quinta-feira, 25 de junho de 2015

Por Um Futuro, Ainda Que Não o Vejamos Passar



          É do Direito negar um crime descoberto. Se nenhum foi cometido é direito assumir não ter havido nenhum. É próprio da Justiça a justiça justa ou a justiça possível no espectro das impressões pessoais oriundas das exposições às experiências de vida ideal externa de quem julga, sendo que ambas, justiça justa e justiça possível são cabíveis por fraude voluntária do pensamento ou por consciência involuntária. Leis não passam de referenciais, e a depender do contexto da moral das sociedades, são limítrofes, de éticas mutantes, à deriva das vontades individuais. Uma mentira difundida por séculos a fio torna-se verdade, é verdade, e, é verdade que uma verdade exaustivamente repetida por séculos também se torna verdade, e, é verdade que a distância entre uma e outra é a dúvida, porém, a quantos interessaria conhecer todas elas? Quantos as suportariam nessa altura da trajetória? Por isso a vida é curta, e quando extensa a salva as demências. Simulações antes de senilidade são bem aceitas, se aprazíveis, e os subterfúgios para elas dependem de ao que os sentidos foram expostos. Os sentidos fazem a mente e a mente, não raro, os engana se os sentidos se enganam. Realidade é a soma das fraudes das utopias convictas, e funcionam como se científicas. Como é impossível um cego descrever com precisão as cores de um pôr-do-sol, tal uma pessoa de visão normal, se lhe falta precisão no vocabulário, ainda mais não fosse o fenômeno em si impreciso em cada dia. As nuvens nunca são as mesmas no céu e o céu é muito vasto acima dos ventos que movem as nuvens. A luz de revelar as coisas também não é nunca a mesma. Como é impossível a um surdo descrever o som da queda d'água de uma cachoeira com precisão ele descreverá o impacto dos decibéis das ondas sonoras em seu corpo como uma pancada, e caso a queda seja de pouca quantidade de água, ele jamais descreverá o fenômeno com precisão, tal uma pessoa de audição normal a quem faltasse o vocabulário para explicá-lo. Mudos gesticulando Libras funcionais para quem não compreende este vocabulário e uma pessoa capaz de articular fonemas, limitada no entendimento da linguagem.


               Somos instintivos e sensoriais, e foi preciso lançar mão do uso das especializações, em assim sendo, o mundo cercou-se de fragmentos difíceis de serem juntados todos ao mesmo tempo, e mais do que isso, difíceis de serem processados ao mesmo tempo. Lentamente eles se vão agregando em partes convenientes ao bem estar dos sentidos de quem os possui funcionais como epifania, e com objetivos funcionais, vagando em superlativos comerciais e minimizações desqualificantes, fadados ao exagero e justificados por estatísticas.

                Para o cidadão indistinto, nas bases das pirâmides sociais, testar intenções e ideias por trás delas de maneira coerente e menos empírica nunca foi tão urgente como forma de garantia de uma sobrevivência igualitária e racional, a partir do indivíduo até os sistemas sociais e governamentais que tal conjunto forma. Os empirismos já prestaram os serviços e desserviços que podiam à Humanidade. As utopias nunca foram tão desnecessárias às revoluções que a Humanidade necessita, embora tenham carregado até esse ponto, natural e imprescindível de reversão dos pensamentos cíclicos, os indivíduos, as sociedades, e as estruturas dos governos de cada País. Jamais chegamos a um ponto da História da Civilização no qual urgisse a necessidade de sermos tão demasiadamente honestos com nós mesmos em tudo, ainda que em detrimento das religiosidades, ideologismos, e ideologizações políticas imbuídas das fraudes intelectuais que lhes são próprias. Nunca foi tão urgente passar a limpo as imposições de pensamentos que se desdobraram em ordens sociais e econômicas e seus crimes contra a Livre Consciência, em verdade, cometidos em nome dela.

                Do domínio do fogo ao domínio da tecnologia de beneficiamento do Urânio das bombas atômicas, passando pela fraude ingênua da Costela de Adão como órgão reprodutor quando ainda não era possível visualizar as células reprodutivas porque simplesmente não havia as lentes de aumento para tal. Não havia a tecnologia disponível para tanto, e no entanto o mito persiste, completamente embasado de ignorância. É como descobrir o Bóson de Higgs ou Partícula de Deus, uma metáfora da Ciência contaminada do pensamento religioso, passando por cima do conhecimento de que o cromossomo Y jamais poderia ter vindo primeiro na escala evolutiva puramente pela falta de condições bioquímicas para isto. Desfazer mitos aparentemente insuperáveis, como o de um deus à frente de tudo, quando quem está à frente de tudo, manipulando os deuses que cria para sujeitar, inutilmente o homem, é a mente humana e sua diversidade de linguagem e entendimento, que adapta seus deuses às suas misérias adaptando, igualmente, as preces. E até se prove o contrário, a concepção de deus é extremamente terrena. Pode haver um recôndito na Terra no qual haja ordem e ordenação social apenas e essencialmente se seguindo os Dez Mandamentos de forma coletiva, mas há, decerto, coletividades detentoras de sofisticados códigos legais, com dezenas, centenas, e milhares de regulações para todos os setores da sociedade e para o indivíduo que não cumprem nem os Dez Mandamentos, elaborados na premência de uma desorganização social existente em uma situação literalmente desértica, segundo a História, nem cumprem seus sofisticados códigos legais.

                   Horizontalizar os poderes e as capacidades, inclusive a faculdade de pensar, e alguns poderes, de fato, primar pelas suas extinções. Seus lutos resolvíveis. Reorganizar as concepções com vistas a uma nova ordem de pensamento, reciclando os pensamentos testados e dispersos em fragmentos. Nada é mais conveniente à estática, à inércia, do que o bandeamento do pensamento em lados opositores, que devam ser erguidos como bandeiras no campo de batalha dos idealismos. A Humanidade, então, haverá de se debruçar sobre suas convergências mais do que sobre divergências.

               Temporal e mortal é o Homem. O Tempo e a mortalidade o desorientam e daí a incapacidade em se perceber como Sistema, percebe-se como, no máximo, integrante do conjunto de valores que tenta praticar em conflito com indivíduos que assumem, como forma de convivência social, os mesmos valores e não os praticam. Ao se afirmar, por exemplo, que suas raízes coloniais escravagistas justificam sua condição social, seu aprisionamento mental, e sua condição social, se fornece a desculpa perfeita para que assim o indivíduo se acomode nessas condições, não obstante, todos os falsos inexplorados ou subtraídos da sua história coletiva. Daí as doenças da mente, as somatizações, que nem sempre podem ser atribuídas a um gene deletério, deficitário, recessivo, dominante ou mascarado, esses a Ciência já é capaz de localizar e classificar, e permeiam todos os tipos genéticos humanos, por conseguinte, restam as doenças da consciência difusa de uma realidade distante dos sentidos, que por justiça biológica prescinde, enfim, de todos os concomitantes términos de cada porvir passado.

             Tendo se mantido inexoravelmente através dos séculos, os instintos primários de sobrevivência: abrigo, alimentação e reprodução, não obstante os saltos de desenvolvimento tecnológico, que não implicam diretamente em melhor qualidade de sobrevivência coletiva, ainda assim, esses instintos acompanharão o Homem como acompanha qualquer ser vivo, e por causa deles, não como qualquer ser vivo, o Homem continuará exaurindo e matando o Homem, auxiliando seus próprios desequilíbrios sociais até a extinção, pois que as barreiras geográficas de isolamento praticamente não mais existem.  As barreiras políticas no que tange a convivência global são vulneráveis e belicistas, e a paz nada mais é do que uma intermitência nos estados de guerra sejam eles pessoais, regionais, continentais ou mundiais. Mas nossa escolha não deveria se dar entre um holocausto lento no limite do inassimilável, ou voraz no limite do que nunca poderá ser profundamente conhecido. Mais do que pela funcionalidade das adaptações do pensamento às transformações das civilizações humanas, deverá se dar através da inteligência emocional que o homem atinja a racionalização dos seus instintos primários com menor angústia existencial, porém, se conseguir aprender a reaprender, na busca das terceiras vias e quantas for necessário, sem culpas, nem julgamentos, nem desculpas, nem perdões. Sem nada que o fragilize além do talento da índole para a fragilidade, e este deverá ser suplantado pela vocação para sobreviver.



Jeanne Chaves





quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

E do que adiantou?...















sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Enormemente




 
 
 
Adultos demais para medir pintinhos, os multiplicaram sem pacificá-los.
 
 
 
 
É tão censurável refletir pública e artisticamente o sexo de representantes de grandes potências quanto o de santos.
 
Museu Tochka G, de Alexandr Dosnskói, em Moscou, Rússia.
 
 
 




terça-feira, 27 de agosto de 2013

Sejam Bem Vindos!








Caros leitores, fiéis, ocasionais e erráticos (devo ter alguns que não sejam tão somente robôs do Google, e oriundos desses blogs fakes feitos para policiar a internet), suas presenças no meus blogs me honra, e quaisquer dos textos de sua preferência estão à disposição para uso próprio ou divulgação espontânea, atitudes que eu muito agradeço. Cabe, no entanto, lembrar que todos os textos estão licenciados sob Licença Creative Commons, o que não impede a utilização dos mesmos desde que a fonte seja citada. Por motivo de segurança, há um dispositivo que impede a cópia direta do blog, contudo, através do endereço eletrônico constante do meu perfil é possível solicitar uma cópia do texto, ao que atenderei com imenso gosto. Espero contar com o mesmo respeito com a qual realizo o trabalho de produzir intelectualmente sem cobrar nada por isso, e, no mínimo reciprocidade na honestidade. Somos um país com 75% de alfabetizados funcionalmente e 16% de completos analfabetos segundo último levantamento da Organização das Nações Unidas, considero que cobrar pela leitura seja uma cruel violação de direitos humanos, mas considero, igualmente, que o baixíssimo consumo de livros, 3,5/indivíduo/ano, em média, para uma populaçãocom mais de 200 milhões de habitantes, as dificuldades do acesso à cultura, à educação de qualidade, e o massacre midiático em torno da cultura e leitura de "consumo rápido" não nos torne, necessariamente, desonestos. Muito menos creio que tal displicência em citar a fonte de um texto seja problema exclusivo nosso. A frase: "não há alternativa à miséria absoluta se não o seu próprio fascismo potencial" foi cunhada após a observação de um fato chocante, mas infelizmente, condizente com a condição humana, e nada destoante do comportamento social em países que se dizem em desenvolvimento como o nosso. Em outro momento, no blog Incontinentemente, relatarei a situação extrema que me plantou esse pensamento.

Sejam sempre bem vindos!


Jeanne Chaves









sábado, 24 de agosto de 2013

Outra Oração Ao Pai








Partenogenético
que estais no ozônio
em esteiras de condensação
dos voos humanos
nas nuvens de poluição
idolatrado seja teu anti nome
teu pecado de te criar no homem
a falta do teu nexo
a castração do teu sexo
embora homem.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje
o que o diabo amassou, que fosse.
As nossas ofensas, perdoai
e a quem ofendemos pediremos jamais
assim como a quem nos tem ofendido
não perdoamos
no perdão fingido
prolongadas as ofensas, viciados.
Deixai-nos cair em tentação
para nos livramos
de todo mal em nós
a sós.





Jeanne Chaves





sábado, 15 de junho de 2013

Reste a Verdade



Em tempos de ausência de mistérios e segredos que assustem e encantem. Em um mundo tão fictício que a privacidade recente-se de ser violada para proveito de mais ficção e manipulação de mentiras, resta arrogar-se na verdade essencial e suportar as consequências das transformações com as vértebras eretas.



Jeanne Chaves

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Pânico









Poxa vida, Tio, sete acessos nos últimos dias a um texto que já virou rascunho a mais de um ano (Capítulo 3 do Estado Bruto), portanto, não mais disponível ao público, é sinal de que a paranoia Bush-Bush Filho-Obama está desafiando a sanidade Yankee. Perdoe-me se não me provoca comoção nem prazer o seu medo. Não sou braço do Al Qaeda, tampouco do Hezbollah. As centopeias que o senhor cria não pastam neste blog.







quinta-feira, 9 de maio de 2013

Politicus Brasiliensis




Morrerás, como todas as coisas físicas morrem quando os olhos se fecham em definitivo. Palavras e instituições feitas para a imortalidade apodrecem em gestos. Não falarão de ti após tua partida. O registro de tua passagem neste mundo não te garante uma alma, pois que esta, já não havia antes de marcá-la com os grifos das tuas escolhas. Solitário, desfrutarás da eternidade acrescida de vazios e a tua memória, inglória, será esquecida nas ruas do futuro, ainda que placas com teu nome as referencie.



