“O Estado é uma ideia parada no meio de uma intenção".
Capítulo I
O Primeiro Ano
Oito horas. Segunda-feira.
O telejornal local viera carregado de novidades: seis homicídios, um assalto a
um ônibus lotado de turistas e dois estupros. Uélito mal terminara de tomar o
café da manhã e o apresentador do programa ao qual assistia se despediu
agradecendo pela audiência, mandando um abraço especial para Sheilinha que
estava aniversariando e aos nove anos de idade, já era espectadora daquele reality show de crime e miséria. Ele
desligou a TV de segunda mão e na cozinha de dois metros por dois e meio, da
pequena casa coberta por telhas de cerâmica, depôs o prato com os restos da
banana amassada com açúcar sobre a bancada de madeira que servia de balcão, sua
mãe ou sua mulher se encarregaria deste depois. Beijou rapidamente as filhas de
oito e doze anos que dormiam no aposento dividido em dois por cortinas baratas
de chita e saiu para uma caminhada de quatro quilômetros até o seu local de
trabalho. Ainda pensava naqueles delegados e policiais da TV, tão articulados,
tendo ali seus minutos de fama por desempenharem bem seus papéis, relatando
casos escabrosos de crimes a atentados contra a sociedade, retirando de
circulação pessoas perigosas.
Trabalharia dia e noite,
chegaria o dia em que conseguiria pagar seus estudos e assim se tornaria um
deles.
Nos quilômetros que sucederam, a noite de
sexta-feira ocupou seus pensamentos. Sorriu inconsciente.
"Janet! Ah, Janet! Tão gostosa, malandra e quente."
O sexo no banco traseiro
de um carro, no pátio da oficina de Seu Hamilton, fora o melhor feito por ele
até aquele dia. Apesar de rápido, como sempre fora nas raras vezes em que saia
mais cedo do trabalho e se juntava a família na saída do culto.
Uélito da Silva Dias
Júnior apertou o passo. Caso se atrasasse seria repreendido com piadas pelo
patrão, recurso legítimo dos exploradores de quem nada tem para ser explorado a
não ser o trabalho, a esperança e a ignorância dos que precisam se matar para subsistir
honestamente.
***
O Tenente de Polícia
Jackson Albertino Conceição da Silva, da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas,
deu um pulo da cama, havia se comprometido com três colegas em dar apoio nas
cobranças da segurança feita aos comerciantes das periferias sob a jurisdição
do comando a que pertencia. Essa atividade rendia ao grupo, dinheiro, drogas,
armas, e eletrodomésticos que eram distribuídos aos receptadores e negociados
em feiras de rolo ou nos becos da cidade. No caminho para o banho reparou que
havia deixado o computador ligado a noite inteira, lembrou-se do motivo que o
fizera esquecer de desligá-lo. Sua "Doçura Virtual" o tinha deixado
simplesmente louco, provocara e se fizera de desentendida por quase toda a
conversa, até que cedeu, então pode fazer sexo com todas as palavras que não
usaria com a sua noiva. Não havia como não se sentir patético
depois, fragilizado até, porque sabia que aquela rotina de encontros
virtuais tinha se transformado em vício. Entrava no chat e logo uma vitrine de
carnes virtuais se descortinava: homens, mulheres, homossexuais, transexuais,
crianças e adolescentes, seres solitários e desesperados, em fuga das suas
realidades insignificantes e parvas.
Apesar do conceito que
tinha daquele mundo, a "Doçura Virtual" preenchia nele um vazio
peculiar. Em sua fantasia, lhe falava sobre sua vida, suas verdades, às vezes,
se expunha de uma forma que não ousaria com seu melhor amigo. Só não sabia se
ela encarava essas verdades como parte do jogo de sedução ou relevava. Não
importava, uma vez que não era intenção de nenhum dos dois ir além dali. Mas o
fato é que ela o prendia, o fazia sentir ele mesmo. E todo o resto aqui fora
era um mundo frio, opressivo, violento, que se desfazia naquelas longas horas
de intimidade à distância.
Sim, os tempos não eram
tão maus. Quando morava na Casa do Estudante, por vezes, precisava juntar os
trocos da mesada enviada pelos pais e comprar um pacote de macarrão
instantâneo, não raro, aquela era sua única refeição do dia, e seu orgulho
matuto o fazia declinar do oferecimento solidário dos colegas.
Pilotando uma moto que
apenas o seu salário de tenente de polícia não poderia custear, ele atravessou
a cidade, ao encontro dos seus parceiros, na periferia. Teria tempo ainda de ir
ao fitness, seu plantão só começaria
à noite.
***
Terça-feira. Ela vestiu o tallieur que a empregada deixara,
seguindo suas ordens, sobre a cama de casal usada apenas por ela. Desistiu de
abotoar o primeiro botão. Com a idade e o acúmulo de peso, o volume dos seios
fazia com que o tecido da roupa se esticasse sobre o busto,
provocando aquelas estrias que ela considerava detestáveis. No closet, apanhou uma camiseta de
seda, sobre ela vestiu o blazer e sob ele acomodou de forma a chamar a menor
atenção possível, o revolver calibre trinta e oito de cano curto.
A terça-feira era para ela
o pior de todos os dias da semana. Aquela, bem definida pelo sol já desde as
seis da manhã seria como as outras: cáustica e muito longa. A semana era um
resumo mal escrito, por um Deus absurdamente atroz, das desditas humanas.
O carro com a nova
logomarca do Governo Estadual e a identificação da Secretaria de Defesa Social
a aguardava na garagem do condomínio. Ao atravessar a portaria encontrou o
único filho que chegava de mais uma noitada. Ele a beijou, displicentemente,
dizendo estar atrasado para a faculdade, correu a tomar o elevador.
Com 48 anos de idade, ela
sabia que existem relações de onde se sai com muito menos do que se entrou. A
convivência com o marido, um notório jurista, havia sido um inferno que
suportara por boa parte dos vinte e três anos em que permaneceram casados. Até
que um dia, o brilhante advogado criminal decidiu assumir, em público, o caso
com uma funcionária do Instituto de Criminalística, vinte e seis anos mais
jovem que ele. O golpe no ego dela só não foi maior do que uma imprescindível
sensação de liberdade. Conseguiram se desvencilhar um do outro, física e
emocionalmente, entretanto, haviam investido tempo demais em se matarem um ao
outro enquanto indivíduos, e, em constituir patrimônio. Na metade do casamento
já nem sabia se havia contraído matrimônio ou uma empresa S/A. Agora, ele já
não era nada.
Adentrou na delegacia com
a mesma expressão impenetrável de costume. Cumprimentou os agentes recomendando
para um deles que trouxesse os casos de flagrante. Era hora de liberar espaço
nas celas. Remeteria os presos direto ao Centro de Triagem, reduzindo assim
este contingente na delegacia. Começara o expediente da delegada de polícia
civil, Elza Maria Prudêncio de Souza.
***
Sexta-feira. A Meretíssima
Juiza Donatella Lubambo Saviane Uchôa Amaral Dantas e Silva deu o último trago
no baseado, na cozinha americana do estúdio onde residia há três anos, desde
que se tornara magistrada de uma vara estadual. Uma realização extraordinária
para sua pouca idade, da universidade paga e da fazenda dos pais, no centro
oeste do país, direto para a carreira de advogada no nordeste, numa sociedade
de advogados especializados em
seguros. Sua juventude, boa aparência e sagacidade logo
despertaram as atenções de um dos sócios majoritários do escritório. Ela era
eficiente e prestativa, até se dispunha a varar noites discutindo processos.
Aconselhava, em longas conversas, o patrão em seu casamento morno. Assim, foram
ficando amigos e depois de uns meses, amantes.
O romance não progrediu,
ela precisou assumir suas funções em uma vara do interior. Lá, os casos
judiciais, em sua maioria, estavam relacionados a conflitos de terra, violência
doméstica, plantação de maconha e tráfico de drogas. Foram dois anos distante
do buchicho da cidade grande. Quando finalmente conseguiu retornar, a vaga
extra na cama do ex-patrão estava ocupada por uma estagiária do curso de
Direito. Coisas da vida. Não havia feridas para lamber. Lembrava dos
ensinamentos de sua avó materna, descendente de italianos:
- Ragazza mia, existir é se postar, antes da
morte, em intermináveis marchas, uns descansam ora num pé ora noutro, sem
jamais levantar a cabeça para saber que fila pegaram, outros apenas trocam de
fila. O que é distribuído lá na frente é o prófito de se andar nelas e a lotta
própria a elas.
No aparelho de som
embutido, Britney Spears: Circus. Sob o chuveiro, num arroubo filosófico
induzido pela Canabis, imaginou uma extensa
fila de homens com seus amores intumescidos e outra de mulheres com suas
ternuras úmidas. Todos eles cidadãos funcionais para o cidadão ou versus ele, para a sociedade ou versus ela, para o Estado ou versus ele, para o país ou versus ele, para o sistema ou versus ele, para o planeta ou versus ele, e ela no meio, na
fila, sem ser o "xis"da questão.
Esfregou vigorosamente os
cabelos a fim de que não restasse resíduo do cheiro de monturo queimado do
cigarro. Aprontou-se daquela forma funcional que deveria conferir aos
magistrados a distância necessária entre eles e as demais criaturas.
***
A noite ainda se
encontrava absurdamente quente as vinte uma horas e quarenta e cinco minutos.
Uélito transpirava copiosamente na pressa de chegar ao ponto de ônibus, sentia
em si o cheiro de suor mesclado pela gordura de frituras. O adiantado da hora o
impedia de cobrir andando os quatro quilômetros de volta até sua casa. Não era
seguro. O caminho ficava praticamente deserto. Já que havia recebido a diária,
usaria parte dela para pagar a condução.
No momento em que o ônibus
para no ponto, seu velho aparelho celular, comprado de segunda mão vibra, um
amigo lhe oferece um extra de auxiliar de serviços gerais em um evento popular
para a juventude. A paga era boa e as horas de trabalho menores. Ele ficaria no
banheiro masculino mantendo a limpeza. Desistiu de tomar o coletivo para ouvir
os detalhes do trabalho. Já o havia feito algumas vezes. A agressividade dos
garotos, as libidinagens regadas a álcool e drogas eram uma constante e sempre
provocavam distúrbios. Os brigões eram postos para fora, perdendo assim o
investimento barato da diversão.
Sim, claro que ele queria o serviço. Na sexta-feira
se encontrariam lá.
***
Se ele não tivesse
atendido ao telefone, se tivesse tomado o ônibus que se encontrava no ponto. Se
não tivesse corrido ao posto de recarga de crédito de celular da entrada da
comunidade antes deste fechar, a sorte não o teria descuidado.
Poderia sonhar ainda com
os estudos, divisas numa farda, quem sabe até um daqueles paletós caros dos
doutores advogados e naquele preciso momento não estaria sentindo dor tão
lancinante nos ouvidos. Não estaria vendo por entre suas próprias lágrimas as
de sua mãe.
Deitado no chão, ele não
entendia o porquê daquele furdunço. Sentia dor na virilha, não sabia o motivo
dela, sua vista escurecera e as vozes, muitas, vinham de muito longe num
zumbido. Foi jogado algemado em uma viatura. Uma mulher que nunca
vira na comunidade, ou se vira não prestara atenção, estava lá dentro. Ela o
avaliava friamente.
***
O Tenente Jackson pediu a
compreensão dos seus comandados; antes de seguirem para suas áreas de
patrulhamento, precisariam ir até à casa da sua noiva, era uma assunto
urgente que precisava ser tratado, não se demorariam, garantiu aos seus
colegas.
À noiva, entregou um maço
de notas, dinheiro que juntava para que ela depositasse na conta de
investimentos aberta em seu nome. Preparavam-se para o casamento, ao mesmo
tempo em que aquelas somas semanais ficavam ocultas do fisco. Certo dia,
Jackson ao ser questionado por ela sobre a origem do dinheiro, respondeu que
vinha dos empresários para os quais ele e seus parceiros prestavam serviço de
segurança nos dias de folga. Sob certo aspecto, uma verdade, por outro lado,
nunca lhe disse que a segurança não era contratada, mas imposta por eles mesmos.
Tinha carinho por ela e
não desejava preocupá-la com as bobagens da sua rotina de trabalho. Ela jamais
voltou a perguntar sobre aquilo.
Conversavam ainda no
jardim da casa quando ele ouviu uma buzina de moto, seus companheiros o
apressavam. Beijou-a e se despediu.
***
Os policiais estranharam a
movimentação no ponto de revenda de créditos para celular situado à entrada da
comunidade. Um homem e duas mulheres, estas com os rostos apreensivos,
agiam como se tentassem disfarçar algo à proximidade deles. Fizeram a
abordagem. Uma das mulheres pôs-se a correr. Eles sacaram seus revólveres, a
fizeram parar. O homem e a outra mulher já se encontravam com os braços
erguidos. No chão de barro batido havia um pacote mal embrulhado.
"Ora, ora, ora... Deve haver aqui pelo menos
oitenta pedras de crack. Pensou o Tenente Jackson.
Por atraso, estavam no
momento certo no lugar certo. Aquilo cairia muito bem na sua ficha funcional.
Revistaram todos. O homem
estava limpo. O deixaram ir. Aquele pobre diabo não tinha no rosto os traços
ladinos de quem lida com o crime. Retiveram por mais tempo as duas mulheres.
- Ei! Parado!
Uélito escutou o grito do
tenente quando já tinha a mão no portão da sua casa. Um arrepio subiu por sua
espinha, foi como se soubesse que aquele grito determinava seu destino.
- Tá mentindo pra gente, safado? Onde tu pega a
droga? Fala ou a gente vai te moer na pancada.
Uma das mulheres, a que se
encontrava com Uélito na viatura, o havia deliberadamente incriminado como
fornecedor da droga.
Na recepção do prédio de
aspecto decadente da delegacia, um comissário obeso, transpirando em bicas por
trás da mesa desgastada, admirou-se:
- Virgem Santa! Que nome!
Ele começou a preencher o
boletim da ocorrência que o Tenente Jackson trouxera. Uélito: fornecedor de
drogas, preso em flagrante delito. A mulher: usuária de drogas.
***
Em uma cela escura, nos
fundos da construção, os espancamentos continuaram a ocorrer.
Uélito pensou antes de desmaiar ao receber um chute
na altura do rim:
"O que querem de mim? Uma mentira? Se eu mentir
eles param de me bater?"
***
- Tinho! Pega lá o facão. Tem uma forquilha boa
ali, tá vendo?
Seu pai, com as mãos em seus em volta dos seus
ombros magros, apontava para o alto de uma goiabeira de tronco liso e claro.
- Vai lá, anda! Vou fazer um estilingue novo pra
você!
Ele cortou caprichosamente
tiras finas de uma velha câmara de ar de pneu de bicicleta e envolveu
inteiramente, à exceção do vértice, a arma de caçar passarinhos. A propulsão
das pedras era feita por duas borrachas de látex, cortadas em igual tamanho,
cujas extremidades se amarravam a um pedaço quadrado de couro cru.
Uélito saiu em disparada
da cozinha de tijolos nus, queria aproveitar o pouco tempo de claridade para
caçar passarinhos. Afastado poucos metros da casa, viu então um enorme pássaro
negro, três ou quatro vezes maior do que ele próprio se arrastava pesadamente
sobre patas de aríete ao seu encontro. A proximidade do bicho o fez
reparar as pupilas oblíquas, feito as das serpentes, em seu bico de
abutre havia dentes. Terrificado, Uélito largou ao chão o estilingue. A ave
abriu suas espantosas asas pretas e o envolveu num abraço sufocante. Ele não
conseguia enxergar. Em um esforço desesperado, usou a última lufada de ar dos
pulmões para um grito:
- Pai, me ajuda!
Ele era agora um garoto de sete anos.
***
Na manhã seguinte, a
delegada Elza Maria tomou, em separado, os depoimentos de Uélito e da mulher,
esta foi liberada com base em sua declaração de ser apenas usuária de drogas.
