar de morto, era aquele que se saísse vitorioso das rumorosas lutas de classes, nunca admitidas de boa vontade pelos apaixonados defensores do capitalismo parasitário. Achavam que poderiam, um dia, parasitar também, esquecendo que quem nasce para ascaris nunca chega à cascavel, ao menos, não coletivamente.

As lutas agora são um murmúrio indistinto e agonizante, sufocado por confortáveis e ilusórias almofadas de economia globalizada em um mundo feliz. Um mundo escrito por profissionais de marketing, profissão ainda mais brilhante e importante do que as personalidades dos líderes das grandes nações. Os maiores ‘caras’ entre os 'caras', aqueles que fazem ser outra a teoria vendida na prática, auxiliados luxuosamente pelos gurus acionados por controle remoto, nesse tal mundo feliz que nos é vendido.

O que os moicanos sabiam, como se constante de sua identidade genética, os tupiniquins aprenderam por estímulos quase pavlovianos. As diversas classes (cidadãos trabalhadores, classe estudantil, aposentados) ‘involuiram’ para apenas duas: a dos cidadãos de primeira classe, e a dos cidadãos de segunda classe, que se alternam na roda da fortuna e das políticas públicas e econômicas sempre tão volúveis e inócuas. As nações, igualmente: nações de primeira classe e as outras, nas quais a regra número um de contenção das massas é “esconder o que seja ruim e faturar sobre o que seja considerado bom”, seguida pela regra número dois, “vender cianureto como se fosse coca-cola”.

Literalmente ao pé da letra, a qualificação de cidadãos em classes A, B, C, D... sugere um 'copy-plast' da hifenização de relatórios da Organização das Nações Unidas de avaliação de desempenho do crescimento de um país. Itens que satisfazem a economia globalizada e oferecem um fôlego sobressalente ao Grupo dos 20 menos 8.

Então, em um país no qual o número de mortes por assassinato chega a cinquenta mil por ano e o número de vítimas fatais do trânsito chega a trinta e sete mil por ano, como é o caso do Brasil, se alimenta, longamente, a idéia de que a expectativa de vida da população aumentou em função de uma melhor alimentação e mais investimentos em ações de atenção e assistência à saúde. Entrega-se, assim, a idéia de mão beijada aos gurus acionados por controle remoto, e os telespectadores acreditam piamente que vivem mais e melhor, e ainda, que o aumento da idade e do tempo de contribuição para o Instituto Nacional de Previdência Social é justo e se não for, não importa, eles sobreviverão às doenças crônicas adquiridas com a idade e as provenientes do trabalho, caso consigam cumprir ininterruptamente o tempo de serviço e de contribuição, superarão mais uma reforma previdenciária, que indica o contrário de crescimento econômico, para um mundo feliz em sua demência estática de ascaris.

Agora, sei que a profundidade da comparação da minha avó correlaciona a fragilidade da existência com o valor material da subsistência.

Os cidadãos de primeira classe simplesmente morrem, os de segunda classe se acabam com a rapidez do vintém trocado pelo pão e da fome que devora este. Depois, não há mais necessidade de pão nem vintém.

Mesmo analfabeta e pensionista do INSS, minha avó era uma filósofa sensível e perspicaz da realidade próxima.


Jeanne Chaves

Com agradecimentos a Cau Alexandre