Jeanne Chaves

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Preconceito



Todo preconceito tem fundamento unicamente na completa ignorância acerca dos objetos pré concebidos, além de ser sub produto da moral. Por outro lado, não há como negar que o pensamento pré concebido impulsiona os desdobramentos dos indivíduos, comunidades, sociedades e civilizações no sentido de uma libertação, não raro, pelas exacerbações de auto afirmação e negação. Não existe desdobramento social sem conflitos de raça, orientação religiosa, sexo, orientação sexual ou econômico-financeiros. Em sendo assim, o preconceito não levado ao extremo da crueldade, pois esta ação o aproxima do crime, nem ao extremo da caridade, pois o aproxima do conformismo, não é bom nem mau. Porém, os que o sublevam por profundos conhecimentos, étnicos, teológicos, biológicos e econômicos de suas causas, ou não o valorizam porque se reconhecem como parte original dos seus objetos, conseguem ser o melhor dos produtos do preconceito.



Jeanne chaves




sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Epifania de Um Ateu



Devia não empenhar-se em crer. Anulou deus até ao espermatozoide de uma mosca, e, ainda assim, ele é maior  que o inseto. Devia manter nos seus esfíncteres a turgidez da palavra no mais estrito controle, mesmo quando o pragmatismo essencial do orifício anal lhe escorresse pelas pernas diante daquela mulher religiosa por obrigação, e sem pudor. Se ela compreendesse que não adiantava cobrar-lhe o impossível, uma simples  pressão de  esfíncter para que não emporcalhasse a louça sanitária e o piso clorado do banheiro, ficaria grato por ela fazer de conta que não via as fezes que ele  negava como quem nega deus. Não eram dele. Eram fezes onipresentes. Porém, nunca admitiria que quase a amava por não dizer a verdade. Ela se vendera. A mulher velha, cujos desterros revelavam-se no pouco viço dos braços, de ventre gordo de fibromas, se vende pelo odor dos seus excrementos, lhe serve do banho à boca. Não vale respeito.

Caridade fizera-lhe um velho amigo de frequentar bordéis. Ensinou-lhe que há menos preço no sexo pago. O substituto do seu pai que o iniciara na vida mundana de macho somente para que ele deixasse a irmã em paz. A mais nova e ignóbil, com seus peitinhos espetando os olhos. O amigo que o ajudou na caçada às fêmeas e o fez saber que sem outro macho a vida seria impossível. Os dois cercam. Um incita. Os dois copulam. Os dois se protegem do macho próximo como os machos próximos se protegem dos próximos. O amigo o presenteara com um massageador prostático comprado numa dessas catedrais luxuosas erguidas para se comungar o dinheiro. O embrulho em papel sofisticado não  o enterneceu. Comovia-lhe o efeito do presente bem acoplado nas entranhas. Fazia-o economizar a musculatura do braço esquerdo usado na luta com o pragmatismo ateísta. Ele era um homem justo para com a sua natureza, até ao pânico. Como arrancar os brotos da magnifica ignorância se nela vicejava,  se  auto afirmava? Seu fim seria o dele, que sempre cultivou o suicídio nos outros com a vaidade de quem pudesse fazer melhor. Mas não fez.

Perdoava-se em meio aos excrementos involuntários diante daquela mulher de ancas largas. Imaginando se teria tido excitação para cavalgá-la em um quarto escuro com os cheiros orgânicos de secreções e bordéis.

Há ainda outra mulher na sua insônia. Pandora havia aberto as pernas, tal Virgem Maria, para o nascimento do primeiro homem que não era bom nem mau e foi estelionatário depois do segundo. Sim, a mulher era a raiz de todo o mal, e maldito é o fruto do seu ventre, ele. A caixa, esse simbolismo existencial, transferia tão somente a forma que originalmente seria de um útero, pois do contrário se incorreria em afeminar demais o Ser, e ele sempre precisará de seus homúnculos cósmicos presumidos.

Aquela outra mulher tem lhe feito perder o sono por muitos dias e noites. Por várias noites e dias os quilômetros sobre os quais seu braço esquerdo precisa se estender à procura da vasilha de urinar o fez acordar sem dormir, extenuado de pensar nela.

Comparava o homem ao cavalo: viril, trabalhador e domesticável. Que ousadia! Pensava, logo morria longamente. Quantas criaturas existiam no impulso? Tinha pênis, logo era bicho! Parvo Quíron! Ria-se.

Ah! Aquela mulher! Usava as inconsistências do homem contra ele que preservou  a mulher do pai sem ejacular. O que lhe fazia além de desejar a vagina antagônica? Contrações que lhe expeliriam vivo da endogamia de deus. Aquela mulher destruiu antes os mitos que ele massacrava. Afetuosamente, maculou de amor o ódio, e de desprezo a paixão, para eliminar os extremos. O que faria com o meio restante? Ela matou deus com a sua espada, com seu próprio falo. O assassinara com esmero melhor do que o seu. Sem possibilidade de retorno ao meu parricídio existencial. Serviu seu focinho em uma baixela primípara. Ele só necessitava um deus para esquartejar todos os dias depois de copular com o massageador. Quando as putas ficaram seletivas demais por causa da demanda, e ele jamais aprendera a seduzir nenhuma. Aquela mulher com vagina, ossos, músculos e cérebro não daria a vida por nada que não tivesse saído do seu útero o fez acreditá-la sem que sequer a amasse, como  cumpria seu ódio apaixonado de deus. Ela não daria a vida por ele. Ficou por perto candidamente com a empáfia de quem não fugiria de ninguém que não pudesse caçá-la. Ficou ali na monotonia uivante do morro de um Heatchcliff necrófilo. Dele e de deus ela é a tumba.

Setenta e oito anos embainham a sua espada flácida, desarmada sobre um monte de pelos brancos crescidos no púbis da armadura torta. Não há tempo para salvar qualquer deus que o salve. Uma sonda para a sua uretra, pelo amor de Deus!








Brix - Jeanne Chaves




         A vida dá voltas estreitas que, às vezes, raras vezes, passam em um mesmo lugar. Retroagida em meio aos móveis antigos descobertos e gastos, onde se assentam várias camadas de poeira, eu estou no interior da minha ampulheta. Herdeira dos meus despojos, e se alguma riqueza há nessa herança é exclusivamente a lembrança que me avassala, juntando os grãos de areia do meu próprio tempo.
A fragrância adocicada de flores de laranjeira dissipou um pouco do cheiro de mofo da casa dos meus avós quando eu abri a porta que dava para os fundos, e onde a jurubeba subia alta, sufocando a plantação de jerimuns não colhidos havia anos. Depois da horta, ao lado do galinheiro vazio, a pequena oficina de marcenaria de paredes de tábuas pendentes, onde brincávamos quando a serra silenciava, ou apenas ficávamos aguardando o meu avô Feliciano dar faces abrutalhadas aos bonecos que talhava, e depois os pintava e vestia com batas de restos de tecido, para contarem, pelas nossas mãos, as histórias que imaginávamos.
Na última vez que aqui estive com Jorge, procurávamos por uma caderneta com cálculos mal rabiscados em grafite, com créditos e o nome dos credores correspondentes, pouca coisa, mas o bastante para garantir os pães franceses da semana, que vinham embrulhados ainda quentes em papel madeira. Cinco por dia, que eram repartidos ao meio. Na hora do jantar  as metades restantes tinham a textura de pão dormido, e eram ingeridos com manteiga, se tivesse, chá ou leite diluído domesticamente um pouco mais para nós, e café pisado e coado na hora para Feliciano e Matilde. Na justeza da necessidade os únicos excessos permissíveis eram os de economia.
Jorge esbarrou numa prateleira que acumulava quase todos os expurgos da casa, velharias e utensílios de pouco uso, fazendo cair um caldeirão, e ao olhar para dentro dele, uma lembrança o repugnou da mesma náusea do dia em que presenciou o avô abater um carneiro. A lâmina coruscante, gasta no fio, deslizou no pescoço do animal com a perícia do hábito. Gotas brilhantes se dispersaram para todos os lados antes de a aorta despejar as últimas no caldeirão de ferro fundido, então o animal, finalmente, ficou inerte. Algumas delas pousaram no seu peito e rosto, fazendo-o estremecer ao contato com o sangue quente. A avó se apressou em fazer desaparecer a palidez estupidificada do seu rosto, retirando-o delicadamente do quintal, o ajudou a se lavar.
Confuso pelo choque da cena submeteu-se sem protestos àquela ternura antiquada, sem atentar para o incômodo áspero da esponja ensaboada devassando as intimidades do seu corpo de dez anos. Agora, ele compreendia o esforço dela para lhe apagar dos pensamentos o pequeno terror doméstico, inventando casos engraçados, um falatório enganado das notícias dos jornais velhos, recolhidos por ele da barbearia uma vez por semana para revenda, que ela o fazia ler depois do sono da tarde, quando então as portas e janelas da casa eram abertas, e as moscas retomavam seus zunidos na claridade.
Analfabeta, as notícias nunca chegavam a ter real importância para alimentação das galinhas, a limpeza da casa, a colheita na horta, o preparo das refeições módicas, para missa dos domingos, no pouco diálogo que cultivava com o marido, na severidade da vistoria inócua dos nossos cadernos, em como fazia parecerem ricos os lençóis emendados de sacos de farinha alvejados a força, até que não restasse nenhum sinal azul ou vermelho da identificação do moinho de trigo. As notícias não mudavam o que ela precisava fazer diariamente.
Em duas ocasiões do ano, no meio e no final, nossos guarda-roupas eram renovados, ele e Félix recebiam três calções e três camisas, e eu, três vestidos de fazenda que o avô trazia do centro da cidade, e um par de sandálias, cada um, juntamente com os víveres: carne seca, farinha, feijão, banha, sal, arroz, açúcar e sabão.
Foi assim que Jorge viu Feliciano pela primeira vez, descarregando a carroça que fabricara na sua oficina, enquanto o cavalo alugado resfolegava com sede. A mulher que o trazia nos braços aproximou-se da frente da casa de duas águas e houve uma conversa alterada. Depois disso, a tristeza da avó e o rosto atormentado do avô. Ele estava olhando para sua família desconhecida, seu primeiro discernimento infantil.

***

O cão robusto, de íris cor de caramelo, olhou bem dentro dos olhos de Jorge e se esquivou assustado por alguém que frustrou seu avanço astuto sobre a lata de lixo do quintal. Enquanto Jorge, distraído, jogava dentro de um saco as laranjas que a avó o mandara apanhar.
A mulher que o havia trazido entrou pela porta dos fundos, na cozinha onde a avó escolhia feijão sobre a mesa de pau-rosa marcada de cicatrizes e queimaduras dos fundos das panelas. O menino ressonava em seu ombro. As mechas de cabelo negro, escorrido, pregadas na testa e na nuca pelo suor, os bracinhos caídos ao lado do corpo de um jeito que deixavam as palmas das mãos voltadas para frente, e a boca minúscula semiaberta. A avó se levantou vagarosamente com os olhos fixos na criança e permitiu que a mulher a beijasse no rosto. O assunto da conversa, retomado após longos trechos de silêncio findou em uma pausa maior. Quando ela partiu, no final da tarde, deixou o corpo de Jorge aniquilado por um abraço, que ele não sabia, ansiava mais frequência, algumas notas sobre a mesa, e o nosso irmão. À noite, Jorge foi se esconder na marcenaria, a fim de fugir dos gritos injuriados do avô. Dos três netos de Feliciano e Matilde, o do meio era o que mais se parecia com ele e talvez por isso, depois de excedida e acalmada a fúria, o menino dormiu entre os dois até que o berço ficou pronto.
O cão tinha sido um prêmio de apostas em rinhas de galo. Olavo escancarava suas preferências pela avó. Quando não estava roendo coisas ou atazanando a vida das galinhas a seguia por todos os lugares. O tio Orlando fizera questão que os meninos o chamassem assim, em homenagem ao seu patrão, dono de uma extensa gleba produtora de cana-de-açúcar. Descasado, de tanto que se envolveu em aventuras extraconjugais, não tinha filhos. Os traços mais associáveis de sua aparência eram o cheiro de aguardente e tabaco, e as rugas precoces nos cantos dos olhos, que independentemente de qualquer emoção que lhe viajasse na alma, davam sempre a impressão de sorrirem.
Aos sábados, depois do trabalho e a menos que chovesse, cumpria o compromisso quase religioso para com as pescarias, nas quais levava Jorge, ensinando-lhe o manejo da vara de caniço, os segredos das iscas, do varejo, e os tipos de anzóis. Naquelas horas, entre um saramunete e uma sardinha, ele era o filho emprestado da irmã, sobre a qual todos pareciam encerrar um silêncio irredutível, a não ser quando das suas aparições sem aviso, inadvertidamente, acompanhadas de tensão.
No dique natural tocado na superfície pela preamar, ouvira pela primeira vez o nome da nossa mãe, citado em uma conversa entre o tio e o avô: Ester. Era assim que se chamava a mulher que rescendia a patchuli  cabelos negros lisos, olhos enevoados de um infortúnio sem nome. A mulher que o beijava, o cingia com tanta força, como se assim pudesse fazê-lo parte dela novamente, mas nunca, nunca ficava tempo suficiente para dissolver seus medos, saber suas conquistas, repreendê-lo ou acarinhá-lo à noite, antes de dormir. Em sua lembrança, se acentuavam as costas dela mais do que propriamente o rosto. Era a última parte do seu corpo que via, sempre a partir tão sumariamente em cada vez que se encontravam.
Naquele dia, Vênus já brilhava única ao lado da lua minguante e ele não fisgou nada, apenas, siris oportunistas. O tio e o avô tiveram sorte, pegaram três peixes de bom tamanho, os menores foram desvencilhados dos anzóis e devolvidos ao mar. A travessia de volta na preamar foi feita com água na altura da cintura, e o tio o levou escanchado nos ombros.
Apanhados por uma correnteza, de repente Jorge se viu submerso. Uma gigantesca massa de água rolou por sua cabeça, entrando pelas narinas e boca. O tio o suspendeu por um dos braços, esperou que aliviasse os engasgos. Na areia, o vento soprando do norte o envolveu gélido e ele estremeceu, mais pelas associações que sua mente fazia atabalhoadamente da conversa do que pelo frio, e ambos o faziam doer muito.