Uélito ficou detido, com base nas afirmações dela e do tenente Jackson,
de ser o fornecedor da droga.
Uma acareação, e nesta a
pergunta perfeita poderia ter sido proferida. Mas não houve nem uma nem outra,
sequer o levantamento no banco de dados da polícia para saber dos seus
antecedentes. Eram criaturas sem importância. Seu habitat os condenava por si
só. Além do mais, cento e vinte pedras de crack era uma apreensão digna do
horário nobre da TV, porque desperdiçar tempo com bobagem?
E Uélito teve os seus
minutos de fama, não os que ele sonhava e pretendia, mas os que a
funcionalidade do Estado precisava. O seu rosto apareceu pela manhã no seu
telejornal preferido, no jornal local do meio-dia e no da noite. Seus
pertences, inclusive o pouco dinheiro da diária, foram exibidos juntamente com
a droga para as câmeras de TV. Naquele dia, na comunidade, o nome de Uélito
estava em todos os fuxicos.
Ninguém atendeu seu
chamado ao telefone. Da delegacia havia sido transferido para o Centro de
Triagem. Calado. Já não dizia ser trabalhador. Já não dizia mais nada. Apenas,
imaginava se seriam verdades todas as histórias que ouvira sobre o Centro. E se
fosse? Que esperança lhe restaria? Pensava nas filhas e na sua mulher.
A derradeira imagem
guardada de sua mãe o fez soluçar um choro dorido, escondido pela aba do boné,
ao menos de mais esta humilhação podia se poupar.
A cela cheirava a
excremento e suor. Oito homens se encontravam lá. Uélito pôs-se de cócoras num
canto da parede encardida e úmida. Não os encarava, mas sabia que eles o
olhavam.
***
A Meritíssima Juíza Donatella
Lubambo despachava cinco processos por dia, naquela sexta-feira deu prioridade
à ordem de solicitação de alguns políticos e desembargadores, em sua maioria
casos de contrabando, sonegação fiscal e outros crimes contra o erário, cujos
laranjas haviam caído, obrigando a que empresários donos dos negócios e
financiadores de campanhas políticas, procedessem a faxina nas suas histórias
de sucesso.
O último processo a ser
lido tratava de um flagrante de tráfico de drogas. Certo alívio a acometeu como
sempre acontecia em casos assim, por não ler nos formulários o nome do seu
fornecedor, e rejeitou o pedido de Habeas Corpus do defensor público nomeado pelo Estado para
defender Uélito da Silva Dias Júnior.
Capítulo II
O Quarto Ano
A unidade prisional no
litoral norte, para onde Uélito foi transferido, tinha na lateral do pátio um
mastro, resto de um antigo alambrado da quadra de futebol, ao redor dele a
sombra caminhara mil quatrocentos e cinquenta e seis dias, contados sempre
àquela hora em que o sol a pino fazia desaparecer a sombra das coisas.
Ele catou uma moeda no
bolso da bermuda surrada e pagou pelo copo com água vinda da torneira do pátio.
Não costumava tomar a água destinada aos detentos, sabia que ela não era
tratada, pois tinha cheiro ruim.
O pouco dinheiro que
chegava, aos sábados, quando das visitas de sua mãe, garantia a ele esse
pequeno luxo ao menos duas vezes por dia, quando não, sem alternativa, matava a
sede durante o banho.
Todos os dias, as celas
eram abertas às sete horas da manhã e às dezoito eram fechadas, logo depois era
feita a contagem dos presos.
Ao longo do último ano,
fizera amizade com um parricida, quanto este sofria terrivelmente com a dengue.
Através do aparelho celular dele, perdido inúmeras vezes em revistas de cela, e
recuperado as mesmas vezes quase ao preço de um aparelho novo, Uélito
conversava, muito raramente, com a família. Desde o primeiro ano de reclusão
nessa unidade, proibira-lhes a presença. Recusou também que a mulher fizesse
inscrição para a visita íntima. Considerava as situações no mínimo
constrangedoras. Quando algum casal excedia o tempo estabelecido, o guarda os
apressava. Além de que as condições de higiene nas celas destinadas aos
encontros conjugais eram as piores possíveis. Naquelas horas, um olhar de mau
jeito à mulher errada poderia valer de ameaças de morte a agressões, os olhos
deviam permanecer baixos em sinal de respeito e Uélito pensava que poder fazer
isto com falta de respeito lá fora era uma das prerrogativas do homem livre, se
dando conta que descobrira um dos sentidos extremos da palavra hipocrisia.
Com os instintos
despertados pelos murmúrios e gemidos vindos do escuro abafado da cela,
nos dias em que era permitido o pernoite das companheiras dos detentos, Uélito
se satisfazia sozinho, nas raras vezes em que a cela ficava vazia nos dias
comuns.
Há muito deixara de pensar
em Janet, seus olhos, seu tom de pele, seu toque, foram se entrecortando,
ficando descontínuos, até que esvaeceram completamente. Seus momentos de alívio
ficaram cada vez menos intensos e mais sofríveis, e ele soube que a perdera de
um modo irrecuperável dentro de si. A Angústia depositava-se entre o estômago e
o lugar onde ocasionalmente sentia acelerar o coração. A estocada seca como o
frio o atingia em uníssono com o pulsar da jugular.
Depois, caia numa espécie
de letargia que só passava quando, enfim, adormecia na sua área reservada da
cela, próxima ao buraco que os doze detentos, inclusive ele, usavam para
satisfazer suas necessidades naturais.
***
- Quantos anos faltam pra você?
A pergunta era do dono do aparelho de telefone
celular, um negro alto, de dentes muito brancos, que trazia no ventre a
cicatriz enorme de uma cirurgia.
- Dez anos.
- Um bocado de tempo...
- É, tempo demais, não sei se vou aguentar.
- Não pensa bestagem, Boizinho.
- Aqui é muito fácil. É só arranjar confusão com os
manda-chuvas.
Silêncio.
- Tu não vai pra igreja, por que?
- Porque não adianta ir. Você vai e matou seu pai...
A mão enorme do homem
chamado Cosme, de repente, estava sobre o ombro de Uélito. Com o polegar, o
dedo médio e o indicador, ele puxava o feixe de músculos entre a clavícula e a
escápula direita.
Quem era aquele ignorante para julgá-lo?
Uélito precisou se ajoelhar para suportar a dor.
Escuta aqui, Boizinho! - Disse mascando as palavras
- A gente honra pai e mãe quando eles são honrados!
E afrouxando os dedos:
- Acredita mesmo naquela baboseira dos dez
mandamentos? A mulher, o tenente, a delegada e a juíza que te ferraram, será
que eles acreditam?
Erguendo-se, Uélito massageou o ombro.
- E porque você vai à missa, então.
- Pra ficar fora daqui, ao menos uns minutos.
- Como você pode ficar fora daqui, se além das
grades não pode nenhum passo?
- Não é daqui. - Disse batendo com as duas mãos
espalmadas no peito.
- É daqui. - Com a mão direita, fez estalar duas
tapas na testa.
Silêncio.
- Vou te contar como vim parar aqui.
Pensativo, começou o
relato de como tinha sido cego para a tristeza de sua mãe e para o olhar acuado
de sua irmã mais nova, logo depois que ela completara treze anos, até que um
dia a coisa toda estourou. Ao chegar em casa, da construtora onde trabalhava
como mestre de obras, deparou com um ambiente de caos. As pessoas se amontoavam
no portão. Curiosos, que teriam uma história para comentar entre assuntos de
novela e futebol.
***
- A polícia já tá vindo!
Disse alguém.
Sua mãe estava sentada no
chão, com uma das pernas dobrada num ângulo estranho. Um filete de sangue
escorria de sua têmpora. Seu pai mantinha uma das mãos na garganta dela e na
outra, segurava um pedaço de cano de ferro que ele, Cosme, identificou como uma
parte do corrimão da escada que levava ao andar de cima da casa de três cômodos
inacabados.
- O que fez com minha mãe? Porque isso, mãe?
- Esse animal estuprou tua irmã! - Falou entre
soluços de dor e ódio.
Ele olhou então para
a irmã, de pé, ao lado da porta que dava para o quintal. Ela tremia e
chorava sem conseguir articular uma única palavra. Foi aí que soube a verdade.
A ira que o tomou aqueceu seu corpo convulsivamente, uma caldeira no ponto certo
de explodir, e explodiu. Ao dar por si, estava com o cano d ferro nas mãos, seu
pai, encostado à geladeira, com a mandíbula frouxa e os olhos esbugalhados.
Algo branco e sanguinolento saia do seu ouvido.
A rua virou uma festa de luzes intermitentes vermelhas
e vozes agitadas.
***
A pena: doze anos, oito meses e seis dias.
- O que não quer dizer nada, Boizinho. Olha lá o
Índio... - Apontou com o queixo para um homem de estatura mediana e cabelos
muito lisos que trazia fortes traços faciais indígenas.
- Ele é um dos que já devia estar fora daqui. A pena
dele terminou há oito meses... O negócio é o seguinte, o pessoal do pavilhão B
vai cavar um tatu. A gente tem que dar um jeito de ficar lá quando chegar o
momento.
- Não tenho dinheiro, não tenho como comprar uma
vaga lá, e mesmo que tivesse, não vou me arriscar, é muito perigoso. Não devo
nada, não era para eu ficar aqui, foi um engano, eles vão perceber.
Cosme sorriu meneado a
cabeça. Seus dentes pareciam ainda mais brancos ao sol do meio-dia.
- Não te entendo. Pensa em suicídio e tem medo de
morrer tentando uma fuga. Como tu é burro! Não perceberam o erro enquanto ele
acontecia e é agora que vão perceber? Quando tudo no teu processo mostra o erro
deles? Da polícia, da justiça, de todo mundo? Ou tu tá fumando demais ou
tocando punheta demais ou os dois!
- Pensa comigo, Cosme. O pessoal que quer tentar a
fuga tem esquema lá fora, tem pra onde voltar. A gente não tem.
- A gente tá marcado! Pensa que teu patrão vai te
dar o emprego de volta? Acha que as agências de emprego, as empresas, as
pessoas, abrem as portas pra gente com essa experiência de currículo?
Silêncio.
Desde o seu infeliz
encontro com o Tenente Jackson, Uélito não conseguia vislumbrar mais nada à
frente. E achou que liberdade também era aquilo de idealizar modelos de vida
plena até restar unicamente a ansiedade pelos sonhos não realizados, as coisas
não alcançadas acumuladas em rumas maiores do que as oportunidades
aproveitadas, as dispersas por não lhes haverem dado os olhos certos. A idade
encarquilhada e, por fim, o desaparecer mais perfeito numa escuridão
permanente.
Uns contavam coisas, ele contava dias.
- E se eu conseguisse um esquema pra gente?
Cosme calou-se à proximidade de um agente
penitenciário.
***
Maximiliano Arruda chegou para dividir a cela com
eles numa tarde chuvosa e abafada. Agora eram treze homens dividindo o espaço.
Ele tinha o aspecto saudável de frequentador de
academia de ginástica e a cara, apesar de mal barbeada, de gente que fazia as
três refeições diárias.
- O que tá pegando? - Inquiriu aos que o olhavam.
- Baixa a bola, cara! Aqui tu aprende a falar só o
necessário!
Disse o homem a quem chamavam "Cabeça de
Cogumelo" e completou com voz demasiadamente suave e sarcástica, olhando-o
de cima a baixo.
- Delicado assim tu pode servir de dama... O que
mais tem aqui é valete.
Depois de encarar o homem atarracado, de ventre
volumoso, Maximiliano deu as costas a eles e pegou um maço de cigarros no bolso
da calça jeans, voltando-se, o estendeu para ninguém, apenas esperava que se servissem.
O maço retornou quase vazio.
Uélito, que não se servira, pensou tratar-se de
alguém muito fino. Era um sujeito muito traquejado.
- E aí? O que te traz a esse humilde condomínio?
Perguntou o homem que o ameaçara.
- Aqui se fala só o necessário, o que eu tenho a
dizer sobre isto não é. Então, cada um na sua!
- Aí, gostei de tu, gente fina. A gente vai se dar
muito bem. Boizinho, tu vai dormir no banheiro. Meu chapa aqui dorme no teu
lugar.
Uélito não redarguiu.
De madrugada, o outro com
a cabeça a poucos centímetros do anteparo de concreto a proteger o buraco que
fazia às vezes de vaso sanitário, e, Uélito percebendo que ainda estava
acordado, cochichou:
- Cuidado com ele!
Maximiliano esticou o
pescoço na direção do rosto do homem que lhe falava, este apareceu em suas
retinas invertido, olhou-o profundamente, através da escuridão da cela, não
disse nada.
***
Uélito esperava ver sua
mãe carregando a velha sacola colorida de fios de nylon, onde estariam as
poucas peças de roupa que usaria durante a semana, comida fresca, que ele
devorava ainda em companhia dela e o pouco dinheiro que seu patrão enviava
através de um funcionário do restaurante, ninharia. Ele não fazia jus ao abono
concedido pela Previdência Social às pessoas na sua situação, pois não era trabalhador
regular.
Mas, às dez horas da
manhã, ela não havia entrado. Ao meio-dia, os parentes dos detentos já
começavam os rituais corriqueiros da despedida. A euforia do encontro, o relato
obrigatório das novidades lá de fora cediam lugar para a melancolia da
despedida, para as lamentações, para uma infinidade de incertezas. Às treze
horas e trinta e um minutos, Uélito finalmente compreendeu que sua mãe não
viria. Caminhava em círculos, de cabeça baixa.
Maximiliano e Cosme se acercaram dele.
- E então?
- Deve ter acontecido alguma coisa. Nesses anos
todos ela nunca faltou nenhum sábado.
- Dá um toque pra o teu amigo do restaurante, pede
pra ele botar crédito no celular, daí tu liga pra ela.
E passou o telefone.
- Não atende.
- Você tem crédito, Cosme?
- Pouco.
- Eu pago. Toma. - Max estendeu uma nota a Cosme.
- Não. O crédito tem que vir lá de fora. Tu se
encarrega disso.
Cosme recusou o dinheiro.
- Uélito, dona Margarida tá no hospital. Se internou
na quinta-feira.
Era a voz de Mariângela.
- O que ela tem?
- O médico disse que é coração. Ela tá na
emergência. Vou deixar as meninas com a Irmã Gilda e vou lá agora. Tava me
aprontando quando você ligou.
- Liga de volta quando sair de lá.
- Ligo. Vou pegar carona com o Pastor pra ir e pra
voltar, com o dinheiro que sobra ponho crédito aqui.
- Não esquece! Liga com número oculto.
- Tá.
A eficiência que
precisavam na comunicação tornava desnecessárias palavras de afeto ou cortesias
outras, e nenhum "vai ficar tudo bem" foi dito.
- Tua vez, Max...
Max telefonou para o rapaz que viera lhe visitar e
saíra há pouco do presídio.
- Coloca crédito nesse número que vou te dar. Por
favor, agora!
- Posso te arranjar um desse.
- Não, obrigado, não quero confusão. Tem gente
cuidando de mim lá fora, não vou atrapalhar o trabalho deles. Não passo aqui
nem um dia a mais.
- Quanto tempo?
- Oito anos. Estão tentando a minha transferência,
não vou ficar muito tempo, meu delito não é para isso aqui.
- É bom que consigam rápido. Cabeça de Cogumelo tá
interessado em você.
- Esse é o vulgo dele?
- Chamam ele assim porque o vício começou quando ele
tomava chá do cogumelo da bosta do zebu. Depois, foi maconha, cocaína e crack.
Ele era capanga de um político lá no interior. Veio fugido pra cá e acabou
virando dono de pontos de venda de drogas. O fornecedor dele caiu e ele junto.
Tá aqui há muito tempo. Tem o respeito dos outros caras. Só existe dois tipos
de pessoa para ele, o amigo e o inimigo.
Max ouviu o competente relato com interesse.
- O que você é dele?
- A pressa aqui é inimiga da boa saúde. A gente tem
todo o tempo da pena pra decidir. Mas, no teu caso, é melhor falar com o
chaveiro e comprar um apartamento, já que tem dinheiro.
- O que é isso?
- Uma cela, onde tu pode ficar sozinho.
- Escute o que ele diz, não existe garantia de nada,
mas diminui teu risco. A sodomia é diversão por aqui. E fica pronto pra partir
a cara de alguém. - Uélito aconselhou.
- Ele dá proteção a vocês?
- Não é isso, a gente não é do crime organizado, nem
eu nem Uélito. A gente não tem inimigos aqui. Pra essa gente, eu e o Boizinho é
arraia miúda. A gente só serve pra diminuir espaço na cela. Por outro lado,
quando tem rebelião, a gente tem uma segurança.
- O que quer dizer?
- Eles escolhem os caras que vão servir de bucha de
canhão nas negociações com a administração do presídio e a polícia. São os
rivais, os dedões, os traidores do tráfico, os estupradores e os viados.
- Você já passou por uma rebelião?
Cosme levantou a camiseta à altura do peito.
- Fiz duas operações aqui, uma depois do
linchamento, que era pra ser do meu pai, mas acabou sendo o meu, quando eu fui
preso, a outra porque os putos do choque me bateram até que eu vomitasse
sangue, quando fui recapturado depois de uma rebelião.
"Três crimes para remir um irremissível."
Max pensou antes de perguntar:
- E porque participou?
- Nesse caso, a gente só pode escolher entre a morte
e uma morte ruim. O certo é que a gente nunca sabe se ela vem pela mão dos
homens daqui de dentro ou dos de lá de fora.
- Mas você se saiu bem...
- Somando tudo, foi três meses no hospital e depois,
mais quinze dias na enfermaria do presídio. Quando eu voltei pro lar doce lar,
os cabeças da rebelião foram transferidos.
Max meneou a cabeça, Cosme e Uélito perceberam que
ele lamentava sinceramente.
- Quem são aquelas mulheres que vieram te visitar?
- Minha mãe e minha irmã.
- E você? Não recebe visitas? Não tem ninguém?
- Tenho mãe, mulher e duas filhas. Queria não ter, a
coisa ia ser mais fácil.
- Boizinho vive com o pensamento na merda de se
matar. - Intrometeu-se Cosme.
Max olhou para Uélito de forma tão penetrante que
este desviou os olhos.
- E porque você se importa?
- Esse pensamento tinha que ser meu. Uélito é
inocente.
- E não somos todos? Todos nós não tivemos bons
motivos para não obedecer às leis?
Max inquiriu, sem nenhuma
inflexão na voz que remetesse à petulância. Cosme o olhou estranhamente.
- O meu e o teu motivo pode ser justo pra gente.
Uélito tá aqui porque aprontaram pra cima dele.
- O que sabe sobre os meus motivos?
- Sei que são de verdade, como os meus.
Max se deu conta de que
estava diante de um homem leal, que para ele, reconhecer a
própria culpa não significava, necessariamente, suportar arrependimento.
O silêncio caiu entre eles. E depois de vários
minutos em que Max
e Cosme fumaram um cigarro:
- Como faço pra falar com esse chaveiro?
- Mostro a você amanhã. É um preso do regime semi-aberto.
Essa hora ele já foi pra casa.
Capítulo III
O Quinto Ano
Como
não percebera o quanto ela havia envelhecido? Restavam agora poucos fios
castanhos claros de cabelo. Ele reluzia totalmente prateado e curto àquele sol
magro de inverno farto e incomum. As almas de suas dores haviam cavado com mãos
tão perniciosas as rugas dos cantos da boca que moldaram um sorriso opaco,
descendente. A pele do rosto estava retinta de velhice, pontos aqui e ali de
uma ferrugem triste, incrustados nas pequenas valas da testa, dos olhos e
pescoço. A fragilidade das mãos as fazia tremer ao ajudá-lo a abrir as vasilhas
plásticas contendo a comida, ainda morna, remexida na revista aos visitantes.
Depois da narrativa da
evolução das netas na escola, Dona Margarida disse com todo o cuidado:
- Mariângela foi embora, Uélito.
- Como assim? Pra onde?
- Não sei. Na quarta-feira, quando voltei para casa
depois do culto, as meninas estavam na vizinha. Mariângela disse a ela que ia
no mercadinho, não demorava. Esperei até nove horas da noite, hora que o
mercado fecha. Ela não voltava. Então, fui olhar as coisas no quarto de vocês,
ela tinha levado todas as roupas, tudo.
- Ninguém mais viu?
- Ontem, conversando com Seu Hamilton, ele disse que
viu ela no ponto dos ônibus que vão pro centro. E até agora, nenhum telefonema.
Súbito, Uélito despejou as palavras, ato contínuo ao
pensamento:
- Vou fugir, mãe!
- Nem me fale uma coisa dessas! Fugir pra onde? O
que pensa que vai fazer lá fora? Não tem pra onde ir, a gente não tem dinheiro
pra sair do Estado. Não vai demorar muito tempo para eles te pegarem.
- Escute! Eu tenho que ajudar a senhora com as
meninas, não vai dar conta delas sozinha.
Ele explicou o plano de
fuga em voz baixa, sem se prolongar em detalhes.
- Não, Uélito! A gente se arranja. Julinha ajuda com
Mônica, elas ficam sozinhas quando preciso ir fazer as faxinas. Já faz tempo,
desde que Mariângela começou a sumir. Passava o dia inteiro fora.
- Por que você nunca me disse, mãe?
- Pra que?
Em silêncio, ele olhava um
casal de gaviões apavorando os pombos pousados na caixa d'água do prédio do
pavilhão B. Eles voavam a pouca distância um do outro, em longas evoluções de
idas e vindas por sobre os pombos agitados, até que não restou nenhum. Então,
os gaviões pousaram e ali permaneceram por um longo tempo.
Ele compreendeu que Dona
Margarida deixara as coisas seguirem seu curso presumível. E aceitou que
liberdade também fosse aquilo de escolher que tipo de escravidão servir.
Mariângela não desejava servir àquela tão sem perspectiva; uma velha doente,
duas adolescentes com inúmeras necessidades de adolescentes, uma moradia numa
comunidade miserável. Mariângela queria qualquer outra, ele, só tinha a que
vinha dividindo com ela.
- A gente pode ir pra o interior.
- E como vai arranjar dinheiro pra comprar a vaga?
- Tenho duas escolhas; uma impossível, a outra, difícil.
- Conta, então.
- O patrão... A gente pode pedir o dinheiro a ele.
- Essa é a impossível. Fala da difícil.
- É muito arriscado... A gente tem que providenciar
a entrega de umas coisas.
- Drogas?
- Sim.
Dona Margarida calou-se, e
depois de vários minutos considerando a proposta:
- Por quanto tempo?
- Quatro entregas.
- Se me pegam a gente tá perdido.
- Sim. E a gente não tem certeza que vai dar tudo
certo na fuga.
- Como vou saber que não vão ficar me procurando,
depois, pra continuar fazendo entrega?
- Alguns bandidos cumprem melhor a palavra para o
bem ou para o mal do que gente que se diz de bem.
Apertando uma mão na
outra, tentando controlar o constrangimento, ele falou:
- Esse é todo o futuro que consigo pensar agora,
mãe.
- Tá certo. Eu faço!
***
No
longo caminho de volta para casa, no interior de uma perua lotada e
sacolejante, Dona Margarida examinava suas chances. Seu coração estava fraco,
hoje ela estava ali, amanhã não sabia. Não se tratava de especular sobre as
incertezas da vida, mas legitimar a certeza da morte. A fila para a cirurgia
que precisava era longa. Nem sempre tinha dinheiro para comprar os medicamentos
prescritos pelo médico do posto de saúde. Durante meses seguidos tomava apenas
o que conseguia na farmácia do Estado. A cada dia ela se sentia mais cansada.
O pensamento de suas
meninas em um orfanato a aterrava. Sabia que Mariângela não voltaria enquanto o
monstro do arrependimento não se tornasse um monstro do tamanho do tempo que
levaria para crescer dentro dela, sabia apenas que voltaria, e já seria tarde.
Não, não seria ela quem
negaria a chance de as netas ficarem com seu filho. Chance tão mínima, como
mínimos haviam sido os momentos reais de felicidade desde a morte do seu
marido, quando Uélito contava apenas doze anos. Desde então era por ele que
existia e depois, pelas netas. E deu-se conta que sua herança valia tanto
quanto a dos seus avós e a de seus pais: nada. De qualquer forma, sua hora se
aproximava. Estava na vontade dela que chegasse sem mais desesperos.
***
De volta à cela, Uélito
sentou-se no chão, abraçado aos joelhos. Balançava o corpo para frente e para
trás, enquanto lágrimas escorriam pelo rosto duro. Não era furor que sentia,
nem pena de si mesmo, antes, uma frustração que o fazia sentir sufocar como lhe
tivessem despejado punhados de areia na garganta.
Max escorou-se na parede, ao lado dele, sem dizer
nada.
- Que tá pegando, Boizinho? - Perguntou Cosme.
- Mariângela foi embora.
- Com outro?
- Acho que sim...
- E tuas filhas?
- Com minha mãe.
E dirigindo-se ao Cabeça de Cogumelo:
- Fala com teu amigo lá. Vou com vocês.
- Taí! Assim que se fala, mano!
Ao olhar para Cosme, este
assentiu com a cabeça.
- Uélito, pensa bem...
De um salto, Uélito estava
de pé, o dedo em riste, apontando para o rosto de Max, antecipando o que ele
diria.
- Você tem alguém pra quem voltar lá fora? Alguém
por quem fez tudo o que podia? Nem que só pudesse o cansaço que levava pra
casa, muitas vezes, sem nada nas mãos? A gente pensa; amanhã vai ser melhor e
esse alguém faz a gente acreditar nisso.
Depois de uma pausa em que Max não se moveu:
- Me tiraram tudo e me deram essa desocupação maior
do que o cansaço de não ter nada pra dar. Se fosse você no meu lugar, fazia o
quê?
- Eu esperaria.
- O quê? Que a única mulher que ficou do teu lado
fosse embora também, como se não fosse nada? Que perdesse o paradeiro das tuas
filhas?
- Não vai acontecer nada com elas, Uélito!
- Minha mãe tá morrendo!
- Quer parar, Max? - Disse Cosme puxando Max pelo
braço, o afastando do círculo que se formara. - Agora ele tem pra o que viver.
E Max entendeu.
***
As entregas foram feitas
sem incidentes. Uélito soube disso quando o carcereiro mandou que ele pegasse
suas coisas para a transferência de pavilhão. Sua mãe e ele não tocavam no
assunto durante as visitas, mais por vergonha do que por medo.
Na ala em que ficou já
estavam Max, Cosme e o Cabeça de Cogumelo. Contudo, as celas eram separadas. na
que Uélito ficou havia oito detentos. Um luxo, se considerada a super lotação
do presídio. Max conseguira comprar um 'bom apartamento' no final da ala, havia
uma cama, duas prateleiras de cimento armado, um banheiro com vaso sanitário e
pia do mesmo jeito das prateleiras.
Era lá que Uélito e Cosme
passavam a maior parte do tempo quando não estavam no pátio. À noite, voltavam
cada um para as suas celas, e depois do terror da contagem de presos, dormiam
suas noites sem sonhos.
A belicosidade inicial dos
presos da cela de Uélito cedeu lugar à indiferença, tanto em função da
introspecção na qual ele vivia constantemente mergulhado quanto por sua
evidente proximidade com o Cabeça de Cogumelo. Nesta tranquilidade, os dias se
passavam sem maiores expectativas, a não ser pelo aguardado dia da fuga.
***
- Você nunca me disse o motivo porque veio parar aqui. - Disse Max a Uélito.
Com uma brochura nas mãos,
que pegou de uma das prateleiras da cela de Max, a qual folheava lentamente,
Uélito disse:
- Nunca me perguntou.
- Então estou perguntando agora.
- Porque o cara que me prendeu não me conhecia.
A complexidade da resposta intrigou Max.
- Acha que se ele conhecesse não te prenderia?
- Não.
- Por quê?
- Porque eu não fiz nada.
- E o que ele achou que você fez?
- Achou que eu era traficante.
- E o teu advogado não fez nada?
- Ele também não me conhecia, é um defensor público.
Como se defende alguém que não se acredita? Fez a parte que achou que cabia no
salário dele. Pronto!
- A pena pra tráfico de drogas é bem pesada.
- É, eu soube... - E riu amargo.
Era a primeira vez que Max
via um arremedo de sorriso no rosto de Uélito, que folheava uma coletânea de
cordéis.
- Você leu tudo isso?
- Sim, fora alguns que meu amigo já levou. Você
estudou, Uélito?
- Sim, até o segundo ano científico.
- E porque não terminou?
- Arranjei um trabalho que me ocupava o dia inteiro,
às vezes, a noite. Comecei a ser reprovado e acabei desistindo.
- E teus pais?
- Só tenho mãe.
- O que aconteceu com teu pai?
- Morreu, há muito tempo. Teve um derrame.
Max, calou-se. Viu a vida
inteira daquele homem naquelas poucas palavras.
- Gostou do livro?
- Sim. Meu pai comprava essas coisas quando a gente
ia pra feira. Ele gostava de ler em voz alta, fazia parecer música.
- É... Parece música. Pode ficar com ele.
- Porque tá me dando?
- Porque já li. E você pode pegar o que quiser. -
Max apontou para as prateleiras. - Olha esse...
O livro era pequeno,
encadernado luxuosamente. Max o abriu numa página qualquer. Leu com voz
compassada:
Dentre todas as Almas já criadas-
Uma - foi minha escolha -
Quando Alma e Essência - se esvaírem -
E a mentira - se for -
Quando o que é - e o que já foi - ao lado -
Intrínsecos - ficarem -
E o Drama Efêmero do corpo -
Como Areia - Escoar -
Quando as Fidalgas Faces se mostrarem -
E a neblina - fundir-se -
Eis - entre as lápides de Barro -
O Átomo que eu quis!
- O que ele quis dizer?
- Ela... Emily Dickinson era uma escritora
americana. O poema fala de voltar ao começo pra ser imortal.
- Que começo?
- Um começo antes da vida.
- Leia de novo.
Uélito procurou ouvir
distintamente cada palavra.
- Você acredita nisso?
- Acredito que ela acreditava.
- Entendo melhor esse aqui. - Uélito sacudiu,
levemente no ar, a coletânea de cordéis.
- Tá certo.
- Max, por que você tá aqui?
- Eu sou o que se chama de abettor, cúmplice de um
crime, involuntário, mas sou.
- Que crime?
- Assassinato.
- Você não sabia?
- Não.
- E como se meteu nisso?
- No meu segundo ano na faculdade, conheci um
professor. Entre as rotinas das atividades no departamento e as aulas, a gente
saia pra beber e conversar. A gente foi ficando mais íntimo, se é que me faço
entender...
- Não, mas continua.
- Bom, um dia, a esposa dele flagrou a gente no
escritório da casa deles.
- Você é gay?
- Homossexual.
- Então não se distraia. Se você pensa que o inferno
aqui é ruim, acredite, ele pode ficar pior.
- Depois do choque, ela passou a ameaçar fazer
escândalo. Foi uma fase horrível. Ele vivia tenso e a gente se via muito pouco.
Ele era um professor renomado, com vários trabalhos publicados. Quando isso
aconteceu, o nome dele era cotado pra assumir um cargo importante na faculdade.
- Assumir o quê?
- A chefia da administração... Bom, larguei os
estudos, calculando que se a mulher dele cumprisse as ameaças, e se eu não
estivesse lá, a importância do caso diminuía. Ele falava muito pouco sobre como
as coisas estavam entre eles. Isso foi afastando a gente cada vez mais. Um
determinado dia, ele telefonou e perguntou se eu podia fazer um favor.
Uélito ouvia com atenção.