***

Eu fui registrada, apropriadamente, levando-se em consideração o dia em que me encontraram na porta da frente da casa. Todos voltavam caminhando da Igreja depois de assistirem a missa vespertina de Natal. Jorge contou-me anos mais tarde, e muito antes de eu vê-lo sumir na estrada de terra serenada no alvorecer, que o tio Orlando decidiu chamar de Natália a menina que dormia envolvida em uma manta cerzida com retalhos estampados de pequenas estrelas coloridas. Com Olavo alerta ao meu lado, como a velar-me o sono, como se me conhecesse. Sob a luz amarela da lâmpada incandescente instalada na cumeeira do beiral do telhado baixo, a avó examinou-me as feições. Exalou profundamente o suspiro de um pressentimento confirmado e me estendeu para o marido. Ele não fez menção de tomar-me. Destrancou a parte de cima da porta e correu o ferrolho interno da parte de baixo com um misto de resignação e enfado, sem nenhuma palavra. O tio o ajudou a improvisar, com restos de madeira da marcenaria, uma cama no quarto de Jorge, onde, dessa noite em diante Félix dormiria, enquanto eu assumiria seu lugar no quarto de Matilde e Feliciano.
O jantar especial de Natal foi servido a meia-noite. Jorge sentou-se a mesa sentindo aversão pelo carneiro esparramado em pedaços dentro da travessa de cerâmica, regado de seu próprio suco gorduroso.
No ano seguinte se inaugurou para ele uma espécie de geografia da sua condição. Éramos pobres, da quadragésima nona geração da família de miseráveis, semi escravos dos semideuses do ouro branco, apesar já irem longe, no passado, os tempos auspiciosos da exploração danosa e lucrativa da terra cuja herança é a verossimilhança das relações senhoriais dos engenhos-banguê. Essas gerações apareciam, reproduziam e morriam na montoeira de casas entre as canas e o mar de pesca artesanal, no mais pleno ostracismo, e fariam tudo de novo nas gerações subsequentes.

Uma boca a mais a necessitar alimento, extorquiu uma das coisas que Jorge mais apreciava nesse mundo: depois das aulas, andar à toa junto com Félix e Olavo, invadindo propriedades cercadas de arame farpado, para do alto de uma das várias colinas nuas depois da colheita da cana, olhar a cidadezinha de casas feias, cujo exemplo de fealdade ele estabeleceu da comparação entre sua moradia grosseira e a do patrão.
O trabalho nas cocheiras da casa da fazenda, que começava às cinco horas da manhã, lhe rendia um terço do salário de um adulto. Em dia de pagamento, saia do trabalho diretamente para casa e entregava o dinheiro à avó sem faltar um único centavo. Ela não dizia nada nessas situações. Recolhia o dinheiro de sobre a mesa, e como num ritual, apanhava das prateleiras de três níveis, cujo último, sustentava uma miniatura da Virgem, o bule de ágata, destampava, soltava as notas dentro, e lhe devolvia as moedas. Só depois ele ia para a escola. Em um desses dias, ele e o irmão se deliciavam com um sorvete de uma bola, em casquinho de biscoito, que ele pagava com orgulho diante dos outros meninos. Por querer, o garoto chamado Beto, fez com que Félix deixasse cair o sorvete no chão. Aí se formou a confusão. Jorge e Beto rolaram pela rua, distribuindo-se socos e ponta pés ao som da algazarra da torcida dos outros meninos.
Sua primeira briga na escola lhe proporcionou um olho roxo, joelhos e cotovelos lanhados e uma observação no caderno, em tinta vermelha, solicitando o comparecimento de um dos responsáveis por ele à diretoria da escola. Pela primeira e última vez em suas vidas o avô lhe bateu. Enquanto o cinto ia desenhado lesões em suas costas, nádegas e pernas, a urina escorrendo incontinenti lhe provocou mais constrangimento do que os gritos irreprimíveis de dor. “Filho meu não briga na rua!”.
A frase lhe causou, paradoxalmente, um pouco mais de amor por aquele homem rude de mãos grandes, marcadas de cortes das foices na lida da cana, de poucas palavras e incapaz de uma amabilidade.
Suas costas ardiam, seus braços abertos em cruz, queimavam. Precisava se levantar a tempo de apanhar o caminhão para a fazenda, se não teria que ir a pé. A avó também perdeu a hora, ao que percebia. Não ouvia os barulhos peculiares da cozinha, e parecia que até o galo do quintal esqueceu-se de cantar.

***

Tônia vinha descendo a rua estreita com casas de muros baixos, pintadas de todas as cores, para assistir, como ele, as aulas do turno da tarde. Àquela hora, o sol alto fazia tudo tremer em brumas de mormaço. Ela sentou-se ao seu lado, no meio-fio, na pouca sombra de uma mirrada castanhola de folhas caducas, perguntando-lhe sobre os machucados. Era a primeira vez que lhe dirigia a palavra. As meninas das séries mais adiantadas não tinham o hábito de conversar com os garotos como ele, de uma série inferior, ainda mais ela, diferenciada dos demais alunos por ser filha do homem de confiança do velho Coronel, fazendeiro de grandes posses, mas que nunca ostentou em toda a sua vida, um uniforme militar, e ninguém lhe batia continências, antes, lhe tomavam a benção.
Tímido no início da conversa, ele desatou a falar sobre o motivo da briga, a inveja e a malícia de Beto, e de como suportou com coragem o castigo infligido pelo pai. Na medida em que o interesse dela crescia e para mantê-la mais um pouco ao seu lado, sentindo o cheiro de alfazema, vendo seus cabelos revoltos caindo nos olhos, jogados pela brisa tão ligeira que mal levantava do chão as folhas alaranjadas da castanhola, falou de Olavo, o cão, e das pescarias aos sábados com o tio.
Ao toque da cigarra, Jorge e Tônia entraram lado a lado no pequeno pátio de terra escaldada da escola municipal.
A voz esganiçada da professora de matemática, as paredes pintadas até a metade em azul quase negro, meio fúnebre, tatuadas de diversos nomes conhecidos e desconhecidos, alguns palavrões, as bancas tortas manchadas, enfileiradas alinhadas diante do quadro cheio de contas, não penetraram a sua atenção em nenhum momento daquele dia. Ele estava repleto de Tônia. A menina mais velha que ele espreitava na hora da entrada, do recreio e da saída. A menina que jamais o olhara duas vezes, agora, no intervalo das aulas, dividia o lanche com ele e Félix, uma guloseima com a qual eles não podiam dar-se ao luxo de contar diariamente e por isso, às vezes, perdiam boa parte do tempo de recreio na fila para a merenda. Engoliam a sopa, ou leite ou mingau, afobados, de pé, para terem tempo de conseguir vaga no jogo de futebol, com a bola feita de panos e uma velha meia. As barras, gravetos fincados na areia, e não tinha goleiro.
Naquele dia, a brincadeira perdeu a prioridade. Os dois permaneceram sentados no calçamento que revestia o corredor aberto para o pátio e fechado do outro lado pelas paredes das salas de aula contíguas, sob o alpendre, enquanto Félix jogava sem o parceiro.

Um amor ingênuo surgiu. Tônia lhe punha as mais doces expectativas nas rotinas. Na verdade, ansiava pelo momento de guardar baldes e escovas e atravessar a porteira da fazenda correndo para, em um só fôlego, chegar ao abrigo de varas coberto de palha na estrada da fazenda, de onde ia de carona para a escola e lá chegava afogueado, ainda com o odor das cocheiras na pele. Trancava-se no banheiro, lavava apressadamente o tronco e vestia o uniforme; calção azul e camisa branca com botões. Então, voltava para esperá-la. Depois do primeiro beijo, trocado no susto, quando a rua ficou deserta em um rápido momento após a entrada dos alunos, ele passou a dormir sonhando com um esconderijo ensolarado, uma campina de grama macia, e Tônia.