- O favor era pegar o carro dele e deixar no
estacionamento do shopping, para que ele pegasse depois das aulas. Eu fui
burro, podia ter previsto que era um ato de desespero dele. Aquele tipo de
pedido não era comum entre a gente.
- O que aconteceu depois?
Encorajou Uélito, a fim de
que Max voltasse da catatonia que o fizera calar. Como se estivesse revendo
todas as cenas em um filme na sua cabeça, Max continuou.
- Ele me usou para forjar um álibi... Naquele
dia, enquanto eu deixava o carro no estacionamento do shopping, ele assassinava
a esposa com uma overdose de medicamentos. As investigações sobre o caso
levaram quase dois anos para serem concluídas. Nesse meio tempo, eu já estava
em outra faculdade. Quando o foco das suspeitas se voltou contra ele, abandonei
os estudos novamente e saí do Estado. A prisão preventiva foi decretada. Quando
o prenderam, confessou o assassinato, mas não me inocentou, e antes do
julgamento, se matou.
Max fez uma pausa na
narrativa. Ele caminhava agitado na cela, os poucos passos que cabiam nela.
- Foram três anos convivendo com o medo das pessoas,
com medo da prisão, até que me encontraram e eu achei que não tinha mais nada a
perder, me sentia culpado. As coisas podiam ter acontecido de outro jeito e ele
não estaria morto.
- Meu Deus! Você gostava daquele homem.
- Sim. A motivação real do crime não ficou evidenciada
nos autos do processo. Tudo ficou com aparência de crime passional. Hoje, a
foto dele está na galeria de personalidades da faculdade, ele é muito
respeitado pelo que foi.
Silêncio.
- Não se preocupe. Teu segredo tá bem guardado.
Max assentiu com a cabeça.
- Obrigado!
- Tá.
***
O túnel financiado pelos
líderes do tráfico de drogas do interior do presídio finalmente ficou pronto no
começo do verão. Teve que ser cavado lentamente, pois a areia retirada dele era
colocada em vasos sanitários, ia parar direto na rede de esgoto, e nos colchões
das celas que ainda dispunham de camas. Todo o cuidado era pouco para que não
se levantasse as suspeitas da administração. O 'tatu' contava com ventilação e
iluminação precárias em toda a sua extensão. Começava no banheiro das celas do
final da ala norte do pavilhão B, passava por baixo do prédio da administração
e terminava dentro de uma casa de praia abandonada na orla da praia.
Naquele dia, parte dos
detentos do pavilhão B comemorava o feito se embebedando com gengibirra e
consumindo drogas, outros rezavam, pedindo proteção.
A fuga aconteceria sob
determinação de Cabeça de Cogumelo. Quatro homens de sua confiança se revezavam
na vigia da entrada do túnel. Qualquer um que contrariasse a ordem seria caçado
e morto. Assim, ficou acertado que eles fugiriam em plena luz do dia, em um dia
de semana, logo após o parco café da manhã, quando os detentos se misturavam no
pátio.
No dia em que pensaram ser
o seu último juntos, Cosme, Uélito e Max conversaram tensos, em tom de despedida.
À noite, antes de voltarem
para suas celas, Uélito devolveu a Max a coletânea de cordéis, juntamente com
uns poucos objetos de uso pessoal.
***
Às dez horas da manhã, os
homens que não estavam dentro do túnel, encontravam-se sentados, nus, à exceção
da peças íntimas, no chão de cimento do pátio do pavilhão B. A fuga tinha sido
descoberta.
O primeiro homem a sair do
túnel foi alvejado com um tiro nas costas. Várias bombas de gás lacrimogêneo
foram atiradas, forçando ou outros a voltarem, rastejando, de ré, no escuro,
pois a energia havia sido cortada. Depois, a entrada e as saída do túnel foram
tapadas, com vários homens ainda em seu interior.
O pavor se apoderou
daqueles trinta e seis homens. Eles tentavam passar uns por cima dos outros no
espaço exíguo, na pressa de obterem o oxigênio que se encontrava na outra
extremidade do túnel. O gás os fazia tossir e espirrar, os olhos se mantinham
fechados por causa da irritação imediata que ele provocava.
O túnel ficou assim,
fechado por um tempo que pareceu uma eternidade aos que se encontravam lá
dentro. Os apelos, em gritos por socorro dos homens, só foram atendidos
quando os policiais reuniram um número de detentos suficiente para auxiliar na
remoção dos feridos.
Todos eles tiveram que se
juntar aos outros presos no pátio. Uélito e Cosme foram os últimos a chegar.
Não podiam falar entre si,
tinham que permanecer de cabeça baixa.
À noite, os que não
estavam envolvidos na tentativa de fuga voltaram às suas celas, os outros
ficaram isolados em celas diferentes das usuais.
***
No dia seguinte, a
movimentação de presos e policiais de escolta durante os procedimentos de
transferência era intensa. Os outros detentos não podiam sair de suas celas,
assim ficaram por quase um mês, sem banho de sol e sem receber visitas, até que
o túnel fosse inteiramente lacrado.
Mediante uma boa
gratificação, um agente penitenciário informou a Max que Cosme e Uélito se
encontravam na solitária do presídio.
Quando, enfim, as visitas
foram liberadas, Max se dirigiu a Dona Margarida para tranquilizá-la sobre o
estado de saúde de Uélito, embora ele mesmo não soubesse muita coisa sobre
isso. Conversou também com a mãe de Cosme, depois, as viu irem
embora, levando suas agonias mudas.
***
Cosme e Uélito apareceram
no pátio numa segunda-feira de sol tórrido, apresentando sinais evidentes de
debilidade física e sensibilidade à claridade. Reunidos na cela de Max, este
pôs os dois a par da situação no presídio.
Deitado no chão, com um dos braços cobrindo os
olhos, Cosme disse:
- A coisa vai feder, tanto pela transferência dos
outros, como pela forma que eles abafaram a fuga.
- Eu soube que um homem teve uma parada cardíaca.
Ele não está mais na enfermaria e não veio para cá.
- Quantos morreram?
- Três.
- A revolta vai aumentar até alguém acender o pavio
da detonação.
- Como assim?
- Qualquer motivo vai ser desculpa pra uma rebelião.
- Acha mesmo que ela vai acontecer?
- Quanto quer apostar?
- Uélito, tua mãe trouxe uma coisas.
Max indicou uma pequena
sacola plástica, no chão, no canto da cela.
- Falou com ela?
- Sim. Tome, ela também deixou isto.
Enfiou a mão por dentro da
calça jeans e retirou do interior de um bolso escondido, duas notas.
- Valeu, Max.
- Cosme, você ainda tem o celular? - Perguntou
Uélito.
- Não, vendi.
- E a tua transferência, Max?
- O advogado ainda tá tentando, Cosme. As unidades
prisionais do Estado estão lotadas, tem gente onde não era pra estar.
- É tudo uma zona!
- Ouvi falar de um mutirão que o judiciário vai
fazer para aliviar a situação.
- Dessa vez o Índio sai.
- Porque ele tá aqui, Cosme? - Perguntou Uélito.
- Matou um michê.
- O mutirão não afasta a possibilidade de uma
rebelião?
- Vai pensando, Max, vai pensando... Tem notícias de
Cabeça de Cogumelo?
- Foi transferido... A pena de vocês vai aumentar
por causa da tentativa de fuga?
Uélito prestou atenção,
não sabia nada sobre aquilo e a perspectiva de passar mais tempo do que o
previsto ali, já principiava a deixá-lo em desespero.
- Não.
- Como sabe?
Cosme se lembrou das
poucas conversas com o seu defensor e a respeito de fuga de presos.
- A gente acaba aprendendo umas coisinhas aqui.
Tentar fugir não é crime. O castigo vem da polícia se tu é capturado e não da
justiça.
Silêncio.
- Vocês querem comer alguma coisa? Tenho pão e
biscoito. - Max ofereceu.
Uélito e Cosme queriam
recusar. Eles sabiam o quanto era difícil se manter com as poucas provisões que
chegavam semanalmente. A falta delas os obrigava a comer o que eles chamavam de
'lavagem', servida no refeitório.
- Vamos, vamos comemorar a volta de vocês.
- Tem umas coisas aqui, na sacola que minha mãe
deixou.
- Não. Hoje é por minha conta!
- Cara, tu é fino mesmo!
Disse Cosme, abrindo uma
embalagem plástica, fechada á vácuo, contendo patê de carne.
- Porque tu tá aqui?
- Sou cúmplice de um assassinato.
E calou-se.
- Cosme, pra quem você vendeu o telefone? Pode
conseguir que eu faça uma ligação?
- É limpeza, Boizinho. Mais tarde a gente vai atrás
do cara.
- Tá.
- Porque Boizinho?
- Quando ele chegou aqui parecia um menino. Hoje não
parece mais, mas tô acostumado a chamar ele assim.
- Se tivessem conseguido fugir o que fariam? Para
onde iriam?
- Eu tinha ido encher a cara num puteiro.- Cosme riu
alto e completou. - Depois eu me mandava pro sul.
- E você?
- Eu ia pro interior, com minha mãe e as meninas.
Virar agricultor. Sei lá... Entrar no Movimento dos Sem Terra e plantar feijão
no fim do mundo, onde ninguém me encontrasse.
- Acha que tuas filhas iam querer? Elas devem ser
mocinhas agora.
Uélito não pensara
naquilo. A última lembrança que tinha das filhas era a delas se remexendo sobre
as espumas que serviam de colchão.
A cena parecia tão
longínqua. Ele se deu conta de como o tempo havia parado lá dentro e continuado
lá fora, assim, lado a lado, implacável e dessincronizado dentro dele. Desde a
mudança de pavilhão, havia deixado de contar sombras.
- Você pergunta demais!
- E tu, Max. O que vai fazer quando sair?
- Retomar meus estudos. Quem sabe, escrever um
livro?
- E sobre o quê?
- Sobre minha vida na prisão.
- Ih! cara, se tu faz isso se condena lá fora.
- Ah, eu me estabilizaria primeiro.
- Tu trabalhava com quê?
- No negócio da família.
- E o que é?
- Construção civil.
- Tu estudava engenharia?
- Sim.
- Taí, tô conversando com um grande herdeiro!
- Acho que não.
- Porque? Quando os teus pais morrem tu não herda
tudo?
- Eles vão deixar tudo pra o meu irmão.
- Sacanagem!
- Ele é o ideal de filho que eles planejaram. Por
enquanto, apenas me sustentam e toleram.
- Tu vai deixar por isso mesmo?
- Não me importo, não contribuí pra nada do que eles
tem. Vou mais é correr atrás da minha própria vida.
Uélito entendeu os motivos
da rejeição doa pais de Max. Intimamente, admirou o modo como ele se colocava
diante dos fatos de sua vida; sem ranços nem pequenez.
- Aí, irmão, não sai dizendo essas coisas por aí. É
perigoso. Tua tá seguro com a gente porque não somos bandidos. Outros usariam
essa informação pra te ferrar.
- Eu sei. vocês são as únicas pessoas que eu
converso aqui.
- É bom conversar contigo, me trata feito gente.
- E não se considera gente?
- É... Aqui, às vezes se esquece o que se é. - Cosme
refletiu em voz alta.
- Sou agradecido aos dois.
- Valeu pela comida, irmão.
E para Uélito:
- Vamos lá, Boizinho, dar aquele telefonema.
Capítulo IV
O Sétimo Ano
A previsão de Cosme sobre
a rebelião se confirmou inesperadamente quando da recepção pela
administração, de um dos líderes da facção mais poderosa do tráfico de drogas
do sudeste do país, a expansão dos negócios dela atingia de assaltos a bancos e
carros fortes, contrabando de armas pela fronteira, sequestros, pirataria e,
sustentavam o rentável negócio das drogas. O temor de alguns líderes do
presídio era o comprometimento dos seus negócios, pois o fato de esse homem
estar lá dentro com eles, de forma alguma significava sua inatividade, e alguns
desafetos tiveram que se unir para negociar a transferência do inimigo para a
região dele. A tenção era crescente, até que arrebentou. A rebelião durou cerca
de trinta e seis horas. O prédio da administração foi ocupado, as celas e a
cozinhas, incendiadas. Quando os corpos começaram a ser jogados no pátio,
mutilados por golpes de chucho e queimaduras, encerraram-se as negociações. A
água e a energia elétrica tiveram seu fornecimento cortado. Sob a ameaça de
invasão da tropa de choque, agentes penitenciários foram feitos reféns. Quando
o cansaço já era patente entre os rebelados e diante da morte de um dos agentes
penitenciários, as instalações, já completamente destruídas, foram invadidas.
A tensão se converteu em
pânico e depois em drama. O
gás lacrimogêneo tomava conta dos corredores do pavilhão. Tiros foram
disparados. Os que se encontravam ainda em suas celas foram removidos a golpes
de cassetete para o pátio.
Uélito e Cosme, refugiados
na cozinha incendiada, decidiram fazer o caminho até o pátio, juntamente com os
outros.
Na escuridão, entre o
fogão industrial e uma pesada bancada de aço inox, arquejando entre as cinzas
que boiavam na água, estava um homem. Uélito voltou.
- Anda, Boizinho! Sem testemunha é bem capaz que
esses putos acabem com a gente aqui mesmo!
- Vai, Cosme! Eu levo o cara!
Começou a arrastar o homem
pelas roupas. O corpo inerte e o cansaço de Uélito dificultavam o trabalho.
Percebendo isto, Cosme voltou para ajudar. Arrastaram o homem até o corredor e
a pouca luz que havia ali os deixou ver o fardamento que os agentes
penitenciários usavam.
- Deixa esse meganha aí!
- Ele tá sangrando muito. Se ficar aqui, até ser
encontrado, vai morrer!
- Se fosse você ele tinha matado ou deixado morrer!
- Não tem como saber!
- Ele é do sistema!
- Sozinho ele não é de sistema nenhum!
- Porra, Boizinho! Vai querer filosofar agora?
Contrariado, Cosme olhou o
homem que arquejava. Em dois movimentos o colocou sobre os ombros.
Uélito achou que liberdade
também passa pelo ato de conceder a si o benefício da dúvida, não obstante as
certezas sensitivas, e à revelia da compaixão.
- Parados! Coloquem o homem no chão e levantem as
mãos!
Cosme obedeceu lentamente.
Lanternas iluminaram o chão onde o agente estava deitado.
***
Vista do alto do rochedo,
a orla semicircular e branca da praia separava o azul intenso das águas do
verde dourado dos coqueiros. O dia estava claro e a temperatura agradável.
Uélito desceu por uma
trilha erodida e íngreme até onde as ondas vinham morrer com seu ruído de
espuma. Olhando ao redor e para o alto, constatou que os enormes rochedos
amarronzados, ora lisos ora escarpados, continham em suas frestas profusões de
avencas e, construíam o oco daquele mar recluso.
Ao longe, uma pequena
embarcação cintilava seus metais ao sol. Ele acenou continuando a caminhar. De
repente, em rota paralela ao sentido que caminhava, a embarcação ficou mais
próxima. Quatro pessoas, dois adultos e duas mocinhas, sorriam e acenavam,
insistentemente, para ele.
O primeiro a desembarcar
foi seu pai, a pele morena, os cabelos encaracolados e compridos, vestido num
terno claro, como na sua foto de casamento. Sua mãe em seguida, vencia a pouca
distância do barco até a praia com suas filhas. Ela trazia uma de cada lado,
pela mão. Seus vestidos eram floridos numa estampa miúda. Parecia mais alta,
a pele rosada e translúcida. Os cabelos castanhos, muito claros, esvoaçavam.
As meninas se atiraram para ele, que as abraçou
girando-as no ar.
- Tinho, vem com a gente, vamos até bem depois
daquela linha lá, tá vendo?
- O que tem lá, pai?
- O nosso rancho, verdinho, de cercas brancas e uma
casa inteirinha de carvalho.
- Tenho que fazer uma coisa aqui antes de ir.
- O que te prende?
- Não sei. Os homens não me disseram. Só que eu
preciso fazer.
- Que homens?
- Não sei. Também não conheço eles.
- Não demore, Tinho.
- Não, pai. Vou assim que puder.
E entrando no mar, ergueu
as filhas nos braços para devolvê-las ao barco. Dali se despediu.
***
- Desfibrilador!
Pediu a enfermeira, ainda na sessão de triagem do
hospital público de urgência.
- Chamem o médico!
E começou os procedimentos de ressuscitação.
***
Uma
estranha calmaria se estabeleceu depois do episódio da rebelião. Vários presos
foram transferidos para outras unidades prisionais da capital e do interior. O
pavilhão B teria que ser totalmente recuperado, e a contar com os processos
licitatórios do Estado, demoraria muito para que as obras de reconstrução
começassem. A densidade populacional dos outros pavilhões aumentou
consideravelmente, entretanto, os presos se mantinham dentro de suas rotinas,
em aparente tranquilidade.
De volta ao pavilhão A,
Max agora trabalhava seis horas diárias na limpeza, numa apatia absoluta. Como
o seu outros círculos de relacionamento se desfizeram com as mudanças.
Cosme não sobreviveu aos
tiros que tomou. Soube da presença da mãe dele no presídio, quando do resgate
dos poucos pertences do filho. Chorou por ambos.
Uma semana depois daquela
noite, ele soube que Uélito estava em coma no hospital.
Por ocasião da visita do
seu advogado, solicitada pelos seus pais, Max pediu a este que procurasse
notícias de Uélito. Pouco tempo depois veio a resposta. Ele havia saído do coma
e se recuperava bem das cirurgias pelas quais passara.
Uma bala no quadril
obrigara os médicos a reconstruir parte dele com platina, duas balas no abdome
o fizeram perder o baço e parte, pequena, do fígado, outra de raspão no rosto
comprometera a vista esquerda. Uélito estava fora de perigo, mas sem previsão
de alta.
De posse do conhecimento dessas informações, Max não
se furtou a fazer outro pedido ao advogado.
- Doutor Cláudio, eu gostaria que o senhor me
fizesse outro favor.
- É só dizer.
- Gostaria que solicitasse vistas do processo desse
rapaz.
- Você sabe quem é o advogado dele?
- O Estado.
- Entendo. Qual é a acusação?
- Tráfico de drogas.
- E porque me pede isso?
- Porque acho que ele é inocente.
- É seu amigo?
- Não da forma que está pensando.
O advogado assentiu com a cabeça.
- Muito bem. Dou notícias.
- Obrigado.
- Doutor!
Já de saída, o advogado voltou-se ao chamado de Max.
- Sim.
- Veja que não falte nada a ele. Inclua tudo no seus
honorários.
- Seus pais sabem disso?
- Não. Não precisam saber.
- Certo.
***
- Max, existe uma série de erros no processo do
rapaz. A impressão que se tem é que não houve investigação, diria que houve um
descaso monumental.
- Ele é inocente?
- Mesmo que não seja os elementos do processo
comprometem o Estado.
- Explique, por favor.
- O defensor público perdeu todos os prazos de
recurso, assim ele foi a julgamento sem que tivessem sido solicitadas as
investigações dos indícios.
- Esse é um ponto de vista, doutor?
- Um profissional comprometido teria seguido os
prazos.
- E agora? O que pode ser feito?
- Sem uma procuração dele, nada.
- Quais são as chances?
- Precisamos saber se existem testemunhas além da
mulher, e do tenente que o prendeu.
- E se ninguém estiver disposto a testemunhar, ou
vivo?
- Seria difícil.
- O sistema é capaz de insistir no erro para não ter
que se contradizer, até que o erro definhe e se extingue. E assim, carreiras
são preservadas e indenizações deixam de ser pagas. São muitos na situação do
seu amigo, lamentavelmente.
- O senhor aceitaria o caso?
- Sim.
- Certo. Vamos deixar que ele volte e então
conversaremos.
- Ele pode não voltar para cá.
- Tem como dar um jeito nisso?
- Vamos ver...
- Vou ser beneficiado com o indulto de Natal?
- Vai sim.
Disse o
advogado estendendo a mão para apertar a de Max.
- Isso é
muito bom.
-
Esperava uma reação mais expansiva.
- Não
tenho pra quem voltar. - Max lembrou-se da pergunta que Uélito lhe fizera certa
vez.
- Não
seja tão rigoroso.
- Eles só
me suportam.
Referiu-se
aos pais sem conseguir disfarçar o desgosto.
- Eles
vão superar, mas você precisa fazê-lo primeiro.
Max ficou
pensativo. E batendo nas costas do advogado:
- O
senhor é um grande cara, nem parece advogado!
***
Max se juntou aos que esperavam na fila, a fim de
tomar o elevador que o levaria às enfermarias. Pensou em certificar-se no posto
da enfermagem sobre o leito que Uélito ocupava, mas desistiu da ideia, a
movimentação de visitantes e grupos de religiosos era intensa nas duas alas do
andar, optou por misturar-se a eles.
Dois policiais conversavam à porta da enfermaria,
aberta de par em par. Ao
fundo, a esquerda da enfermaria que comportava doze leitos, viu Dona Margarida,
curvada sobre uma cama. Ao aproximar-se mais, assustou-se com as depressões e
as rugas de sofrimento no rosto de Uélito. Um dos olhos estava fechado por um
tampão de gaze.
- Dona Margarida, como vai?- Estendeu-lhe a mão.
- Max!
Dona Margarida retribuiu o aperto de mão
surpresa em vê-lo ali.
Tentando ajeitar a cabeça melhor sobre os
travesseiros, Uélito olhou para Max.
- Você saiu?
- Sob indulto. Como você está, amigo?
- Desse jeito que vê.
- Não foi dessa vez.
- Eles bem que tentaram. E Cosme?
Max fez que não com a cabeça, em silêncio.
- Filhos da puta!
Entregando uma sacola plástica contendo frutas, para
Dona Margarida, Max puxou uma cadeira que estava entre os leitos, sentou-se.
Nesse momento, os policiais responsáveis pela custódia de Uélito se
aproximaram, certificaram-se de que estava tudo em ordem e voltaram aos seus
postos no corredor.
- O que aconteceu lá, Uélito?
Dona Margarida afastou-se discretamente, seguindo os
policiais. Ainda tentando digerir a informação que Max lhe dera, Uélito
respondeu:
- Estava muito escuro. Encontramos um homem ferido,
Cosme estava carregando ele para o pátio, era pra lá que a gente ia. Quando os
policiais viram que o homem era um agente penitenciário, abriram fogo.
- Bom, o agente já voltou a trabalhar.
Uélito tentou se erguer mais um pouco, mas a algema
que prendia um dos braços à cama, mais que o quadril imobilizado, tolhia seus
movimentos. Max dobrou um dos travesseiros e fez com que Uélito se acomodasse
melhor.
- Já viu sua filhas?
- Não, não desse jeito. E lá, como vão as coisas?
- Apertadas. Estou trabalhando na limpeza.
- Perdeu o apartamento...
- Foi. Mas o chaveiro ficou de me arranjar outro.
- Falta pouco pra você agora.
- É, e talvez falte pouco pra você também.
- Tá delirando?
- Pedi ao meu advogado que avaliasse o seu processo,
ele encontrou um monte de erros.
- Esqueça. O tempo que iam levar mexendo nisso
cobriria o tempo que falta pra eu terminar de cumprir minha pena.
- Não custa tentar, além disso, cabe um processo
contra o Estado. Você pode ter uma reparação financeira por danos materiais.
- Sei... Eu morro e não vejo a cor do dinheiro.
- Você tem herdeiras bem jovens.
- Não posso pagar por isso.
- Não se preocupe, coloquei na conta da construtora.
Você só precisa assinar umas procurações para o meu advogado.
Silêncio.
- Porque fez isso?
- Porque podia fazer.
Silêncio.
- A mãe contou que derrubaram o Tenente que me
prendeu.
- Derrubaram?
- Deram cabo dele, lá na comunidade. Os traficantes
fizeram uma emboscada pra quadrilha. Como o custo da proteção e as apreensões
encareciam o preço das drogas, começaram as represálias dos dois lados. Quando
o bando do Tenente se desmanchou, a paz voltou. Os policiais mortos foram
enterrados com honra e a vida continuou.
- Uélito, é possível que eles tenham acobertado a
mulher e te feito de pato pra pegar dinheiro dos traficantes?
- É possível. Eles bateram na outra mulher e
dispensaram ela, provavelmente para levar o recado pra os traficantes.
- Será que essa mulher... A que eles mandaram
embora, não testemunharia? Ela ainda mora na comunidade?
- Não sei.
- Mas duvido muito que ela queira testemunhar. É
assinar a própria sentença de morte. O resto do bando do tenente ou os
traficantes davam um jeito nisso. Dá até pra imaginar como a notícia ia
aparecer na televisão: foi encontrado em tal lugar o corpo de uma mulher aparentando
tantos anos... O crime tem sinais de execução e está sendo investigado por tal
delegacia... Mas, a verdade é que não fazem investigação. Não é o tipo de morte
ou de pessoa que desperta o interesse do Estado nem do povo. É só menos um. Eu
sei o que digo, se existisse investigação pra casos como o meu, eu não estava
aqui.
- A gente pode pedir que ela entre no programa de
proteção a testemunhas...
- Me poupe! Que inocência... Isso serve quando a
briga é de cachorro grande. A testemunha é protegida de morrer, mas as
condições não são muito diferentes das do presídio, penúria e comida ruim, além
do mais, o Estado não vai investir num caso tão chinfrim. Max presta atenção...
A história perfeita é essa... Mais um traficante fora das ruas, eu. Policiais
heróis mortos em serviço, e sociedade carregando suas cruzes ou descansando ao
som do mar e à luz do céu profundo, sendo corrompida e corrompendo, se vendendo
ou comprando, sem esquecer aqueles que precisam das drogas pra sonhar bonitinho
enquanto fazem uma coisa ou outra.
Depois de uma pausa.
- Existe a virtualidade da vida real, foi nela que
eles me prenderam, é nela que a vida real se justifica. Então, a grande
pergunta é: quanto de realidade se pode aguentar? Isso aqui... - Agitou o braço
algemado - O único elo concreto entre ela e o meu espírito desprevenido. Eu sou
o otário!
- Lembrei de um escritor que li na faculdade.
- O que tem ele?
- Ele induzia a pensar no quanto de realidade as
pessoas podem suportar.
- Uma verdade e uma mentira podem mudar dependendo
do querer do dono delas, mas como transformar uma realidade que não se conhece?
- Fala de realidade social?
- Falo dessa e daquela que a gente carrega dentro da
gente.
Max quis argumentar, mas não conseguiu.
- O que aconteceu com esse escritor?
- Morreu louco.
Ambos riram.
- E como se sentiu?
- Como assim?
- Quando o homem que te prendeu morreu.
- Você é estranho, Max.
E pensativo:
- Alguém que chega tão perto da morte só pode tratar
ela de duas maneiras... Com cinismo ou com respeito. Eu não senti nada, nem
alívio pela vingança.
- É momentâneo.
- Pode ser.
- Preciso ir agora, estou tomando o tempo que você
tem para ficar com sua mãe.
- E teus pais?
- Do mesmo jeito que sempre estiveram.
Max riu sem graça e olhou Dona margarida, através
das portas abertas da enfermaria, esperando, pacientemente, no corredor.
- Tua mãe é uma grande mulher, Uélito.
- É... - Os olhos de Uélito acompanharam os de Max.
- Eu nunca soube a origem do teu nome.
- Meu pai se chamava Wellington. O escrivão do
cartório escreveu o nome do jeito que ouviu.
- Arre!
- Obrigado por ter vindo, Max.
Max assentiu com a cabeça e partiu.
***
A viatura da escolta
percorria a estrada litorânea a caminho da unidade prisional. Uélito podia
sentir o cheiro da maresia.
Não estava preparado para
o desassossego que se abateu sobre ele. O longo período de internamento o
fizera habituar-se à rotina da enfermaria. Depois da desconfiança e
discriminação, por terem que dividir espaço com um presidiário, os demais
pacientes se acostumaram a ele e as suas companhias constantes, os policiais da
custódia.
Nem sempre sua mãe podia
estar com ele, então, se entregava de boa vontade, na sua incapacidade, à
assistência de outros pacientes ou de seus acompanhantes.
Ele pensava em como a
doença equalizava as pessoas no mesmo tom complacente, e, em como a
possibilidade da morte as faziam desejar tornarem a vida maior do que elas
próprias, só para, tendo sobrevivido, desesperarem-se com a única coisa que as
equalizavam de fato: a morte.
Com as mãos algemadas na
frente do corpo, Uélito ultrapassou, caminhando com dificuldade, as grades de
acesso à carceragem, ignorando a impaciência dos policiais que o
conduziam.
Um agente penitenciário
veio em direção ao grupo, parando à frente de Uélito, estendeu a mão dizendo:
- Obrigado!
Ele apertou a mão do homem
para que ela não ficasse ali, parada no ar, mas sem entender. Percebendo a
confusão de Uélito, o agente falou:
- Você e outro detento me tiraram lá da cozinha
durante a rebelião.
Uélito não fixara na memória a fisionomia dele.
- Se não tivessem feito aquilo, eu tinha morrido lá.
- Tenho certeza que faria a mesma coisa por mim.
O homem desviou os olhos para o chão.
- Sinto muito pelo seu amigo.
- Eu também...
Os policiais levaram
Uélito até a cela que ocuparia com menos impaciência, agora. Ele se deitou no
chão, sem se importar se aquele lugar pertencia a alguém. Só havia três homens
lá, os outros, muito provavelmente, estavam no pátio, onde se desenrolava uma
partida de futebol.
- O que foi isso, Mago?
Perguntou um dos homens, a quem Uélito nunca havia
visto.
- Nada.
- Tu tá aí todo destruído e não foi nada?
Ele se virou para a parede, fechou os olhos para
descansar das dores nas pernas e quadril.
- Ô folgado! Tá pensando que é o rei da cocada
preta? Vai dando o fora daí, anda!
O homem lhe cutucou as
costelas com o pé. Uélito se levantou e foi para o pátio. Catou uma moeda no
bolso, comprou um copo com água e engoliu um dos comprimidos de analgésico que
escondera das enfermeiras. Adivinhara que não o mandariam para a enfermaria do presídio.
Não foi jantar. Voltou à
cela e esperou que todos voltassem para, finalmente, saber em que espaço
dormiria.
No dia seguinte, Max o
encontrou dormindo sentado, com a cabeça encostada em um dos joelhos dobrado.
Tocou-lhe o ombro, e levantando a cabeça, ainda entre névoas de sono, Uélito
sorriu, involuntariamente.
- Vamos, vamos sair daqui!
O ajudou a se erguer.
Na sua cela, Max fez
Uélito deitar sobre o colchão nu da cama de concreto. Abriu algumas embalagens,
começando a preparar o café da manhã. Reparou que ele o olhava como se
procurasse foco.
Uma pele fina e rosada
vinha surgindo sobre a cicatriz do supercílio. Os fios brancos da cabeleira,
antes muito negra, se espalhavam pelas sobrancelhas e pela barba, crescida de
dias. A pele tinha uma tonalidade amarelada.
- Acho que te liberaram cedo demais do hospital.
- Um paciente custodiado é sempre um risco.
- De quê?
- De que alguém queira acabar com ele ou tirar ele
de lá.
- Mas não é o seu caso.
- Vai dizer isso a eles.
- É nessas coisas que pensa? Quando fica daquele
jeito, isolado?
- Já gostei mais das pessoas.
- Toma...
Max estendeu a Uélito um sanduíche e um suco de
fruta em garrafa plástica.
Uélito ficou pálido ao colocar os pés no chão.
Testou as posições para encontrar aquela que causava menos dor, encontrando-a,
pegou o que Max oferecia, demorando um pouco para começar a comer.
- Você não pode ficar desse jeito.
- Não se preocupa, não.