***

Jorge tinha Félix por testemunha e cúmplice daquele encantamento juvenil inalienável, e a mim como confidente de cada minuto roubado às obrigações para se apropriarem de emoções novas, nascidas do próprio novo a transbordar nas pequenas aventuras inventadas. Uma dessas aventuras marcou sobremaneira nossas infâncias. Um desafio. Aconteceu depois de uma história contada por tio Orlando durante uma pescaria no feriado do Dia da Independência.
A fogueira acesa para assar os peixes flamejava enquanto a noite acendia lentamente a lua cheia de trás do mar. A inspiração da aguardente e da lua deixou Orlando mais falante e dramático do que era seu costume. Contou sobre um homem grande, de aparência assustadora, com uma cicatriz quase fechando o diâmetro da garganta e um nariz enorme e torto. Habitante, a muito tempo atrás, da velha choupana abandonada em um pedaço de terra acidentada nos limites da cidade. Pouco tempo depois de sua chegada, pequenos animais começaram a aparecer trucidados nas propriedades ao redor, em uma quantidade tão grande que a autoridade policial precisou ser acionada. Surgiram descrições de uma criatura malévola, com grandes presas e garras, do porte de um homem. A criatura vestida de trapos desaparecia na escuridão carregando suas vítimas, indefesas diante de tal força mortífera. Os homens da região faziam campana noite após noite no intuito de capturar a fera, sem sucesso algum. Então, atinaram que o desconhecido da choupana nunca participava das atividades da comunidade  Não era visto em nada que dissesse respeito ao cotidiano da pequena cidade. Quando uma criança desapareceu nas mesmas condições dos animais todos se enredaram em uma comovente histeria. O homem estranho passou imediatamente de suspeito a culpado. Depois de vários depoimentos confirmatórios de sua descrição após os assassinatos, o povo decidiu fazer justiça, invadiu a propriedade em uma noite assim, de lua cheia. Enforcaram o homem em uma árvore, enterraram o corpo atrás da choupana e salgaram a terra para que nela nada mais viesse a crescer.
A história não parou ali. A parte mais sinistra dela estava ainda por vir. Os nossos olhos não despregaram do tio Orlando durante a breve pausa na qual ele ajeitou as achas da fogueira.
Quando retomou a narrativa não havia sinais da leve embriaguez que o acompanhara durante toda a primeira parte da história. Contou que enquanto aqueles fatos se desenrolavam nos limites da cidade, o pai de Feliciano atirou e matou uma onça parda quanto montava guarda no engenho do Velho Coronel. A pele do felino foi exibida como troféu na única praça da cidade. A dúvida carcomeu cada dia da paz novamente adquirida. Consensualmente, os moradores decidiram que, por via das dúvidas, era melhor dar um destino cristão ao corpo do homem estranho, contudo, a abertura da sepultura revelou ninguém. O corpo sumira. Desapareceu como se nunca houvesse estado lá. Nada. Nenhum resquício. Aliviados, pensaram que o homem podia ter sobrevivido ao enforcamento e fugido, o que os eximia de um crime. O alívio durou pouco, até o dia em que uma tríade de ladrões de carga recorreu à polícia para relatar a perseguição de um homem horrendo e ameaçador, que tinha a marca de um corte na garganta e infernizava a vida na choupana que eles tomaram posse para descansar. Os ladrões passaram a morar na cadeia, pois que já vinham sendo investigados pela polícia, e aquele pedaço de terra, estigmatizado pelas aparições do homem estranho se transformou em tabu para os moradores da cidade. Vez ou outra, uma pessoa desavisada caia na armadilha sobrenatural e corria a desfiar um rosário de horrores aumentados e retocados pela cidade. Diversas versões sobre a história do homem estranho atravessavam mais de um século.
O avô Feliciano advertiu Orlando a que não ficasse enchendo as nossas cabeças com aquele assunto um tanto tarde demais, o imaginário de Jorge, Félix e Tônia já se havia contaminado da curiosidade por aquele lugar proibido.  Pela vontade de se tornarem portadores de uma grande aventura a ser contada.
Na escola, a lenda ressurgiu com força, alimentada por eles, e um pequeno grupo de incursão à preferia da cidade foi organizado. Beto, o mais cético entre todos se incluiu de última hora, ele desdenhava daquelas histórias, mas não perderia a oportunidade de caçoar dos colegas quando percebessem a grande idiotice da empreitada.
Assim, em uma tarde de tempo incerto, ora respingada de chuva ora penetrada de uma claridade branda por feixes de sol entre nuvens pesadas e baixas, eles partiram em duas bicicletas, uma que levava Jorge e Tônia e outra, Félix e Beto, rumo à choupana do homem estranho.
O casebre sem janelas e uma só porta se erguia sombrio no meio da capoeira. O que tinha sido, em algum tempo, uma árvore projetava seus galhos despidos em todas as direções, como a se defender de malfeitores. A visão dessa paisagem árida e sombria, e as lembranças das histórias provocaram temor até em Beto. Foi neste momento que o inexplicável se deu. Eles viram, flutuando por sobre o chão, na encosta do morro atrás da choupana, um homem de estatura descomunal, vestido de farrapos. Tônia foi a primeira a gritar, sentindo os pelos dos braços e nuca se eriçarem. Jorge a tomou pela mão e os quatro deflagraram uma corrida, cegos pelo medo. De repente, Tônia estacou. Félix não estava mais com eles. Havia um buraco no chão com profundidade de mais ou menos dois metros, cavado provavelmente para um poço. Era lá que Félix estava desfalecido pela queda e pelo pavor. Suas tentativas desesperadas de alcançá-lo, seus gritos para que acordasse foram inúteis.
Beto pedalou como um louco de volta até a cidade onde, passado o estupor, conseguiu contar coerentemente ao pai, o que aconteceu. De imediato a notícia chegou às casas de Feliciano e Tônia.
O risco de morte de Félix pôs um fim definitivo às suas carreiras de aventureiros, mas por outro lado, os aproximou de uma forma que só um segredo acima da capacidade de entendimento dos demais faria. Mesmo quando o avô, na tentativa de redimir um pouco a culpa do tio Orlando, levou Jorge ao cemitério e lhe apresentou um túmulo de pedras cuja cruz trazia a inscrição: “DESCONHECIDO”, e afirmou estar enterrado ali o homem estranho, mesmo argumentando que o homem fora enterrado às escondidas pelo padre da época dos incidentes que originaram toda aquela confusão, Jorge optou por calar sobre o mistério, que de certa forma, não invalidava nem era menos verdadeiro do que o dele, Félix, Tônia e Beto. Para que assim permanecesse, como algo pré-fabricado na imaginação, eles jamais voltaram a comentar sobre a aparição fora do grupo.
Agora, quando o tempo parece estacionado, a fogueira, a choupana, o túmulo, as faces pétreas do homem estranho, as ironias dos meus irmãos e dos amigos acerca de seus comportamentos durante o episódio, ao relembrarem a aventura, fundem-se em um turbilhão de cenas que eu não consigo mais delinear, pois que me parecem desmesuradas e desalinhadas da precisão com a qual Jorge as compartilhou comigo.

***

Uma grande sensação de perda experimentada por ele decorreu da conclusão dos estudos de Tônia na escola municipal. Naquela fase, os jovens tinham duas escolhas: acomodarem-se em subempregos ou continuarem os estudos em outra cidade. A primeira alternativa estava fora da cogitação dos pais de Tônia. Os recursos que possuíam lhes permitiam sustentar a menina em uma escola particular de nível razoável na capital, e estava decidido que assim seria.
Na festa de encerramento do ano, promovida pela diretoria da escola, Tônia já lhe parecia distante. Falando às amigas dos seus planos para o futuro na capital de modo desprendido. Os olhos brilhantes, inquietos, mas sempre a buscá-lo e encontrá-lo incomodado entre Félix e Beto.

            As férias, desfrutadas apenas meio período foram, contra todas as suas expectativas, pobres de acontecimentos extraordinários, a não ser por uma descoberta tão poderosa quanto impossível de ser dividida com o irmão e o amigo. Uma dimensão nova que ele e Tônia se deram em um dos últimos dias das férias, na oficina de carpintaria de Feliciano, através do beijo mais profundo e também mais doce do que qualquer outro trocado às pressas, escondido de olhos alheios, na rua da escola. Do abraço mais meigo e nu, de corpo inteiro. O fato de não conhecerem o fim daquele labirinto de sensações não os perturbou, em verdade, não teve a menor importância. Aquele momento de despedida jamais desapareceria de sua memória enquanto existisse. As impressões desse dia persistiram a tomá-lo de assalto com sua cristalinidade em instantes que surgiriam ininteligíveis para logo se perderem, tocadas de um prazer singular intrínseco que, ele sabia, vinha da presença de Tônia em sua imaginação.

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Quando ele deparou com a infelicidade ela estava totalmente despojada dos valores pueris de suas privações, meramente porque a denominação para estas não alcançava a verdade dos dias em que Feliciano, sem colheita, sem trabalho, na entre safra da cana, sentava-se a uma das mesas do boteco que reunia homens em igual situação, a espera de alguém das fazendas para contratar seus serviços. E nas raras ocasiões em que isto acontecia, a oportunidade ficava para os mais jovens, capazes de maior produtividade em menor quantidade de horas. A seleção levava em consideração, ainda, suas escolhas políticas. Era restritiva aos capatazes a contratação de trabalhadores contrários aos partidos políticos dos patrões. No meio do dia Feliciano voltava para casa, para um prato com farofa de abóbora e carne seca, e por ele dava graças no devir da cana quando em outros dias nos eram permitidas refeições menos frugais. Ao encontrar sua particular infelicidade, ela acumulava a tristeza íntegra de nosso avô e da nossa avó, a odiosidade refreada de Orlando, e foi ficando desmedida de revolta.

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     O homem chegou à noite, acompanhado de dois outros homens. Jorge o reconheceu como sendo o patrão de Orlando, o neto do Velho Coronel. Feliciano recomendou que Matilde permanecesse onde estava quando ela fez menção de recolher as cadeiras da calçada e entrar conosco. Ele intuía que a presença daquele homem em nossa casa, apesar de há muito tempo ele não nos incomodar, não era um bom sinal. Aquela tensão, a arrogância e desprezo de Olavo não passaram despercebidas a Jorge, mas o avô recusou também sua presença na conversa. A decisão de ir à busca do tio, ele tomou sozinho, sem dizer nada a avó.
Orlando entrou na sala e ficou de pé, em silêncio, avaliando as intimidações sutis proferidas contra a sua família.
Era evidente que o herdeiro do Coronel se preocupava com o bem estar dos que desfrutavam da sua proteção. Indagou se eles estavam bem instalados naquela casa arrendada nas terras de sua propriedade, se não era o caso, já que a família crescera, de se mudarem para uma mais ampla, com uma diferença de preço justa, claro. Perguntou sobre Ester com certa malícia, dando a entender aos homens que o acompanhavam, as intimidades que tivera com ela. Ah, sim! Ela trabalhava na capital, fazendo coisas incríveis para outros homens de sorte como ele. Ester era uma Deusa. Inesquecível. Qualquer dia ele os levaria para conhecê-la.
Não, ele não viera até ali para poupar Feliciano a vergonha. Precisava aviltá-lo, reduzi-lo aquém do nada para assim ter a certeza de que, Jorge, o filho bastardo, não seria empecilho em sua candidatura a um cargo político. Sua família não tinha máculas visíveis na reputação e tudo o que precisasse ser feito para que as coisas continuassem assim, seria feito.
O punho cerrado ao lado do corpo, imóvel, Orlando assistia a cena de profunda humilhação sentindo-se impotente. Olavo encerrou a visita, convidando-os a participar das mobilizações em seu comitê eleitoral.
Então, Jorge sentiu que era a hora de cobrar explicações sobre a visita daquele homem tão parecido com ele. Sobre toda aquela comoção. Aquele medo. Aos dezessete anos não era mais um menino. Se as respostas não fossem dadas, as buscaria diretamente de Olavo. A ameaça surtiu efeito. Orlando o convenceu a ir até a sua casa onde forneceu cada peça ausente do quebra-cabeça dele e dos irmãos, aceitos assim porque lhe diziam que assim era, mesmo sem a presença dos elos naturais que ligam irmãos: um pai e uma mãe. Nunca sua família soube das insinuações que os outros meninos faziam acerca da sua origem e da dos seus irmãos. Eles nunca souberam o quanto se sentia grande na sua incapacidade de dividir tanta mágoa da condição que suspeitava, e tão minúsculo diante dela.

Com a idade de Jorge, Ester possuía uma beleza infrequente, morena, cabelos e olhos negros, traços delicados, herança dos colonizadores europeus que a miscigenação não conseguiu eliminar completamente da família. Muitas vezes, Orlando precisou pôr a correr os rapazes que a assediavam, uns porque julgava escroques, outros dos quais sentia ciúmes. Venerava a irmã gêmea sem parcimônia. Mas, seus cuidados não foram eficientes contra tudo. A infâmia do clã do Coronel não tinha limites e isto eles descobriram quando ele e Ester, concluídos os estudos na estrutura educacional possível da cidade, conseguiram emprego na fazenda.
Olavo lhes revelou o caráter cínico de imediato. Suas investidas deixavam Ester acuada, a ponto de um dia, não suportando mais, abandonar o trabalho sem fornecer explicações, a não ser para Orlando, que não hesitou em cobrar providências do pai do outro. Foi então que a estratégia de Olavo mudou, desculpou-se, tornou-se cortês, sedutor, desta forma conseguindo atrair Ester para onde ele queria, e reconquistada a confiança, esbanjou gentileza, auxiliou-a na contabilidade dos negócios da família, convidou-os para as festas da fazenda, e por fim, pediu-a em namoro, uma, duas, três vezes. Quando ela, encantada com um modo de vida que os meus avós jamais poderiam proporcionar, aceitou, mais por este motivo do que por paixão ou amor, e o pedido foi repetido formalmente para Feliciano.
A gravidez de Ester aos dezesseis anos encerrou o namoro. Olavo jurou, diante do pai, de Feliciano e de Orlando, por tudo o que é mais sagrado, que nunca se deitou com ela, então, aquele filho não podia ser seu. Ele não se casaria com uma criatura desfrutável que se deitava com qualquer pária.
Foi só uma questão de tempo e a máscara desafivelou. A covardia, a hipocrisia com que aquela família tratou o caso precedeu a máxima vergonha e desventura de Feliciano e Matilde. Não havia sentido em Ester continuar no emprego nem na cidade. Abalada, sem chão, fechou-se em casa por vários dias, depois, sem a sombra de Orlando, voltou à fazenda. O pai de Olavo, mais velho dos quatro filhos legítimos do Coronel, ofereceu-lhe uma quantia em dinheiro para que resolvesse o problema da melhor maneira, sua palavra de que manteria Orlando no emprego, e seus pais na casa arrendada, depois de obter a dela de que o assunto se encerrava com aquele acordo. Então, um dia, ela simplesmente partiu. Retornou depois de quatro anos trazendo Jorge e mais duas vezes, de dois em dois anos, trazendo Félix, eu em seguida, e não regressou mais.