- Vamos fazer assim, durante o dia você fica aqui e
descansa. se não melhorar, damos um jeito de colocar você na enfermaria. Passo
o dia trabalhando mesmo, o apartamento fica subutilizado.
Riu da própria piada.
- Você é um cara bom, Max.
- Eu preciso ir cuidar das minhas coisas. Volto na
hora do almoço.
Uélito tomou outro
analgésico, pegou um dos livros na prateleira, um tipo de Atlas, ricamente
ilustrado com quase todas as raças de cães, antes de terminar de folheá-lo,
adormeceu profundamente.
Teve um sonho onde suas
filhas caminhavam por uma estrada escura de asfalto. Caminhavam e
caminhavam, e mesmo cansadas prosseguiam sem nunca chegar aonde queriam ir. A
estrada não tinha margens nem acostamento. Ele as chamava, mas elas seguiam sem
ouvi-lo, nem ele se ouvia, era como se a sua voz fosse abafada pela dimensão do
escuro. Mas então, de repente, elas se voltaram e ele viu que seus rostos eram
de anciãs. Acordou num sobressalto. Transpirava. Despiu-se da camisa e tentou
voltar a dormir.
Capítulo V
O Oitavo Ano
De volta à cela, Max
trouxe uma bengala que fizera com restos do retelhamento do pavilhão B. Antes
de começar a preparar o almoço de sanduíches e frutas, que começava a
deteriorar, deteve-se em olhar o abdome de Uélito. Uma cicatriz começava entre
o fim do osso externo e início do plexo solar, se estendendo até pouco abaixo
do umbigo. A disparidade entre as marcas por onde haviam passados os fios
indicavam dificuldade na cicatrização ou descuido na estética da sutura. O
certo é que não fora uma cirurgia das mais fáceis. Max achou que Uélito foi
beneficiado com um desses milagres que os homens conseguem fazer, e por um
tremendo golpe de sorte em encontrar o atendimento adequado na rede de saúde
pública.
Definitivamente, aquele não foi o seu dia de morrer.
Apanhou o livro do chão e devolveu à
prateleira. Não acordou Uélito. Comeu sozinho, deixando preparada a parte do
outro. Ao sair trancou a grade da cela por fora.
Ao final da tarde, Uélito ainda dormia, o semblante
menos contraído. Max jogou fora o alimento intocado.
Uélito abriu os olhos sem se mexer.
- Ei, cara! Por onde andou?
Max brincou.
- Por aí!
- Sonhou com cães?
- Tinha sido bom.
E levantando-se com dificuldade:
- Hora de ir.
- Vamos comer primeiro, depois eu te ajudo.
- Olhe, trouxe pra você. - E lhe passou a bengala.
- Acho que não tenho chance de sair pra fazer as
sessões de fisioterapia.
- Estão prescritas?
Uélito enfiou a mão no bolso de trás da calça, de lá
tirou um maço de papéis.
- Duvido que tenha escolta disponível.
- Não, não tem. Já vi muitas audiências serem
adiadas por causa disso.
- Os medicamentos, nós podemos conseguir. - Disse
Max.
- Não tenho condições de recusar, Max. Mas juro, vou
devolver cada centavo.
- É claro que vai devolver. Você não ia sobreviver a
tudo isso só pra ficar me devendo, não é?
O tom era de brincadeira.
- Não.
E o tom de voz de Uélito era sério.
***
O prédio de dezoito
andares, às margens de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, tinha a
fachada inteiramente em vidro fumê. O jardim e o playground suspensos sobre a
enorme área do estacionamento subterrâneo. As piscinas, sempre bem cuidadas,
proporcionavam uma agradável visão da janelinha da área de serviço do
apartamento localizado no oitavo andar. Era lá que Dona Margarida passava as
roupas dos patrões, um casal jovem, ele advogado, ela, gerente de marketing de
uma grande rede se supermercados, não tinham filhos. Eles eram razoavelmente
organizados, o que diminuía consideravelmente sua carga de trabalho.
Duas vezes por semana,
sempre às sete horas da manhã, Dona Margarida cruzava os portões duplos do
prédio e se dirigia ao elevador de serviço. No apartamento, recebia as
instruções dos donos da casa, bem como o pagamento da diária, antes destes
saírem para o trabalho.
Havia conseguido o emprego
graças a indicação do Pastor de sua igreja, ele convenceu seus patrões de que
apesar da idade avançada, ela era uma pessoa comprometida, zelosa e de
confiança. E assim, Dona Margarida contava com uma pequena renda fixa que
auxiliava no sustento das netas, desde que Uélito fora privado da liberdade.
No final da tarde, deixava
as chaves do apartamento com o segurança na guarita, e no caminho de volta para
casa, sempre feito à pé, parava no mercadinho, onde adquiria alguns gêneros
alimentícios. Mas, naquele dia não seria assim.
Um pouco mais tarde, por
volta das dez horas da manhã, sem que houvesse realizado nenhum esforço
exagerado, teve uma sensação estranha, como se alguém lhe comprimisse a coluna
vertebral, a pressão se estendeu ao osso externo, à garganta, aos ombros e
instalou-se de cada lado do maxilar, atingindo o queixo. O mal estar era tão
insuportável e repentino que foi obrigada a se deitar no chão.
Assim, ficou inconsciente
até que abiose principiou a fazer sua parte, sem tragédias outras se não a que
lhe competia, por excelência, na cena solitária do tablado do corpo. O mesmo
mecanismo, misericordiosamente intrínseco aos protagonistas novos de ensaio
antigo, funcionava ao se fecharem as cortinas do ato derradeiro.
***
- Mas que merda!
O patrão exclamou contrafeito.
- Liga para o 192!
A patroa, que nunca
estivera próxima a um cadáver, assim, em situação tão íntima, superou o choque
inicial e ligou para a emergência, sem saber ao certo tratar-se mesmo de um
cadáver.
- Desculpe senhora, mas não atendemos mais a este
tipo de chamado, recomendo que entre em contato com o 193.
Disse a atendente do outro lado da linha.
- Deixa, querida, eu ligo para a polícia. Ela está
morta. Tanto lugar para isso acontecer e tinha que ser justo na nossa casa?
Merda!
Dali a duas horas a
viatura do Instituto de Medicina Legal partiria entre os jardins gramados do
prédio de luxo levando o corpo de Dona margarida.
- E agora?
Perguntou a patroa, entre
compadecida e temerosa. Seu marido procurava um número na agenda do telefone
celular.
- Pastor Josué? Desculpe acordá-lo.
E descreveu o ocorrido.
- Vamos dormir fora.
A patroa apanhou algumas
peças de roupa de ambos, enquanto ele pegou alguns documentos no escritório, e saíram.
***
Júlia serviu o jantar para
a irmã e para si, preocupada com o retardo da avó, ela nunca se atrasara assim,
nem nos dias em que saía do trabalho e ia diretamente para a igreja. Na medida
em que as horas passavam, aumentava a sua apreensão. Todo tipo de pensamento
lhe ocorria; atropelamento, assalto, um mal estar que a deixasse inconsciente,
à mercê de desconhecidos.
Quando já pensava em buscar a ajuda dos vizinhos
para localizar a avó, as batidas na porta soaram como um mau presságio.
- Boa noite, Júlia. Posso entrar?
- Pastor!
- Onde está sua irmã?
- Dormindo.
- Acorde-a. Vocês vão dormir na minha casa hoje.
Disse para a adolescente confusa. E depois de uma
pausa:
- Júlia, Dona Margarida não vai voltar...
Falou-lhe da forma mais suave e confortadora que se
podia falar sobre a perda definitiva de pessoas queridas.
- Prometo que vou procurar seu pai e sua mãe.
- Eles não quiseram a gente.
- O que sabe sobre o seu pai?
- A avó disse que ele precisou viajar.
Ele achou que talvez fosse melhor conversar sobre
aquele assunto quando o estado emocional dela melhorasse. Faria isto juntamente
com sua esposa.
- Acorde Mônica e pegue suas coisas.
Falou para a adolescente atordoada e em lágrimas.
***
Depois da longa e fila e da degradante revista, o
pastor Josué entrou no pátio do presídio, tentava localizar Uélito naquela
agitação.
- Pastor!
A pouca distância dele, um homem magro, pálido, de
barba cerrada e cabelos há muito precisando de um corte, estendeu-lhe a mão.
- O que tá fazendo aqui?
- Uélito! O que aconteceu com você?
O homem o analisava como se o desconhecesse.
- Uma má fase. Minha mãe não disse ao senhor?
- Sim, mas eu não esperava nunca encontrá-lo nesse
estado.
- Venha, vamos sentar ali.
Uélito apontou para uma mesa ocupada apenas por dois
homens.
- Veio visitar alguém?
- Vim conversar com você.
O tom de voz era grave, solene.
- Uélito, sua mãe faleceu na última quarta-feira...
Esperou uns instantes para
que ele processasse a notícia. Viu seus olhos marejarem, as narinas fremirem no
nariz aquilino, agora, dando a impressão de ser ainda mais fino por causa da
magreza do rosto.
Silêncio.
- Conte... Como foi?
Sua voz saiu firme e baixa.
Pacientemente, o Pastor Josué relatou os detalhes da
passagem de Dona Margarida, e tirando uns papéis do bolso interno do paletó:
- Agora, preciso que assine isso para que eu possa
providenciar a liberação do corpo.
- E minhas filhas?
- Estão comigo e minha esposa. Mas, terei que
procurar o conselho tutelar. Farei isso assim que resolver as coisas do
sepultamento.
Uélito assentiu com um gesto de cabeça.
- Eu sei que já fez muito, e agradeço, mas pode me
fazer só mais um favor?
- Claro!
- Procure comprador para as coisas dentro da casa.
Dê o dinheiro para Júlia.
- E quanto a casa?
- Deixe fechada.
- Pode deixar, tomamos conta até você voltar.
- Obrigado.
O Pastor o abraçou dizendo:
- Não perca a fé.
Uélito acenou afirmativamente, sem dizer nada.
***
Max foi encontrar Uélito
em sua cela, sentado sobre a cama. O rosto congestionado, leves tremores lhe
percorriam o corpo, respirava com dificuldade. Olhava ao redor sem focar ponto
algum, de fato não parecia enxergá-lo nem ouvi-lo.
- Uélito! Olhe pra mim!
Ele balbuciava palavras
sem nexo, os olhos muito abertos. Max entendeu, então, que ele estava em
colapso nervoso. Bateu com força em seu rosto. Os sintomas foram diminuindo,
ouviu-se um urro dolorido, as lágrimas rolaram profusas entre os soluços. Max o
deitou e agasalhou.
Trancando a cela por fora,
foi até o posto da guarda tentar que o deixassem falar com alguém da
administração a fim de transferir Uélito para a enfermaria. A informação que
recebeu foi que esta estava com superlotação.
Conversou com um dos
agentes para que Uélito pudesse ficar em sua cela, até ter uma avaliação do
médico, descreveu seu estado e jurou que se ele viesse a sofrer algum dano por
falta de assistência, seu advogado se encarregaria de processar os responsáveis
diretos.
- Vou ajeitar as coisas, mas só vamos ter médico na
terça-feira.
Disse o agente.
Ao retornar à cela, Max percebeu que Uélito não se
movera, os olhos estavam fixos no teto, os tremores do corpo estavam mais
espaçados. Deitou-se ao lado dele o envolvendo com o braço.
- Max...
- O que é?
- Não vou poder ver ela.
- Então vai se lembrar dela como da última vez que a
viu.
- É...
Uma lágrima escorreu pelo canto do olho de Uélito,
num impulso, Max o beijou suavemente nos lábios.
Sem resistência o beijo aprofundou-se até o
desespero. Deram-se e se receberam, numa troca imperativa, para além das
misérias de suas almas alquebradas, muito além do juízo do toque.
***
Na sexta-feira, enquanto os outros detentos ouviam,
pelos auto falantes, a narração de um jogo da seleção de futebol, pelas quartas
de final da copa do mundo, eles trocavam lembranças e histórias da infância e
adolescência. Uma catarse que lhes mostrava como eram diferentes em suas
origens e modo de vida, e, como eram iguais nas esperanças de se tornarem o que
queriam ser.
A maioria das lembranças de Uélito decorria imbuída
da felicidade simples, da convivência com os pais. Um modo de tê-los perto,
quando sabia que já não poderia tê-los nunca mais.
- A única coisa livre no homem, Max, é o pensamento.
Fisicamente ele tá sempre emaranhado em alguma necessidade, em alguma
armadilha, em algum sentimento mesquinho ou tão iluminado que cega mais a cegueira
dos outros homens, fracassando na pirraça com que concorrem entre si para ter
mais do que o outro.
- O que quer dizer?
- A gente morava numa vila de operários da fábrica
de tecidos onde, por um bom tempo, meu pai trabalhou, acho até que foi o
desemprego que acabou com ele quando a fábrica fechou... Um casal morava na
vila com seus cinco filhos. Lá, a vida de todo mundo era tão pública como as
roupas que as mulheres estendiam na cerca do campinho de várzea, vizinho da
vila.
Max achou curiosa a comparação. As narrativas
de Uélito sempre o prendiam.
- As fofoqueiras diziam que há muito tempo o homem
deixou de cumprir suas obrigações de marido. As crianças viviam, praticamente,
da caridade dos outros moradores. A mulher tinha uma cara de bicho assustado, esfomeado...
Por várias vezes ouvi minha mãe aconselhar ela a largar o marido. Mas, ela
tinha medo. O marido tinha amante em tudo quanto é canto. Um dia, num escândalo
que eles aprontaram no meio da rua, o homem segurou o sexo na frente dela e
disse:
- Isso aqui não é mais pra você!
- Na semana seguinte, a gente soube que o homem tava
internado no hospital. A mulher tinha castrado ele. Somente minha família soube
o motivo verdadeiro do internamento dele. Quando se recuperou, ele voltou pra
casa e pra o trabalho. A vida da mulher e dos filhos melhorou um pouco. Moral
da história: ele se prendeu a ela pela necessidade que tinha que alguém
cuidasse dele, e ela a ele, pelo ódio, pela vingança, pela obrigação que tinha
de cuidar dos filhos.
- Entendo o que quer dizer, mas isso não é um
padrão. Não é assim com todo mundo.
- A forma de prisão afetiva muda, mas funciona
sempre do mesmo jeito.
Uma pausa:
- Você surpreende, Uélito. Como sabe tanto da vida?
Você não deve ter nem quarenta anos, tem?
Max disse lentamente, naquela
atitude de quem tenta refletir e se expressar ao mesmo tempo.
- Tenho quarenta e seis. Mas nenhuma vida pode ser
aprendida, Max, só vivida. Os estudos são informações para te tornar
operacional.
E completou com a testa
franzida, como quem contempla um passado de imagens borradas, muito distante:
- Antes de ir trabalhar lá no restaurante, trabalhei
para um homem que tinha uma livraria. Às vezes ele complementava parte do
pagamento da quinzena com livros, eu e mais dois funcionários repassava para os
sebos. Livro não enche barriga. Uns, eu guardei e tá cheguei a ler, mas só
pensei sobre eles depois que vim parar aqui. Aí, o que eles diziam começou a
fazer sentido.
Silêncio.
- Temos uma vantagem, não é?
- Qual? Você vê alguma?
- Os pensamentos da gente não se prendem aqui.
- É. Começo a achar que lá fora eu era tão alienado
quanto sou aqui.
- No caso da gente a liberdade teve um custo, a
prisão infinitamente outro.
Silêncio.
- Max, acha que elas vão me perdoar?
- Tuas filhas?
- Sim.
- Pelo quê?
- Por não ficar com elas?
- Claro que vão!
- Não sei. O tempo transforma verdade em mentira e
mentira em verdade.
Devem ter ouvido falar muita coisa de mim.
- Porque durante esse tempo todo não deixou que elas
viessem te ver?
- Pra poupar elas.
- Ou você?
- Fiz errado?
- Fez o que achou certo.
- O que você faria?
- Difícil para eu dizer. Quem sente os seus
sentimentos é você.
- Você tem filhos?
- Não, não tenho.
- Mas pensa em ter?
- Já pensei sobre isso.
- E qual foi o resultado?
- Que talvez eu esteja destinado à solidão mais
profunda que um homem pode experimentar; a de não deixar herança de si.
- Mas você pode mudar isso... Encontrar uma
mulher...
- Não seria justo pra mim nem pra ela. No máximo, ia
ser um inferno em família.
O meu, prefiro viver sozinho e acho que essa é a minha
contribuição; a diminuição da hipocrisia que cerca o contexto da
homossexualidade.
- Como assim?
- O homossexualismo é ancestral, Uélito e não só na
espécie humana. A organização do homem em sociedades e civilizações, sob a
influência de religiões de culto monoteísta, determinou uma ordem social que
juntou amor à reprodução. Minha prisão vem de antes de eu nascer.
- Se considera incapaz de amar uma mulher?
- Fisicamente, sim.
- Mas isso não tá no querer?
- Não, tá na memória genética. Obrigar o amor não é
amar nem garantia de ser amado. Por outro lado, o instinto da reprodução nos
faz fazer sexo sem amor e sem o objetivo de procriar. O que coloca por terra o
compromisso do amor inseparável da reprodução.
- Você pode alugar uma barriga e fazer aquele
negócio de inseminação.
- Não força, Uélito! Não vou procriar para ver meu
filho se tornar mais uma vítima de discriminação.
No silêncio que se fez,
Uélito pensou que liberdade também era aquilo; ter certeza sobre o que
renunciar na busca de uma condição duradoura de paz interior.
***
Na terça-feira, eles foram
juntos ao consultório médico do presídio. Uélito recebeu uma cápsula de
medicamento controlado, com a recomendação de tomá-lo sempre à noite e que
fosse apanhar a dose única diariamente.
- Vou falar com doutor Cláudio, vamos ver se ele
consegue que você vá visitar o túmulo da sua mãe. Ela te amou muito, Uélito. Um
amor de sacrifício. Não é justo se privarem disso.
- Eu agradeço, Max.
- O que vai acontecer com as meninas?
- Mônica vai para um lar de adoção.
- Vocês não tem parentes?
- Dois tios por parte de pai, mas eles moram no
sudeste. A gente não se vê há muito tempo.
- Quando é que a mais velha completa vinte e um
anos?
- Daqui a um ano.
- Mas ela já está por conta própria, não é?
- Sim.
- Elas estudam?
- Sim.
- Certo. Vamos ver o que podemos fazer quanto a isso
também.
Silêncio.
- Max, por que você se importa?
- Porque você se importa.
***
Na tarde em que foi ao
cemitério, sob escolta, o agente a quem ajudara a salvar a vida, se prontificou
a comprar, com o dinheiro que Uélito lhe deu, o modesto ramalhete de flores
brancas e amarelas que, sem as algemas, o filho de Dona Margarida acomodou
sobre o túmulo. Ele arrancou toda erva daninha que enfeava a terra escura e
úmida da última chuva, com um pensamento a tentar-lhe: a fuga.
Depois de muito
considerar, chegou a conclusão que caso sobrevivesse, estaria trocando uma
aflição por outra. Não fugiria, uma vez que não poderia se aproximar das
filhas.
Em silêncio, estendeu as
mãos para que o agente recolocasse as algemas e retornassem ao presídio.
Capítulo VI
O Nono Ano
Uélito não obteve muito
sucesso nas sessões de exercícios que Max o obrigava a se submeter. A
bengala se tornou indispensável. Mesmo assim, Uélito conseguiu ser encaminhado
para trabalhar na cozinha, embora o tempo trabalhado não pudesse ser abatido de
sua pena. Lá ele permanecia por todo o período da manhã.
À exceção dos conflitos
ocasionais entre traficantes e adversários, confusões por causa de furtos e
assédios sexuais, a unidade prisional se mantinha no seu limite surreal de
tranquilidade.
Naquele ano, Júlia
contratada após estágio, em um dos escritórios da construtora dos pais de Max,
requereu, com a intervenção do advogado, a tutela da irmã. Moravam agora em um
antigo casarão no centro da cidade, cuja dona alugava vagas para moças e não se
importava que elas cozinhassem no quarto, este constava de uma sala
razoavelmente ampla e banheiro.
Para Uélito,
existir se tornara uma experiência quase aprazível. Sabia onde as suas
filhas estavam. Seus maiores temores não se confirmaram, os de que elas se
envolvessem com drogas ou prostituição ou ambas.
- Elas têm a fibra da sua mãe, Uélito.
- É.
Depois de um momento:
- Devo muito a você, Max.
- Presta atenção, Uélito, nada do que foi feito ia
servir se elas não fossem lutadoras, se não tivessem caráter. Tua mãe criou
muito bem essas meninas.
Silêncio.
- Júlia quer vir aqui.
- Não!
-Agora você não pode impedir...
- Não!
- Se torne verdadeiro para elas de novo, Uélito!
- Não!
- O que se passa com você? Acha que vai poder
preencher esse hiato de tempo que separa vocês com os mesmos hábitos de antes?
De quando elas eram crianças?
- Não!
Agitava a cabeça com veemência.
- Compreendo que você tenha sobrevivido até aqui por
elas e compreendo que a dúvida sobre se será rejeitado ao não, parece melhor do
que a certeza negativa, mas Uélito, não pode negar a elas o direito de saberem
como se sentem em relação a tudo.
- Não!
Menos veemência.
- Peça a doutor Cláudio que convença Júlia e
Mônica que quero muito ver e abraçar elas, mas no meu tempo. Olha pra isso,
Max!
E apontou o entorno.
- Olha pra mim!
Max assentiu.
- Toma... - Disse retirando uma folha de jornal,
dobrada várias vezes, do bolso da bermuda.
- O que é isso?
- Segunda folha, quinta coluna à esquerda.
- Não enxergo, as letras são pequenas demais.
Max rasgou com cuidado a coluna inteira da folha de
jornal e a dobrou, marcando um nome.
- Enxerga agora?
Tapando o olho lesionado com uma das mãos, Uélito
leu.
- É Júlia?
- Sim é isso que ela quer contar. Ela passou no
vestibular.
- Ela conseguiu!
Ria e chorava ao mesmo tempo.
***
Na Páscoa daquele ano,
alguns detentos foram chamados a fazer a limpeza do pátio, onde seria realizada
a missa da Sexta-Feira da Paixão.
O crucifixo, em tamanho
natural, tinha sido talhado em um tronco de coqueiro. O Cristo acomodado entre
as fibras ressequidas e enegrecidas pelo tempo, tinha os olhos desmedidamente
abertos, como olhos que precisam desesperadamente enxergar. os lábios grossos estavam
abertos num esgar de dor.
As histórias sobre a peça
davam conta que o rosto do Cristo se assemelhava ao artesão que o doara a
unidade prisional, que o mesmo cumpria pena pelo assassinato da esposa, e
contraíra leptospirose, vindo a falecer restando uma semana para sua liberação.
Uélito terminou de montar
o altar de tábuas irregulares sobre dois cavaletes e se juntou aos outros
homens que varriam o pátio.
Perto do fim da arrumação
o seminarista que coordenava os trabalhos convidou a todos, cordialmente, para
a missa do dia seguinte. Identificando o ceticismo na postura de Uélito,
dirigiu-se especificamente a ele, que tinha Max ao seu lado:
- Venha e peça por sua liberdade.
- Não quero mais, a que eu tenho já estava pronta.
- Não é desse jeito, meu filho. Deus é poderoso,
confie Nele.
Num tom de voz tranquilo e baixo, Uélito refutou.
- Se eu tivesse esperança de ser atendido em alguma
coisa, não ia pedir a liberdade. Tem muita gente pedindo a mesma coisa, aqui e
lá fora, e se todo mundo for livre, que trabalho vai sobrar pra Ele fazer? Eu
ia pedir que atrasasse minha em vinte e cinco minutos, toda ela, assim eu
não estava lá, naquela hora que me trouxeram pra cá. Ele é tão poderoso, Padre?
Disfarçando a surpresa o seminarista se dirigiu a
Maximiliano.
- E você? O que pediria?
- Nada.
- Nem por ninguém?
- Eu levaria algo, ao invés de pedir.
- Ah, e o que seria?
- Olhe bem para mim: tudo o que tenho eu
devolveria a Ele, de quebra, daria tudo o que me falta, porque o que eu não
tenho, também é só meu. Mas a gente não vai se encontrar. Você levaria pra mim?
Max piscou o olho para
Uélito. Constrangido, o seminarista calou sobre o assunto.
- Vamos, me ajudem a ajeitar melhor os bancos,
precisamos deixar espaço para os que ficarão de pé.
E puseram-se a concluir o trabalho.
Capítulo VII
O Décimo Ano
- Uélito!
Ele não se voltou de
imediato. Não queria olhar para ela. Não queria conversar com ela. Intimamente,
desejava que, quando um dia, pudesse ter sua vida de volta, esta fosse limpa de
fantasmas e sombras. Queria um marco zero de onde pudesse sair a caminhar
olhando à frente, ainda que não pudesse prever nem planejar nada.
Queria negar a ela o
direito a qualquer palavra sua que por ventura viesse a ser entendida como
sinal de perdão. Sim, ele a compreendia. Não se sentia do direito de cobrar
nada a ela que, antes, imaginara ter sido seu. Mas, entender seus motivos não
significava reconhecer que ela não tivesse alternativa a não ser abandonar as
filhas. Perdoaria se as tivesse levado consigo. Perdoaria se ela tivesse dito,
olhando em seus olhos, que o estava deixando porque ele não podia estar com
elas, que não tinha serventia. Perdoaria, até, se ela dissesse estar envolvida
com outro homem. Mas para essa omissão que durou até ela resolver dar sinal de
vida, sim, porque se ela estava ali, depois de tentos anos era porque desejava
resgatar algo, para essa omissão, não pertencia o perdão, mas o esquecimento.
- Uélito!
- Mariângela.
Ele disse sem surpresa na voz. Ela ficou em silêncio,
a olhá-lo.
- Como você está?
Mariângela perguntou como forma de se livrar da
insegurança.
- Não tá vendo?
- O que fizeram com você?
- Não importa agora. Foi feito, como tudo que é
passado.
- Não tem um lugar onde a gente possa conversar?
Uélito apontou com a bengala para uma mesa que se
encontrava desocupada.
- Então? O que te traz de volta?
- Sem piadas, Uélito, por favor.
- Sinto muito, mas não tenho poder pra aliviar tua
culpa.
- Vai ser assim?
- Como?
- Não vai me dar a chance de explicar?
- Você teve todas as chances e rejeitou há muito
tempo.
E impaciente:
- O que você quer?
Silêncio.
- Onde estão Júlia e Mônica?
- Elas estão bem.
- Onde?
- Essa informação devia bastar, já que você não teve
a mínima dignidade em escrever uma única linha, nem dar um telefonema pra saber
delas.
- O que está pensando? Que a minha vida foi um mar
de rosas? Que eu não comi da banda podre?
- Não! Não quero saber da sua vida! Do que perdeu,
do que ganhou, do que gozou...
Uélito se obrigou a controlar a raiva.
- Você é tão egoísta! Tão pequena!
E depois de uns instantes:
- Só pra você ficar mais tranquila, Júlia tem a
tutela de Mônica. Elas se saíram bem, mas você não estava lá pra ver.
- Talvez tenha sido melhor assim.
- Começo a achar que foi melhor mesmo.
Silêncio.
- Eu fui lá na casa. Tava fechada.
- Ela ficou assim desde que minha mãe morreu.
- D. Margarida...
- Sim.
- Quando foi?
- Faz tempo.
A impaciência dele crescia.
- Diga o que quer!
- Preciso ver as meninas
- Precisa? Tem certeza? E será que elas querem ver
você?
- Uélito, por favor!
Ele sentia um estranho prazer em vê-la atormentada.
- Elas vêm aqui?
- Não.
- Não vai me dizer?
Silêncio.
- Fale sinceramente, acha justo aparecer assim do
nada, como se nada tivesse acontecido? E ainda acha que tem direitos?
- Não quero impor nada! Só preciso ver as meninas e
você só tem que deixar elas decidirem sozinhas o que tiverem que decidir.
- Olhe, venda a casa, pegue o dinheiro e volte para
onde estava. Esqueça a gente!
- Eu não quero dinheiro! Porque você tem que resumir
as coisas a isso? Além do mais, pra onde você vai quando sair daqui? Aonde vai
se enfiar com aquela sua amante, Janet?
O veneno das palavras dela
não o atingiu imediatamente.
- É. Ela me procurou quando você sumiu. Nem foi
preciso pensar muito para chegar no motivo do interesse dela em você... Uma vadia que
se entregava a qualquer um, por qualquer trocado...
- E você tá querendo dizer que abandonou as
meninas... A nossa casa, por causa dessa bobagem que não teve nenhuma
importância? No que você é melhor do que ela?
A sonoridade da tapa que
Uélito recebeu no rosto foi abafada pelo barulho das vozes das pessoas no
pátio, naquele sábado de visitação. Ele não revidou. Dele, ela não teria nem a
benesse da raiva.
Mariângela se levantou para ir embora.
- Tem uma caneta e um papel?
Uélito perguntou impassível.
- Tome!
Uélito rabiscou um endereço. Devolveu o papel,
dizendo:
- Não pressione as meninas. Não diga como me viu.
- Elas são adultas agora, Uélito.
- Elas são tudo o que me restou.
Ela assentiu com a cabeça, sem olhar para ele e se
foi.
***
- Era sua esposa?
Perguntou Max bem mais tarde.
- Não. Era a mãe das minhas filhas.
- Como se sentiu?
- Vazio.
- E o que decidiram?
- Nada. Júlia e Mônica vão decidir.
Max jogou fora cigarro, apagou-o com o pé e
disse:
- Fez certo.
- É. Não tinha mais nada pra fazer. De qualquer
forma, daqui a pouco elas vão tomar outro rumo, vão ter suas próprias famílias
e não serão mais minhas.
- Elas nunca deixarão de ser suas, nem da sua
esposa. Assim como você nunca deixou de ser da sua mãe.
- É.
- Max, seus pais nunca visitaram você?
- Não. Eles seguem a mentira que inventaram pra
justificar minha ausência.
- Que mentira?
- Pra todo mundo, eu estou no exterior, trabalhando
e terminando os meus estudos.
- Isso não chateia você?
- Por um lado não; o que me preserva pra quando eu
voltar, pelo outro, penso que não preciso sentir o mesmo medo que você.
- Não entendi.
- O medo da rejeição. Não tenho porque já sei como
é.
- Você aceita?
- Nesse caso, resistir seria forçar o ódio. Não
desejo isso. Deixa como está e mais tarde vou saber como é que fica.
- É, de qualquer modo, eles cuidam de você.
- Sim, a sua maneira eles dão o que podem, assim
como eu só aceito o que me é conveniente.
***
Max vinha se comportando
de forma reservada nos últimos dias. Uélito nada perguntava. Já se
conheciam mais do que o suficiente para saberem quando estavam sendo
inconvenientes um com o outro. Sabiam quando existia a necessidade de se
isolarem em si mesmos, quando queriam ficar distantes dali. Rodavam a beira da
depressão, mas depois voltavam, sem se deixar cair. Por experiência, sabiam que
seria difícil o retorno às atividades, eram elas que os salvava de enlouquecer.
Em meados de uma tarde em
que os pombos já abandonavam a busca de migalhas para se recolherem na noite,
Max atravessou o pátio com passos lentos, retirou Uélito da observação de uma
partida de cartas a dinheiro.
- Uélito, como eu esperava, minha progressão de pena
vai sair.
Uélito sorriu e confraternizou-se com Max.
- E por que essa cara?
- Precisamos fazer alguns ajustes.
- No quê?
- Conversei com o chaveiro, quando um apartamento é
desocupado ele revende a outro. Então, vou comprar pra você, pra que possa
ficar nele.