***

O sol já chamuscava o horizonte enquanto Orlando arrematava o drama da nossa mãe. Retirou da carteira uma fotografia, na qual ambos sorridentes se abraçavam em celebração da primeira comunhão, e entregou a Jorge. Naquela noite, meu irmão, o menino das pescarias, explorador audacioso do sobrenatural, das traquinagens na chuva, aprendiz de tratador de cavalos, desembarcou em seu primeiro limbo.
Quem era ele, afinal? Ninguém por ele mesmo. Não eram seus pais quem o referenciavam, não era por intermédio deles que se identificava entre seus iguais, ao mesmo tempo em que não podia ser aquilatado e tampouco execrado por este motivo, por aquela coletividade de ética combalida, pois ele sim estava acima dela, como atuante inerte, produto do pecado incipiente, no qual a cana era a moeda à qual os homens de poder acrescentavam ágios no desempenho de suas hierarquias, vaidades e lascívias. Um homem precisaria ter um espírito de formidável inocência para tolerar essa descoberta da qual acabara de se apropriar, uma brandura impraticável para não receber com estranheza e revolta o sofrimento que lhe trazia essa circunstância de sua origem, ainda mais não fosse, porque ela eclipsava o padrão de família.
Mas, Jorge ainda não era esse homem. Era o menino precoce a quem os avós maternos ensinaram que abrir os olhos de manhãzinha para uma vida dura de sol a sol representava a aceitação do ônus de abri-los para fazer o que precisava ser feito, pois se há um julgamento, suas atitudes determinam suas condenações, e a dos miseráveis é bem sucinta.

O amor do nosso avô era demonstrado de maneira rude, em que sobressaia a prática de uma conduta moral dissociada de uma lógica verbal, não por mesquinhez no uso da palavra, mas porque seu vocabulário era precário à teorias. Feliciano abstraía da sua própria formação que só se aprende a ser pessoa de valor, sendo.
Matilde, o oásis na seca manifestação de sentimentos do avô. O rosto sempre imperturbável fosse quais fossem as tristezas ou contentamentos que a assaltassem, somente os olhos, doces, eram caminhos para os seus pensamentos, se estendo em ato contínuo às mãos, que ela fazia pousarem na cabeça dos netos, prendendo-a para um beijo, como a selar um decreto de afeição contra a dor. Por este gesto, iniciava as curas de ferimentos físicos e emocionais até enquanto os netos não ultrapassaram sua altura, quando isso aconteceu o carinho rareou para a relevância das dores. Mas, desta vez, os ombros muito vergados, não ergueu os olhos do fogão à lenha, aceso na impossibilidade do uso do gás. Apontou o lugar onde ele deveria se sentar à mesa, inspirando lentamente, disposta a recordar um passado ao qual não deveria voltar nunca e de fato, acalentava a esperança que tal concessão do destino fosse negada, acostumando-se a não pensar sobre ele em suas derivações. Sendo as urgências de um dia as mesmas do dia seguinte, essa irredutibilidade de suas condições, em sua concepção, se justificava como fim. Ela, que fora ensinada para um comportamento no qual a honra feminina não admitia vieses, temeu e chegou a intuir dentro do coração que a nossa mãe desejou a morte diante de toda aquela vergonha como um auxílio. Sem nenhuma alternativa a oferecer, Matilde rezava à Virgem Maria e se desesperava trancada em si mesma.
Antes de Jorge deixar a cozinha enfumaçada para o trabalho, solitária do restante da família na hora em que rotineiramente o café da manhã era servido, permeava sua alma a certeza de que a revolta da avó era a mesma, apenas, muito mais antiga, e por nenhum outro motivo mais honesto ele agora estava ali. Afinal, encontrou o seu enigma, absolutamente determinado por preceitos que deixavam às orações nada para atender.

***

           De setembro a fevereiro o sol se punha mais tardiamente. A luz derreada alcançava os veios abertos nos canaviais, ficava estática entre as amplas cortinas verdes e a atmosfera repartida, depurada e, embutindo porções de cor amarelo-dourado nas folhas agudas da cana, refratava-se com a gentileza que tem os pássaros no céu cheio de azul a mudar com o sol. Ao bucólico fenômeno óptico sucedia os correlatos panoramas de desolação em preto e cinzas. Terra preta coberta de cinzas, colmos tingidos de preto, homens, mulheres e crianças amputando os colmos, virando cinzas, virando cana, revirando a miséria calculada em toneladas, remunerada em ninharias. Sobretudo, o ciclo anual da cana adubava-se de fome e no verão ela reduzia seu tamanho sem, contudo, suprimir a debilidade ardilosa, a velhice prematura, sentenciadoras do tempo de vida útil do cortador de cana. Em seis meses de cada ano, os seus dias se tornavam mais compridos e suas vidas proporcionalmente mais breves.

Na estação chuvosa os ventos do Atlântico perpetram um balé sereno aos canaviais. À noite, à sombra das luas, descansam em movimento, se insurgindo da terra, expelindo seus nós, rangendo folhas no interlúdio entre o suor dos cortadores e a moenda.

Em alta hora da noite, vigiada apenas pelos bichos da escuridão, Jorge e Beto iniciaram a ignição da cana do Coronel. A partir de quatro pontos, a queimada em círculo, do exterior para o centro, deixou sem salvação pequenos animais da plantação ainda jovem, tangendo-os cada vez mais para o interior da armadilha incandescente, no dia seguinte, corpos amanhecidos que ninguém lamentaria, e a cana não se prestaria mais a combustível ou açúcar, nem ao menos para a mais travosa das aguardentes. Na fazenda do Coronel, o balé extemporâneo foi de chamas, o resto fez o vento.

Eu acreditava que se contrai a qualidade de bom ou mau das tendências que as pessoas instigam. Certas situações atribuem ao seu contexto uma dualidade distinta para cada entendimento, nesse sentido, um segredo compartilhado só é elemento de ligação enquanto resguarda o pacto mais enorme do que suas razões, porém não eram dessas considerações que se valia o ímpeto de justiça de Beto e Jorge para o ataque ao patrimônio do pai deste último, mas da cumplicidade acima do bem e do mal. Na praia, para onde foram livrar-se dos fumos da queimada, indagado sobre os motivos, Jorge apenas respondeu: “Eles me devem.”

Uma dívida que teve a paga do desagravo convertida em benefício quando, na tentativa de salvar a safra, trabalhadores foram contratados para fazer o corte antecipado da cana, inclusive Feliciano. Naquele ano, aos seus dias de inverno foram decrescidos dias que o verão já roubava como alternativa garantida, porém ele pode comprar uma cabra.

***

Jorge partiu em um domingo de manhãzinha, quando a claridade dos primeiros raios de sol invadindo as rachas das duas janelas da sala, revelavam aerossóis em agitação na casa às escuras, onde todos dormiam alheios a que ele nos deixava um pequeno milagre futuro e um bilhete no qual dizia que ia a procura da nossa mãe. E depois, não tinha certeza.

A friagem trazia o cheiro de mato orvalhado, folhas mortas e mosto, atravessando a trama fina da minha camisola desengonçada. Antes de desparecer junto com a estrada, ele se voltou uma vez para despachar Olavo, me acenou e ajeitou o saco de viajem no ombro, como se oscilasse na vontade.

Por um longo tempo, tivemos notícias somente através das cartas que chegavam duas vezes por semana, a maioria delas endereçadas a mim. E por um tempo que dura até agora, de todas as lembranças dele, estas são as que me tomam mais inteiramente os sentidos, não necessitando o intermédio da imaginação. As lembranças posteriores vêm com a impressão de eu me ver arrastada para as catarses que ele incluía nas descrições em pormenores das suas tristezas e conquistas, algumas delas, ocultadas nas leituras que eu fazia para Feliciano e Matilde, em quem o abatimento deu mostras de ceder a partir da certeza de que não era a eles que Jorge rejeitava como filho ingrato, mas ao seu passado, e era justo que não desejasse estar tão perto dele, muito embora o levasse consigo aonde fosse.


***

Nessa terra de homens duros, a necessidade do pão de todo dia penhorava suas almas à esmola do trabalho, os poupava do espancamento como cães nas ruas, ainda que a fome fosse justificativa para o ato de roubar. Cada homem e mulher tinham seu dono com poderes extensivos à família. Cada homem e mulher com idade bastante tinha o direito de defender seu dono a troco de pretensa ideologia política que todos acreditavam possuírem alguma. Um trabalho mal remunerado honradamente para si ou um parente; um hectare bom para uma lavoura; algum material de construção. Nas eleições, a pobreza acendia euforia, esperança, e a benevolência enganosa, avara, do muito que faltava.

Os seus donos os identificavam social e politicamente; “Fulano é de Sicrano”. E todos eles acreditavam piamente que Sicrano faria por Fulano, depois de eleito, o que não faria por si primeiro, garantir abastança às suas próximas gerações. O Sicrano de um era sempre mais bondoso e íntegro do que o Sicrano de outro, e tal crença nessa generosidade e honestidade provocavam rixas de morte nos currais eleitorais agrilhoados à miséria, da qual muitos perdulários se pensavam isentos por estarem do lado certo quando esse lado era o que detinha as melhores oportunidades de oprimir e enriquecer. Os tentáculos das dinastias, transferidas dos Sicranos para seus familiares ou sócios partidários alcançavam a capital, rica e paupérrima em proporções definitivamente desiguais. Um mínimo de muito ricos, um máximo de muito pobres, e um meio disputado como cabo de guerra, no qual os grandes negócios estavam, mas onde a diversidade dos padrões de vida obstruía a supremacia de uma ou outra dinastia política, e não se podia contar com a lealdade de uma boca esfomeada, uma doença de difícil tratamento ou a necessidade de uma moradia.

Essa terra jamais havia se separado do germe de sua origem subserviente e mansa, embora tenha, no seu passado, a custo da exploração da sua gente, ajudado a prover o luxo e o desperdício nas Capitais Federais, mais do que qualquer outra terra, da qual fazia parte a parte, como um membro inconveniente e sem uso que, no entanto, não podia ser extirpado, pois tinha lá sua importância sendo o que é, e cuja desfiguração não assumia proeminência econômica no todo do país, a não ser em época de eleições majoritárias, mas era apenas isto. Os fardos coletivos, nunca sentidos por nunca o terem percebido, tal o excesso de necessidades desiguais, faziam Sicranos e Fulanos cativos no mesmo estorvo para com regiões mais prósperas do sul e sudeste, de necessidades menos diversas, nas quais a competição se mantém da competição, articulando os mesmos resultados sociais por vias de inconsequências éticas e políticas.

Essa terra é um círculo no interior de outros maiores, no qual o papel pressuposto de quem tem menos é perder para quem conseguiu juntar mais, num contexto em que a ignorância se oferece fartamente, no intuito de que as tradições políticas se mantenham acima de qualquer ideologização, que se emergida, logo recebe a atenção insidiosa dos que mantém o poder, seja religioso, econômico, ou político, e qualquer desses que se dispusesse a libertar, o fazia dos outros donos para si. Toda ousadia era marginalizada.

         O torrão cujo trecho mais confortável da via crucis de quem parte é o retorno, não trouxe o meu irmão de volta.

***
 
Jorge admirou na espreita a aparência obscurecida da mãe através de toda a rua. Convenceu-se de que as tormentas mais ameaçadoras são as que vibram tranquilas na superfície do indivíduo e não as que se lhe arrogam, como se pudessem realmente compreender, e por essas percepções, os caminhos de uma remissão se tornassem menos trágicos ou banais. Ele a conhecia por ele, por suas latências iguais. Teve certeza que a estanqueidade de todos os tipos de amores em sua parafernália romântica, como coisa inventada e enfeitada para a eternidade da alma não intervém no amor excepcionalmente concebido no instinto cruciante de amar. Descobriu que a amava e sentia raiva, sem outras escolhas, e, era desesperadoramente tarde para laços jamais atados, tardança com o predicado natural da primeira infância, esta que as mães embalam do lado esquerdo do corpo por imposição misteriosa, porque no escuro do útero as batidas ritmadas do coração são os primeiros e únicos rumores que um ser humano conhece, e fora dele tem sua primitiva identificação, como se o chamassem de um nome que ainda não é capaz de entender e não obstante é familiar. Então, Jorge teve pudor em chamá-la de mãe, e quando ela se voltou para atender ao chamado pelo seu nome, o reconheceu com temores de dúvida. Depois de infinitésimos de segundos, no qual o passado e o futuro, obscuros, fundiram-se, ela o convidou para os seus braços como se a felicidade estivesse muito próxima de ser um perdão enquanto persistisse o espanto do repentino encontro.
               Na rua de pedras portuguesas e flores aprisionadas em desenhos encardidos de sujeira, à sombra da marquise do prédio mal afamado, onde ele a esperou desde muito cedo, os braços dela, estendidos, os desamparou. Eram estranhos repartindo a perfeição dos desgastes influenciadores das ocasiões de se amar, e por não saber exatamente o que representava aqueles sentimentos ele não se moveu. Não fora obter nada. Nada ele poderia querer da vida de uma mulher que para uns fora a prostituta do alívio rápido. E aliviados, eles desapareciam sem deixar rastros. Para outros, a outra. Uma fraude romântica com alguma permanência, que atenuava pieguices sentimentais prorrogadas na hipocrisia e ódio de cada qual. Para ela, alguns tinham sido menos do que animais polidos, outros, poetas perdidos em desejos, mágoas, autocomiseração, piedade pelas dores do mundo, e deslumbre embaçado. Também passaram. Na pouca idade de Ester as mazelas suas e de todos eram tão imensas. Dela, ninguém saberia por onde começar a querer. Nas palavras objetivas, nos gestos seguros, no rosto pronto para o desfio que encobria suas fragilidades, deixava evidente: o que havia feito para sobreviver não a definia, embora ainda a enquadrasse.
Ele ficou em companhia de nossa mãe e da atriz de teatro com quem ela dividia o apartamento por mais seis dias, nos quais não foram feitos planos. Reportou-lhe os fatos recentes da família, vendo os olhos dela brilharem mais intensamente a menção dos nossos nomes, meu e de Félix. Incluiu a vingança contra o pai, que não foi a favor de Ester, mas dele próprio, Jorge, motivo que o levou a abandonar a cidade, para que os avós e o tio Orlando não sofressem represálias. Ester riu, mas estava triste. Nossos desdobramentos eram  intervalos cegos nas nossas existências. Tão inversos e convergentes.

O dia 18 de Dezembro de 1964 permaneceu entre nós com jeito de emblema. Através de um armador que devia favores à nossa mãe, Jorge entrou em um navio cargueiro que viera buscar açúcar e desceria para o sudeste. Ele trabalhou para pagar a viagem, sem recusar nenhuma tarefa. Ester lhe deu dinheiro e recomendações de quanto mais ficasse distante de prostitutas, jogadores e ladrões, maior a possibilidade de a viagem ser bem sucedida. E por derradeiro, no porto, sobre os paralelepípedos azulados da rua cortada por trilhos de bondes aposentados, o abraço invariável de despedida que se não apaziguava o passado o fazia subjetivamente como futuro. Perdendo-o em mais uma ocasião, dessa vez para um orbe maior, Ester não o abandonou. Sendo a solidez fugidia, a constância não é um momento vulgar. O que nos repercutiu  foi essa absorção, a partir da primeira longa carta que Jorge nos enviou.
  
***

O terço de contas, pendido no lírio burilado no espelho da cama de Matilde e Feliciano, imitação grosseira e barata do estilo Luís XV, já não brilha sob as espessas camadas da seda das aranhas. O colchão de palha, cuidadosamente escondido sob um lençol sem absolutamente uma única ruga, fazia um barulho moído quando eu, revoltada, protestava contra o pente de osso que a avó arrastava nos meus cabelos com a ajuda do óleo de coco. Uma pendenga diária antes de eu ir para a escola ou para a Igreja. Inúmeras vezes a lembrança do cheiro do óleo me trouxe para dentro deste quarto estreito e calorento. O mosquiteiro azul-natier desbotado, decorado de furos e ciscos, descendo de uma ripa do teto, sobre a cama. O guarda-roupa escuro de três portas, todas tortas, que entre os panos, guardava o baú do meu avô, uma caixa de madeira revestida de linóleo, de tampa abaulada, que ele comprou como prestamista de um mascate da capital, na qual retinha o passado. Dinheiro fora de circulação, convocações para missas de sétimo dia e os santinhos dos finados, recortes de jornais com as fotografias de homens da política e correspondências, arranjadas em maços amarrados por fitinhas verdes e amarelas que ganhávamos na escola quando participávamos dos desfiles do Dia da Independência.

Na foto do santinho, o rosto vigoroso e pálido do Velho Coronel aparecia destacado pelo linho negro do paletó, entre bem desenhadas suíças brancas. 
Mesmo antes da extrema-unção, os portões da sede da fazenda foram abertos para os que ele costumava chamar de ‘meu povo’ em discursos coloquiais no âmbito de entendimento dos seus eleitores.
Pés descalços, galochas e os sapatos de verniz da elite rural desfilaram em romaria sobre as passadeiras e tapetes italianos das amplas salas.
Félix ficou sentado em uma das várias namoradeiras espalhadas pela casa enquanto esperava a próxima rodada de refrescos e olhava, agastado pelo sinistro das caras e palavras funéreas, o choro talentoso das carpideiras e ouvia os murmúrios graves de homens que não tinham conseguido proteger suas filhas virgens do poder do Velho Coronel sobre todas as criaturas de suas terras. Suas deferências ao momento extremo que glorificava o mito tinham também o refinamento do escárnio complementando a farsa da comiseração.

Velas e incensos eram queimados de manhã à noite, e com os olhos ardendo, eu e a avó acompanhamos um pequeno séquito trabalhador que retorcia os chapéus, pelo corredor, à penumbra dos aposentos do Coronel. Seu estado era quase de humanidade, purificada na agonia. Nada não era tão íntimo daquele homem indo à prenhez de sua morte quanto esse supremo instante, e, nele alguns o amaram para depois esquecê-lo a ponto de não correlacionar o nome em placas de rua a imagem vendida nas campanhas eleitorais. 
O velho padecia agora da santidade de todo homem com a mesma idade de sua carne, quando ela não é mais capaz de respostas aos entusiasmos e tragédias da vida. Quando não há mais nada a ser incitado a não ser a magnanimidade do Deus que o desafiou com retóricas inventadas e expropriadas do homem para revelá-Lo.
Cumpridas as delicadezas sociais, Matilde nos levou diretamente para casa e à noite, depois de retirar a mesa do jantar, contou a Feliciano sobre nossa visita a casa da fazenda. Ele não foi ao enterro do Coronel dois dias depois. O único respeito que conseguia demonstrar à família do morto era com a sua imperceptível ausência.
Mais tarde, eu voltaria a cruzar, por minha conta, a alameda de pedras ladeada de altas palmeiras imperiais, a fim de uma entrevista com a avó paterna de Jorge. Eu tentaria arranhar a suscetibilidade dela para algumas vírgulas, pontos finais e reticências que foram secando em hiatos na voz das cartas.

***
  
Por baixo das águas do Atlântico armas trazidas pelos fomentadores do golpe de 1964 asseguravam mais uma das várias etapas da Guerra Fria no Continente. Em praias desertas ao sul do porto, embarcações, algumas sem bandeiras, e tripulações tensas, eram vistas aqui e ali, disfarçando não se tratar de uma esquadra. Duas coisas preocupavam o Comandante do navio: os piratas e presenciar o que não era para ser visto.
O mundo vivia intenso transe político-ideológico polarizado entre comunismo e capitalismo sobre os quais apenas ouvíamos falar nos sermões do Padre, para quem dar ouvidos aos pregadores das Ligas Camponesas era aceitar preleções do próprio Diabo. Que toda pobreza fosse compassivamente franciscana, santificada, e assim sendo, não existia na Terra. 
“Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a nossa Igreja”.

Verbalizar a pobreza como forma de reivindicação de melhoria das condições de vida era se apoderar de outro tipo de autoflagelo. Era proibido afirmar que ela existia, mais ainda, necessariamente para os que precisavam dela, e os vendilhões de ombros estrelados, como tio Orlando insistia em denominar os que estavam entre o poder superior oculto e a instabilidade do Governo, cuidavam para que tais premissas fracassassem em seus significados, violentamente, em prol da prosperidade da Colônia em adolescência.
Alheio a tudo, Jorge se limitava a cumprir com as tarefas e seguir à risca as orientações dadas à tripulação. O mundo ainda lhe parecia um balão displicente.

Quando tomou o ônibus do porto para a capital financeira do país tinha dinheiro no bolso para manter-se por duas semanas, nas quais teria que conseguir trabalho e moradia. Para preparar o seu destino naquele mundaréu opaco. Os bloqueios do Exército na estrada tornavam o percurso mais demorado do que era na verdade.

Na tarde impregnada de fumaça, o rio que cortava a cidade cheirava a garapa da cana quando se decompunha. O rio se decompunha sob os dias insuficientes de sol. Sob as noites sem estrelas. Pouco a pouco. Suas águas seguiam turvas pela metrópole. Como gente. Limpo no início e limpo no término, entretanto, no meio é onde se exala como proposta de existência, e era tão menos importante do que ar sequestrado pela fumaça.

O enorme número de desvalidos o espantou, e ele olhou cada rosto agradável e hostil que também o olhou, mendigos, malandros, e prostitutas. Trabalhadores saindo de lojas e escritórios, chegando dos bairros industriais, indo para casa dormir, acordar, trabalhar e fazer tudo de novo. O progresso tinha mais variedade de pobreza.
A cidade o aterrorizou e marginalizou. Antes tinha um dono agora não tinha nada além da massacrante impressão de ter perdido a si mesmo. Pertencer a alguém eliminava a competição, a luta por espaço, por dinheiro, por ar. Desejou a antiga miséria de volta, havia mais dignidade nela, lhe era pessoal. Esta outra, desordenada e disputada como sobejos o recusava. Ele não queria ser parte dela tanto quanto ela não o queria.

A partir desse período, pequenas quantias passaram a chegar regularmente através dos Correios, depositadas por Ester. Muitas vezes, esse dinheiro socorria o mês, impedindo o oco grande demais do armário da cozinha de Matilde, e já o amor-próprio de Feliciano se imobilizava e envelhecia junto com ele.

***

Os canteiros feitos de dois pneus velhos, meio encravados no terreiro em frente da casa, um de cada lado da entrada, transbordam trevos delicados, uma novidade do esoterismo, comprada na feira, na época em que Matilde plantava o jardim de flores silvestres e ervas cujas folhas significavam amor, fé e esperança, fazia o divertimento de Félix na busca da quarta folha, a sorte.
Sentada no batente da porta com o sol a declinar na noite, negando-se às andorinhas que principiavam a procurar o aconchego das copas amareladas das árvores ao longo da estrada, vejo nitidamente os pulsos magros e as mãos de Félix, sujas de esterco seco, empurrando as raízes da planta para dentro da terra dos pneus, como quem planta sorte, sob a supervisão de Feliciano.
Éramos nós dois também, que impacientes, catávamos e combinávamos retraços de tecido para que Matilde costurasse em sua lubrificada e taquilálica máquina de costura, as roupas dos mamulengos das nossas brincadeiras como quem costura amor. Na qual ela costurou as roupas das nossas Crismas e  Natais, como quem costura fé. E todas as outras para a escola e o trabalho, como quem costura esperança.


São Paulo, 17 de Janeiro de 1965.

Querida Natália,

Espero que esta encontre todos bem.

Já morro de saudades da nossa terra. Das conversas na calçada, à noite. Das lorotas do tio, do arroz com carne seca da mãe, até da intransigência de pai e das bobices de Olavo. Félix está bem? Ele conseguiu passar de ano na escola? Antes de eu sair daí ele estava fazendo corpo mole para mostrar o boletim. Sinto muitas saudades de você.

Agora, moro em uma hospedaria no centro da cidade. O dono é um árabe matreiro em questões de negócios que me fez pagar toda a hospedagem adiantada, em um andar com banheiro coletivo e mal cheiroso. Divido o quarto com um representante comercial, um estudante de universidade, um velho nobre decadente do café, segundo ele, e um boêmio comunista de muitos amigos e mulheres.

Deve haver alguma beleza natural aqui, mas não descobri ainda.

Procuro trabalho, mas todos me cobram certificado de alistamento militar, terei que fazê-lo, enquanto isso, o árabe me dá alguns trocados para que eu mantenha a hospedaria limpa, apesar das traças, baratas e ratos.

Juro que pensei em voltar para casa. Pensei até em ir à uma rádio, na qual segundo informações do nobre decadente do café, Seu Adolfo, uma artista popular ajuda a devolver pessoas desgarradas de volta às suas casas. Mas não fui. Pensarei sobre isto se for rejeitado no serviço militar. Nele eu teria casa e comida, por enquanto. E quem sabe, com o tempo, uma promoção me faça ganhar mais?

Agora, sinto-me como aquele menino ajudante do cego da praça da igreja. Lembra? Aquele que era espancado e xingado pelo cego, e mesmo sabendo que ele não poderia alcançá-lo se se escondesse ou corresse, permanecia parado com sua lealdade burra, a receber safanões e palavrões. Félix disse que deu vontade de pegar as esmolas, jogar longe e fazê-lo ir buscar. E tio Orlando, disse: “Eles se entendem. Amanhã os verá de novo aqui, dividindo o mesmo pão que o diabo amassou, mas que só tiveram para amassar pela falsa caridade dos que incentivam o comodismo e a fraqueza”.
São poucas as alternativas, mas hei de conseguir retribuir o esforço do avô e da avó por nós.
Sinto saudades da mãe, também, não aquela que eu sentia por não tê-la, mas a de ter sido sem ter de fato. No fundo, acho que são essas saudades que me fazem amá-la, mas acima de tudo, ela me conhece e aceita sem que me tenha.
Assim que puder vá vê-la, e convença Félix a fazer o mesmo. Muitos anos se perderam, e neles o que havia de definhar já definhou, inclusive, qualquer maledicência e vergonha que não foram nossas.

Abrace todos. Todos me fazem falta.

Beijos do irmão que te adora,

Jorge.



São Paulo, 8 de Janeiro de 1966.

Querida Irmã,

Espero que esta encontre todos bem. Por mim, já nem sei. Sou obrigado a ir a lugares onde ensinam a extrair a dor nas pessoas.

Nesta semana vi o Juca, aquele estudante de engenharia com quem eu dividia o quarto na pensão, chorando e babando, sentado sobre as próprias fezes. Colocado estrategicamente numa cela com duas moças e um rapaz, encapuzados. Contava o que tinham feito a ele, e eu quase podia ver o horror e o medo que eram aquelas pessoas por baixo dos capuzes.
Reconhecendo-me, cuspiu no meu uniforme com tanta força, mas nem de perto se igualava a força do seu ódio. Eu nunca lhe fiz nada. Ele não é exatamente um amigo do qual eu pudesse matar a amizade para retomar uma indiferença que existisse por não conhecê-lo. Nós somente habitávamos o  mesmo teto fedorento ao lado de corpos de baratas e traças secas. 
Eu achava que as únicas guerras que ele travava era com o sono das ressacas, as cuecas sujas que se escondiam no armário, o rádio frio da sala de espera, no qual batia para acender as válvulas quando queria escutar as notícias, e com os ratos que esmigalhavam seus livros caros. Lutas de inércia. Eu o subestimei, ele tem uma causa.
Não havia nada que eu pudesse ter feito por ele sem correr perigo na carne, os do espírito eu não contabilizo mais. 
A época é de temermos e odiarmos o que representamos uns para os outros. O nosso mal maior levado aos extremos por espécies diferentes de liberdade, tal fosse preciso doer, e, fazer doer por elas. Não há como dizer qual restará, no entanto, como posso gostar de sentir esse respeito por mim mesmo que vem do desprezo, do ódio e do medo alheio, como se os meus estivessem mortos?
Na caserna, no rancho, nas latrinas, nos treinamentos, ensinam-me a ser igual a todos. Nas ruas, me obrigam ao que eu não desconfiava de mim.
Juca foi dedurado pelo Nobre Decadente do Café. Portava cartilhas subversivas que ensinavam terrorismo. Pelos bons préstimos à nação o Nobre recebeu dinheiro da caixinha de empresários e comerciantes do bairro.
Ninguém está seguro, minha irmã. E por isso, peço que todos fiquem longe de contendas políticas e ideológicas, mas especialmente, converse com tio Orlando. Um deslize pode nos custar muito mais que uma palavra.

PS: Junto com esta, envio o vale postal.

Jorge.
***

A tarde ensolarada resplandecia tudo ao redor da casa da fazenda, aumentando a amplitude brilhante dos verdes gramados que a circundavam. Eu esperava algum trabalhador vir atender ao toque persistente do sino de bronze, cuja corda eu puxava com uma mão insegura, enquanto a outra  agarrava os varões de ferro fundido que terminavam pontiagudos, em latão oxidado pelo vento marinho. Agarrava-me ao desejo de que a ousadia, mentalmente ensaiada, não me falhasse.

O homem velho, de rosto amarfanhado e curtido de sol, veio caminhando lentamente com suas canelas secas, onde as calças se enrolavam até a metade, e com um sorriso educado faltando alguns dentes, estendeu a mão para receber o pedaço de papel no qual eu me identificava e solicitava uma conversa particular com a avó de Jorge. 
Transcorridos mais de quarenta minutos do desaparecimento do homem pelos fundos da casa, tempo em que, certamente, a avó de um dos políticos mais ativos em favor da bancada ruralista no Congresso Nacional se interrogava dos motivos e implicações do meu pedido, quando eu já pensava em ir embora, o homem ressurgiu na alameda com seu passo lépido, me dando acesso ao interior da casa onde entrei pela cozinha, na qual três trabalhadoras, acostumadas ao tráfego de pobres de toda a sorte que iam pedir benefícios políticos, não deram conta da minha passagem.
Ela estava de pé, ao lado da porta do pequeno aposento bem iluminado, apesar do revestimento escuro de lambri. Seu porte extraordinário ficava ainda mais impressionante no vestido bege de corte reto e futurista. Então ela me olhou dos sapatos gastos e empoeirados aos olhos, e a vontade que deu foi me desculpar e voltar sobre os calcanhares, entretanto, certa amabilidade na voz bem modulada que pediu para que eu me acomodasse numa das poltronas impregnadas do cheiro de extratos franceses, me fez sustentar o olhar castanho claro, encimado por uma cabeleira tingida de tinta importada. Vários retoques de laquê não permitiam o escape de um fio sequer.
Tentei relembrar brevemente, apenas para que reavivasse a memória, sobre as relações de minha família com a dela, foi quando entendi que nada do que havia se passado desde a demissão de Orlando e Ester da casa da fazenda era do seu conhecimento, em verdade, no período em que se deram os fatos ela estava em uma de suas muitas viagens pela Europa. Embora acreditasse que pouco pudesse intervir para o reconhecimento da paternidade de Jorge, pois o falecido Velho Coronel não fazia distinção entre coisas de família e coisas de política, a não ser quando as de família, e relacionamentos escusos, dos quais alguns ela tinha conhecimento na vida do patriarca, fossem ameaça ao patrimônio. Dona Maria Alice, que teve o casamento arranjado em função de interesses comerciais, se acostumara a permitir que o Coronel gerenciasse todos os aspectos de todos os negócios da família.
Havia surpresa comedida em cada uma das perguntas que me fazia, como se encurralada pela nulidade dos anos dedicados a buscar compensação para a falta de amor do marido nos supérfluos que ele lhe proporcionava. Como se sentisse exigida por uma espécie, agora consciente, de desleixo para com os laços de sangue.
Por último, lhe entreguei a mais recente carta de Jorge e uma foto dele metido em um uniforme militar. Deixando a carta sobre a mesinha de centro, ela foi até a grande janela aberta para o pomar de tangerinas e ficou a contemplar o rosto bonito do meu irmão por vários minutos, em silêncio. Não havia como negar a semelhança com o seu filho.
Antes mesmo de ler a linha final, numa compreensão que me poupou argumentos obsequiosos, ela perguntou: - O que eu posso fazer por vocês? - O que puder fazer para tirar Jorge do país.
Encontramo-nos dali a uma semana na missa de domingo, ocasião em que a simplicidade elegante das suas roupas e o véu delicado de renda regional a fazia parecer uma senhora comum. Nossos olhares se cruzaram e ela, num sinal quase invisível com a cabeça, deixou claro que mais do que me saudava, tinha uma saída para o grande problema que me consumia.
O embrulho me foi entregue na saída. Félix, Matilde e Feliciano conseguiram segurar a curiosidade até estarmos em casa, mas só por não terem reconhecido a avó paterna de Jorge, em contrário, Feliciano me faria devolver qualquer favor que cogitasse estar recebendo daquela família. E eu precisava de tempo para fazê-lo compreender a gravidade do perigo que Jorge corria. Agora, era o momento de falar, aliviada, sobre o que eu escondia de algumas cartas dele.

***

São Paulo, 05 de Setembro de 1969.

Natália,

Esta é a última carta que envio como cabo do Exército Brasileiro. Ainda posso fazer isto com relativa confiança, depois não mais.
O pai de Tônia se adiantou na viagem ao Rio de Janeiro, para onde ela será transferida. Aqui é presa incomunicável. Contra ela pesam inúmeras acusações. Bem sei que a maioria delas, suposições, por causa de sua participação na Aliança Libertadora Nacional. O pobre homem parecia um molambo. Ainda que tivesse trazido um advogado para representá-lo de nada adiantaria, quanto mais uma cartinha de apresentação do patrão, cujo nome não teve nenhum significado para o Oficial de Dia. Quero achar que foi melhor assim. Ele não suportaria ver o estado em que Tônia se encontra como eu não suportei. Economizo os detalhes e efeitos das sevicias sob as quais qualquer um confessa até o que não fez. As atrocidades físicas e morais destroem crenças, no país, em Deus, nos homens. Entes sãos viram animais pensantes, acuados pela fome de liberdade e desejo de segurança, e a conclusão a que se chega é que as duas sujeitam. A justiça dos homens, falácia paralela em campo de batalha de direitos individuais assassinados.
Sofri por não poder tranquilizá-lo, ao menos quanto às decisões que eu tinha tomado. Os planos que tinha feito para tirá-la daqui. Mas, se tudo correr bem, a viagem dele ao Rio será em vão.
Estou fazendo uma escolha, minha irmã, pela primeira vez na vida. Se a errada, torço para que o erro valha à pena. E que Tônia sobreviva para se lembrar de que um dia me amou de modo tão genuíno quanto os sentimentos que tenho por ela e nunca me abandonaram. Se não, inventarei algum que nos faça justiça, não posso lançar mão de realizá-lo.
Nenhuma das minhas cartas deverá ser respondida, de hoje até que eu avise. Amanhã serei um desertor e estarei nas listas do Serviço Nacional de Informação.
Depositei tudo o que me foi possível em vale postal. Peça desculpas ao avô e a avó.
Destrua esta e todas as outras cartas que possam ser comprometedoras. E não se atormente, pois de todo modo eu ficarei bem.

Abrace a todos.

Jorge.

***

O quarto que eu ocupei agora me parece absurdamente pequeno. A alvenaria, pintada de verde degenerado em matizes ocres das penetrações de água das chuvas na parede do fundo, levou Feliciano instalar a cama de armação em ferro, que rangia, entre a parede lateral e a porta. E assim, antes de ele vir apagar a lâmpada incandescente na chave do bocal, às nove da noite, eu ficava a decifrar os desenhos que se formavam ao redor da janela basculante, com alavanca que já tinha sido mais funcional.
Como foram lúdicas aquelas manchas. Lebres perfeitas se modificavam em borboletas e bois chifrudos, peixes em leitões gordos, papoulas, lagartos, gafanhotos ou em gente. Metamorfoses fluidas gravadas pelas chuvas.

Um conhecido de Feliciano, que fazia o transporte de engradados com aguardente três vezes por semana para a Capital levou a nossa mensagem para Ester, escrita na prancheta portátil que eu usava para carregar os cadernos amarrados com elásticos. Quando eu terminei, Félix, na impaciência de por palavras em minha mão, já tinha respingado calda de doce de banana por quase todo o lençol. Naquela noite o rigor na economia de energia elétrica foi quebrado, excepcionalmente, como acontecia em casos de doença. Então, Félix foi ao quarto de Feliciano e Matilde ler para eles o conteúdo da mensagem.

“Mãe, necessitamos tomar algumas decisões que implicam no destino de Jorge. Por ora, basta saber que ele não está seguro. Existem muitos pontos que precisam de orientação depois que conseguimos algum dinheiro com Dona Maria Alice. Os avós e tio Orlando gostariam que a senhora viesse auxiliar a tomar essas decisões. Mãe, nós temos urgência.”

Natália.

No dia seguinte ela chegou pela porta dos fundos, por força do hábito que praticava raramente. Eu e Félix só conseguíamos olhá-la dos nossos lugares na mesa. Feliciano, vencida a névoa da catarata, ao se aproximar de Ester, simplesmente abriu os braços para a filha, Matilde em seguida. Só então ela veio para nós sem impor nada, nenhuma palavra ou carinho que pudesse parecer falso ou premeditado. Terminado o jantar a avó se encarregou de colocá-la a par dos motivos pelos quais a chamamos. No pacote que me foi entregue por Dona Maria Alice havia uma considerável soma em dinheiro nacional e estrangeiro, o título de posse da casa em que morávamos, um nome e um endereço em Marselha, na França. A minha mãe era uma mulher de conversa rápida, sem nuances de rancor. Neste quarto, conversamos baixinho até o sono vir, de madrugada.

***

Um diplomata norte americano fora sequestrado no dia anterior à data da carta de Jorge. Tanto os sequestradores quanto os presos políticos para os quais eles exigiam a libertação seriam caçados como bichos pelo Regime. Ouvíramos a leitura do manifesto que exigia a soltura dos presos em cadeia nacional de rádio. A voz do locutor me dava paúra. Havia algum tempo, nada de bom vinha após essas interrupções na programação normal das rádios. Embora as baixas do lado dos militares fossem incomparavelmente menores as dos revolucionários, ficávamos apreensivos juntos, aqui, em frente ao velho móvel recoberto de fórmica azul e branca, onde havia um rádio, diante do qual Matilde rezava o terço na hora do Ângelus.
Eventualmente, Tio Orlando aparecia para filar o jantar e depois de a Voz Do Brasil, as discussões políticas entre ele e Feliciano eram inevitáveis. Se inflamado pela aguardente, parecia mais subversivo e intolerante do que quando sóbrio. O consenso político entre eles era tão inverossímil quanto o religioso. A trégua vinha no silêncio acomodado lento, em espirais de fumaça de fumo envolvido em palha de milho, que tomava a sala e se perdia pelas gretas das telhas inglesas.
Os apelos persistentes de Matilde, até então, o havia mantido longe da Liga Camponesa. Mas, era evidente que a inércia diante da opressão disfarçada o desafiava, e foi com diligência que juntamente com Ester elaborou sua ida para São Paulo. Conquanto ele soubesse que a profissão de Jorge de forma alguma se alinhava com seu ideal político e existencial, ficou feliz em pensá-lo fora das Forças Armadas. A ordem era uma ilusão.
A exorbitância do preço da passagem de avião era mínima diante da urgência que havia.  Orlando partiu imediatamente para a Capital e de lá para São Paulo. Após cinco dias de buscas, ele foi encontrar Jorge e Tônia escondidos na despensa da pensão do árabe. Tônia estava em estado lastimável, pálida como que exangue, os cabelos cortados rente, ainda vestia as roupas do dia em que foi presa.
O comunista boêmio recrutou militantes do MR 8 para auxiliarem no resgate de Tônia em uma emboscada na qual o grupo também simulou o rapto de Jorge. A mentira só vigorou vinte e quatro horas, e então ele passou a ser procurado pela Polícia do Exército. Um dos rapazes do grupo havia caído, e sob tortura, entregou os detalhes da operação. O comunista fugira, alertado sobre a prisão do companheiro, o que não evitou as batidas regulares dos policiais, que ao revistarem a despensa encontravam pilhas de caixas e sacas, com ratos circulando entre elas, a perfeita barreira entre a polícia e os fugitivos.
A hospedagem inusitada rendeu ao árabe quase todo o dinheiro de Jorge, e como Tônia demorava a se recuperar, ele economizava para o caso de ser preciso chamar um médico, pois procurar um serviço se saúde seria o mesmo que se entregar. De noite, saía por pouco tempo em trajes civis, retornava com sopa quente e fazia Tônia tomar até a última gota apesar dos protestos, seu estômago tinha sido muito machucado. Jorge desconfiava de outros tipos de tortura, sobretudo morais, havia uma hemorragia que só após vários dias começava a dar sinais de recrudescimento. Eles não conversavam sobre aquilo, era uma forma de não fazê-la reviver o terror. A falta de dinheiro significava a falha nos planos de retornar com Tônia para casa, e os tolhia.
A chegada de Orlando foi o triz que desistira de aguardar. A angústia dividiu espaço em seu coração com a saudade da família e da terra natal. Pasmou ao saber a origem do dinheiro que lhe proporcionaria, e à Tônia, o exílio. Passaram-se três dias e ambos entraram em um dos navios do armador amigo de Ester, que estava atracado no Porto de Vitória.
Usando dos seus conhecimentos e influência, D. Maria Alice conseguiu junto ao consulado francês no Brasil que a França os aceitasse como exilados políticos, bastando apenas que eles conseguissem chegar ao país. Depois de uma arriscada viagem noturna até o Espírito Santo, Orlando se despediu de Jorge e Tônia, em dúvida se ela resistiria à viagem, já que havia cogitado não ir em função do seu estado de saúde. Foi quando Jorge afirmou não fazer sentido tudo o que tinham passado para, simplesmente, sabotarem a liberdade daquele jeito. Ele ficaria também. Ela cedeu. Não havia opção, e não desejava jamais ser a pessoa que colocou a vida dele em perigo, já que a sua própria, no momento, estava avariada, viu pouca diferença entre perdê-la aqui ou a caminho de outro país. Emocionalmente agitada, esta foi única lógica que lhe restou. Assim, eles se foram.

***

Jules abriu a porta da pequena casa térrea e ajudou Jorge a levar Tônia até o sofá, onde ela desabou sem cerimônia. Um vento gelado de resto de inverno ficou lá fora na noite. Ele já os esperava. No dia seguinte, à tarde veio uma médica dar assistência à Tônia, a partir de então seu estado físico começou a melhorar. Jules passava os dias fora e eles ficavam em companhia de uma diarista que lhes preparava as refeições sem disfarçar a curiosidade por suas origens e sobre a terra do sol e dos coqueiros.
Marselha como toda a Europa, se recuperava da crise provocada pelo fechamento do Canal de Suez e a consequente escassez de petróleo. Forçava sua prosperidade disposta em forma de anfiteatro, de frente ao Mediterrâneo. Os estrangeiros pobres que iam buscar uma oportunidade de emprego na cidade, distribuíam-se em sua maioria nas banlieues. Não era o caso de Jules, cidadão franco-brasileiro, filho de uma brasileira de rica fortuna em terras e empresas da cana. Essa brasileira chamava-se Maria Alice. E isso explicava o fato de ele possuir boa expressão da língua portuguesa. Jules tinha oito anos a menos que o pai de Jorge, e embora sua renda como engenheiro lhe permitisse ir aonde quisesse, nunca visitou a terra da mãe.
Ele conhecia todas as histórias; a paixão profunda de Maria Alice por seu pai, desaparecido numa incursão militar na África e dado como morto. Sua dor por não ter podido sepultá-lo. Jorge teve percepção  então, da vida da outra mulher que, oculta em culpas e glórias, mudara a sua própria vida para bem longe, e lhe proporcionara o segundo limbo.
Em três meses Jorge já possuía um emprego como assistente administrativo na mesma empresa que Jules trabalhava, e Tônia estava quase completamente recuperada, porém, com um diagnóstico precipitado de esterilidade. A convivência os tornara íntimos em muitas situações além das rodadas de pastis à noite, antes do jantar que Tônia preparava e se punha a espera de Jorge e Jules.
Jorge não queria ver aquele encantamento nos olhos de Tônia quando ouviam e viviam o modo de vida e a liberalidade francesa. Jules era um homem sensual e charmoso em todas as atitudes. Um idealista, cujas ironias comportavam um cinismo franco e bem humorado.   Com o passar do tempo, Jorge tentou convencer Tônia a alugarem um apartamento. Ela não impôs barreiras, mas Jules, sim.
Aconteceu depois das comemorações pelo Dia da Queda da Bastilha, alcoolizados, usaram o banheiro ao mesmo tempo. A mesma cama ao mesmo tempo. Amaram-se ao mesmo tempo. A estranheza daquela situação não incomodava Jorge, não ter desgostado o incomodava.
Mesmo quando Tônia conseguiu emprego, suas rotinas afetivas se alternavam, se juntavam, mas não mudavam.
Neste ínterim, Orlando foi preso e desapareceu para mais nunca. Então, Matilde se entregou. A vida em sua máquina de costura silenciou. As galinhas foram ficando escassas até calarem o terreiro. Os trevos amarelaram, feneceram. Feliciano ainda resistiu por mais um ano, depois se foi em pleno gozo das capacidades mentais. Morreu por inteiro. Eu o encontrei, no começo da noite, sereno como quem dormisse, no chão da oficina de marcenaria, quando eu voltei das aulas do magistério.  Olavo, o cão, velho e maltratado pela ausência da dona, vigiava a porta com olhos embaçados. Tamanha era sua tristeza que não se animou a procurar entre as minhas coisas o embrulho da padaria contendo o bolo de trigo confeitado de glacê. Pouco tempo depois, eu o sepultei também. Jorge ainda não podia por os pés no país.

Félix corria a bater em todas as portas de organizações de luta pelos direitos humanos sem sucesso, até que como eu fiz um dia, foi dar nos portões da casa da fazenda de onde foi enxotado por um dos capatazes do pai de Jorge, pois este já descobrira as crises de bondade de Dona Maria Alice para com a família do filho bastardo muito antes de sua morte. Contudo, não tentou anular a transação da mãe. Entrementes, sabia da fibra de Ester. Naquela sociedade conservadora, tinha motivos para temer o passado. 

***
  
Marselha, França, 28 de Outubro de 1982.

Querida irmã,

Estaremos em São Paulo no dia 10 de dezembro, no hotel San Raphael. Há um vale postal em seu nome. Gostaria que mãe e Félix pudessem ir. Será preciso que o pai de Tônia tenha conhecimento disto. Faça-me esse favor.

Saudade grande.

Jorge.
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Um carro de bois retardado fazia gemer as rodas sobrecarregadas de cana na estrada de terra iluminada fracamente por uma lua nova. Eu nem me dera conta do adiantado da hora. Separei do baú de Feliciano o título de posse da casa e guardei o terço de Matilde na bolsa. Eram estes os nossos espólios materiais. A casa da nossa infância, que nunca foi nossa, voltaria ao seu dono legítimo. Félix havia preparado junto com tabelião da cidade os termos de devolução do imóvel, coisa que fizemos sem demora, Ester, Félix e eu.
Quando Olavo entrou na sala onde o aguardávamos, não percebeu o leve tremor das pálpebras de Ester. E se alguma surpresa teve ao ficar sabendo do motivo que nos levava até ele, não deixou transparecer. Somente um brilho diferente ao se dirigir a ela indicava que mesmo após tantos anos sua beleza e impertinência ainda o afetavam.
Ele sumiu pela porta do escritório e retornou minutos depois. Trouxe um cheque com um valor que julgou ser um bom preço pelo desembaraço de ter aquela pequena parte de suas terras reincorporada. Ester sequer olhou para o cheque, nem lhe deu chance de fazer a pergunta que ia fazer sobre Jorge. Era tarde para amenidades. Foi a última vez que o vimos sem ser pela TV.

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Jorge e Tônia se casaram num Fórum do Centro de São Paulo em Março de 1984. Véronique, sua filhinha de três anos permaneceu nos braços de Ester durante toda a cerimônia.
Jules voltou sozinho para Marselha, com seus lábios pequenos e cheios, constantemente úmidos e brilhantes, com sua testa calva, morena, vincada,  os olhos negros e seu andar felino. Era um homem de personalidade dominadora e extremamente consciente do poder que possuía. E embora um rejeição sem motivo se estabelecesse em nossos breves contatos, eu entendi Tônia. E ainda mais, a manobra de Jorge para não perdê-la novamente.
Jorge e Jules continuaram tão amigos quanto dois homens que disputam a mesma mulher conseguem ser, e a distância auxiliava bastante.
Anistiado, o casal se estabeleceu em Paris. Sempre que era possível, quando conseguiam conciliar todas as férias e economias, eles nos visitavam em São Paulo. Véronique crescia com o charme e os traços de Jules.  Eu sabia que não havia ali nenhum acordo que não pudesse ter sido feito.

***

Véronique diz: 
O negócio da casa está praticamente fechado. Papai ainda tem que resolver algumas coisas dos vistos. Encerrar contas bancárias. Mamãe ainda tem que cuidar da demissão. Não haverá retrocessos, dessa vez. Eles vão voltar. 
Natália diz: 
Você, não? 
Véronique diz: 
Não. Preciso terminar os estudos e tenho o meu trabalho. 
Natália diz: 
Um namorado? 
Véronique diz: 
É... 
Natália diz: 
Pretendem morar juntos?
Véronique diz: 
Não, tia. Vou alugar um kit net. Ainda não tenho certeza sobre casar, me prender... Essas coisas. 
Natália diz: 
O que seus pais acham? 
Véronique diz:
Eles ficaram chateados num primeiro momento, mas sabem que a minha vida está aqui. Além do mais, se a crise apertar muito, eu terei para onde ir sem que seja uma aventura. 
Natália diz: 
Quando eles chegam? 
Véronique diz:
Até o final do ano. Agora, diz que está feliz. 
Natália diz: 
Você sabe que sim. E olhando direitinho o passado, Matilde costurou bem a fé.
Véronique diz: 
Me fala sobre eles, um dia? 
Natália diz: 
Falo. Quando você vier, eu conto... 

Desde os vôos supersônicos o mundo não cabia tão bem numa cabeça de alfinete. Previsões e histórias acontecidas e acontecendo em um clic. E nós? Nós confluíamos.



Fim