- Não, minha conta já tá bem alta. Tenho usado sua
comida, você providencia meus remédios... Vamos deixar a conta num limite que
eu possa pagar. Eu me aguento.
- Uélito, é só dinheiro. E acha mesmo que tem
condições físicas de permanecer numa daquelas celas super lotadas? De dormir
sentado?
E continuou.
- Não se preocupe, não é muito. O cálculo do preço é
feito em função do tempo de ocupação e falta pouco agora. Já é tempo de você
deixar o orgulho de lado.
- Pensando bem, ele é uma coisa boa que também me
restou.
- Não vou implorar seu consentimento. O negócio tá
praticamente fechado. Cabe a você valorizar.
Silêncio.
- Outra coisa; o doutor Cláudio vai mandar um
assistente dele, uma vez por semana. Ele vai trazer dinheiro e comida, através
dele, você vai ficar sabendo das suas filhas e do andamento do seu processo.
- Max, tá me pagando?
- Como se o que você e Cosme fizeram por mim tenha
preço... Acredite, Uélito, aqui e lá fora, sei valorizar uma amizade. Pra você
é dinheiro, pra mim é amizade.
- Fico acanhado. Sempre precisei contar os centavos.
- Eu reconheço o mérito de um homem que apesar de
precisar de dinheiro, nunca se vendeu pelas coisas que ele pode comprar.
- Não sei se eu não comprava tudo o que pudesse, se
tivesse muito dinheiro.
- O que te manteve vivo, foram os teus valores.
- Quando você sai?
- Na semana que vem, acho.
Capítulo VIII
O Décimo Quarto Ano
Sentado a uma das mesas de
concreto do pátio, Uélito aguardava por Max, dividido entre a felicidade
genuína pela soltura do amigo e a tristeza por saber que não desfrutaria mais
da sua companhia.
Ora, numa situação dessas
o homem tem o direito de se digladiar com o egoísmo. Se, inusitadamente,
reemergente de outras ocasiões ao longo da vida, nas quais se experimenta a
sensação de perda de diversas maneiras diferentes, sobra uma lacuna, boiando
nos espaços antes vazios, então é porque estas foram ocupadas na justa medida
da emergência que havia.
Vestido com roupas ainda
vincadas, como tinham vindo da loja, Max apareceu no pátio, trazendo nas mãos
apenas uma mochila. Sentou-se ao lado de Uélito e disse:
- Estranho, a gente passa a vida esperando esse
momento chegar e quando chega, dá uma bruta insegurança.
- É uma coisa parecida com a síndrome do cachorro
preso que eu li no seu livro.
- É...
- Não se preocupe, lá fora, você vai mais é querer
esquecer isso aqui.
- Ainda penso em escrever aquele livro.
Riram.
Max se levantou. Uélito o
acompanhou até as grades internas da carceragem. Do outro lado o advogado
esperava. Alguns detentos se despediam e felicitavam Max, à distância.
- Prometa que não vai se meter em encrencas.
O aperto de mão entre eles
foi forte, franco, palmas unidas, firmadas pelos dedos.
- Eu só prometo que vou tentar. Felicidades, Max.
- Se cuida.
***
Como Max disse que
aconteceria, um assistente do advogado aparecia semanalmente para levar comida
e dinheiro. Ficou sabendo que Max reassumiu, temporariamente, o cargo que antes
exercia na construtora dos pais. A situação de suas filhas não se alterara,
Mariângela sumira de novo, depois de não obter sucesso em anular a tutela de
Mônica. Ele não soube o que ocorreu no encontro entre elas.
A rotina de Uélito passou
a ser, apesar da dificuldade em enxergar, ler e reler os livros que ficaram na
cela, nas horas em que normalmente, se Max estivesse lá, estariam conversando.
Neste período, superou uma pneumonia que o deixou impossibilitado de realizar
suas atividades na cozinha, outro ficou com a sua vaga. E os dias pareciam mais
lentos, como lentas as paredes cinzentas da cela insistiam em permanecerem
acesas à noite. A insônia o deixava indolente o dia inteiro.
***
- Max!
- Como você está, Uélito?
Abraçaram-se efusivamente,
numa alegria destoante da dos demais presentes no pátio, na hora da visita.
- Vivo!
- E você? O que tem feito da vida?
- Trabalho. Só trabalho, mas voltarei a estudar.
E colocando uma sacola sobre a mesa, disse:
- Trouxe umas coisas para você: livros, umas peças
de roupas e... Isso!
Retirou de dentro da sacola uma embalagem de pizza.
- Desarrumaram tudo...
Max, rindo:
- Amassada, mas ainda tá gostosa.
- Nem lembro mais de como é o gosto.
Uélito riu.
- Ah, vamos ver se é do jeito que pensa.
Disse Max passando a
Uélito uma fatia da massa de com mussarela e frango e se servindo de outra. A
alegria dele era quase infantil ao morder a pizza, demorando-se com a massa na
boca.
- Coisa boa ver você, Max.
- Bom ver você também, Uélito.
- Então? Como vão as coisas?
- Arrastadas.
- Perto de terminar é assim mesmo.
- Já fez seus planos?
- Não.
- Vou fazer uma proposta, então.
Do bolso da camisa, Max retirou um cartão de visita
que entregou a Uélito.
- Aí estão o telefone e endereço do escritório do
doutor Cláudio. Quando você sair, procure por ele. Tem lá uma carta de
recomendação minha, que você deve levar ao escritório da construtora. Com ela,
eles vão te dar emprego. Providencie uma carteira profissional nova e caso
perguntem por que você está a tanto tempo fora do mercado de trabalho, diga que
trabalhava por conta própria. A carta vai evitar que eles você.
Uélito, emudecido, apenas o ouvia.
- Eu sei, eu sei! Você tá se sentindo tentado a
recusar, então vamos fazer assim: no primeiro ano de trabalho, será descontado
trinta por cento do seu salário, um modo de restituir o que você acha que me
deve.
Silêncio.
- Você vai pra algum lugar?
Max assentiu com a cabeça, dizendo:
- Eu vou tornar verdade a mentira dos meus pais.
- Vai viajar pra fora do país?
- É isso aí.
- Vai demorar por lá?
- Não sei, vai depender do tempo que eu consiga
prorrogar o meu visto.
- E para onde vai?
- Canadá.
Perto do meio dia, Max
começou a se despedir, tendo consigo a certeza de que aquele homem, agora,
tinha um mínimo de condições para planejar o que lhe restara da vida. Que
conseguiram produzir laços de lealdade e amizade verdadeira, acima de tudo, por
causa das circunstâncias em que nasceram.
- Seja feliz, Max.
- Você também.
***
Ele
segurou o envelope pardo entre os dedos, girando-o. Nenhum selo dos Correios.
Abriu-o cuidadosamente, rasgando uma das extremidades. De dentro dele retirou
outro envelope de papel fosco e negro, lacrado por um selo prateado. Pôs-se a
folhear o convite de formatura com mãos vacilantes, nem prestou atenção aos
pequenos textos que entremeavam o impresso, procurava entre os rostos daqueles
jovens sorridentes, o de Júlia. Então, lá estava ela, os cabelos escuros à altura
dos ombros emolduravam o rosto pequeno. Um meio sorriso, o olhar profundo e
brilhante que já não expressava a mesma expectação dos diversos rostos do
convite, evidente apenas à observação mais acurada. Era um olhar maduro, como
esses que perdem precocemente a habilidade para se encantar com as coisas
fúteis e tão maravilhosamente inevitáveis à juventude.
Uélito protegeu o melhor
que pode a foto dos reflexos do sol. Sua Júlia estava linda. Enxugou uma
lágrima recalcitrante no canto da boca e voltou à cela para guardar o convite.
***
Ele achou que não
conseguiria, mas atravessou a rua e se voltou para contemplar o exterior do
presídio. O muro muito alto, no seu branco manchado, refletia a claridade
daquele sol de fim de manhã. Nenhuma árvore a circundá-lo. Imaginou o
desconforto, a espera ao sol ou na chuva, dos visitantes.
Sua mãe, inúmeras vezes
havia suportado as enormes filas que se formavam nos dias de visita.
Uélito sentiu-se
mortificar por uma dor ácida, crescendo e corroendo o sentimento de que já não
era possível compensar a ela nem a si pelo que perderam nas entranhas
deletérias daquele lugar.
A construção tinha uma
aura sinistra, apesar da claridade, e ele vislumbrou a carcaça de um grande
animal, da qual as varejeiras se desprendem quando nada mais de podre havia
para se alimentarem.
Mas, enfim, ambos haviam
se sobrepujado; o animal a custa das suas próprias mazelas, Uélito à custa
dos cadáveres de todas as suas fés.
Claro, ele tinha um norte,
mas naquele momento, a única pressa que tinha era de não sentir vontade de
saber em que rumo o norte ia dar.
-Essa estrada vai pro mar?
Perguntou a um vendedor ambulante.
- Siga a estrada e no final dela vire à esquerda.
Disse o homem apontando o sentido de onde ele
deveria começar a caminhar.
- Quantos quilômetros até lá?
- Três ou quatro.
- Obrigado.
No primeiro quilômetro, a
caminhada começou a se tornar penosa, todavia, Uélito resistiu ao cansaço e a
dor. Em verdade, mantinha-se consciente da dor o tempo inteiro. Ele precisava
que fosse assim, porque seria ela, dali em diante, a ponte entre a realidade
densa e a alienação mais profunda da liberdade submissa à liberdade oferecida,
vadia, a sujeitos anônimos. Precisava porque ela o identificava, somente.
Precisava porque ela
purificava aquele ódio santo e aquela esperança abjeta. Precisava porque se
pertenciam. Porque o futuro nunca refuta nada. Ela era sua alma póstuma. Ela
era o limiar de antes de suas carnes e depois de sua mente.
Sentado na areia, imóvel,
com os olhos fechados, indiferente ao calor abrasivo, ouvia o vazio e sentia as
presenças de lavadeiras e tarambolas à cata de alimento entre os sargaços
e as algas que o mar já vinha buscar.
Nessa espécie de transe,
ele chegou à conclusão que liberdade é uma solidão extraordinária de pássaro a
cometer coisas de pássaros, mar a cometer coisas de mares, e de homens a
cometerem a si mesmos.
***
Uélito chegou ao centro da
cidade quando a tarde não havia transformado seus amarelos, laranjas e
vermelhos em noite. Nas
margens do rio, as cores das inflorescências das acácias começavam a
desaparecer à luz de vapor de mercúrio dos postes.
Ao desembarcar no terminal
do ônibus, lembrou-se de um pequeno hotel para comerciantes em trânsito e
pôs-se a caminho dele.
A cidade mudara um pouco,
ela estava mais suja, mais decadente, vários prédios às escuras; escritórios
cujos negócios faliram ou se transferiram.
As pessoas pareciam
pedestres iguais, na sua pressa de ir a algum lugar ou na forma como se
mantinham atentas aos outros ao redor.
Na recepção do hotel, ele
adiantou o pagamento do pernoite e recebeu do recepcionista uma toalha e um
sabonete com a indefectível essência de erva doce. Uélito não tinha bagagem,
distribuíra os livros no presídio e lá deixou as poucas peças de roupas
surradas. Na manhã de sua soltura, o assistente do advogado levou sapatos, uma
muda de roupas novas, algum dinheiro e recomendou que ele não demorasse em ir
ao escritório do advogado. Porém, ele queria fazer algumas coisas antes.
O barulho da cidade
abrandou, ao que lhe pareceu, antes de cair em sono profundo e cresceu na mesma
proporção em que o sol se erguia sobre ela. Sua janela, no primeiro andar, dava
para um estacionamento arborizado, onde agora era possível contemplar as cores
das acácias.
A caminho do lugar onde
ficava a comunidade em que morou, tomou o café da manhã.
Na estreita rua principal,
de barro batido, daquele aglomerado de casas que jamais chegaria a ser um
bairro, os cães ainda se movimentavam preguiçosos, refestelados ao sol que
secava os seus pelos do sereno da noite.
As pessoas começavam a
sair à busca de suas atividades rotineiras, ou de qualquer uma que
garantisse a renda do dia.
Tudo do mesmo jeito que deixara.
"A pobreza muda pouco". Ele pensou.
O escasso terreno ao redor
da casa estava tomado pelo mato. O musgo se entranhava nas paredes da fachada
que já nem tinha cor. Para ele, bastou saber que ainda era sua casa.
Depois dessa parada
rápida, na qual experimentou sensações contraditórias de desconforto e saudade,
seguiu em frente até atingir a avenida paralela à via principal, onde ficava a
Igreja Evangélica que sua família costumava frequentar. Àquela hora, a mesma se
encontrava fechada.
Desde que se lembrava, a
Igreja passava por constantes reformas, como agora, mas não havia ninguém
circulando por ali.
- Bom dia, Dona Gilda!
Cumprimentou a mulher que
veio atendê-lo no portão da casa de muro alto, adjacente à Igreja.
- O Pastor Josué está em casa?
O pastor veio recebê-lo,
fez Uélito entrar e conversaram demoradamente sobre Dona Margarida, Júlia e
Mônica. Só então ele se sentiu melhor reparado para o que teria que fazer
logo mais à noite.
De volta ao centro da
cidade, entrou em um salão de beleza unissex de onde saiu barbeado e
com os cabelos cortados.
Escolheu uma camisa de
mangas longas e uma calça fina, numa loja de saldos. Nos sapatos de cadarços,
ele passaria um pano úmido. A bengala tosca, de madeira de construção foi
substituída por uma de cana-da-índia, e com tudo isso, esperava não envergonhar
Júlia diante dos amigos.
No quarto do hotel,
retirou o envelope contendo o convite de formatura de dentro da sacola
plástica, colocando-o sobre a mesinha de cabeceira. Após um banho, deitou-se
para o sono possível àquela hora da tarde em um centro de cidade onde o barulho
dos carros era enlouquecedor. Esperava assim, diminuir o cansaço para que a
nebulosidade dos pensamentos não o traísse quando, por fim, estivesse diante do
seu destino mais imediato.
***
O foyer do teatro estava repleto
de pessoas vestidas elegantemente. As mulheres em vestidos de noite, os homens,
em sua maioria de terno e gravata.
Uélito, recostado em uma
coluna de concreto, mantinha em seu campo de visão todos os que se dirigiam à
entrada do teatro.
Foi então que as viu;
Júlia e Mônica caminhavam na direção dele, em companhia de um rapaz bem
aparentado. Suas meninas eram mulheres agora.
Mônica, que herdara os
cabelos castanhos claros da avó, alta e magra, num vestido longo, parecia mais
velha do que era na verdade. Júlia, aos vinte e seis anos, tinha o mesmo ar
tranquilo e seguro que Uélito vira nas fotos.
O rapaz passou,
displicentemente, o braço ao redor dos ombros de Júlia e ele entendeu que eram
muito mais que amigos. Obrigou-se a reprimir a vontade de dizer aquele homem
que mantivesse as mãos longe dela. Entretanto, teve a toda a dimensão do que
perdera de fato, pela privação da convivência, deu-se conta que não sabia nada
delas.
Sentiu uma secura na
garganta, ficou ali, claudicante, com um desejo tremendo de ir embora, mas se o
fizesse, como veria Júlia confirmar um sonho que havia sido seu, um dia?
Discretamente, olhou as
pessoas a parabenizarem, se confraternizarem com ela, possivelmente, colegas da
faculdade ou do trabalho. Concentrado na observação, não percebeu Mariângela se
aproximar.
- Como vai, Uélito?
- Bem melhor, como pode ver. E você?
- Bem.
- Quando saiu?
- Quer mesmo conversar sobre isso agora?
- Elas já sabem que você está aqui?
- Não.
- Quer que eu leve você até elas?
- Por que você tá sendo tão educada?
Uélito não conseguia controlar a desconfiança.
- Vamos esclarecer umas coisas. Eu nunca falei mal
de você nem escondi você delas, eu não tinha motivos pra isso. Nunca me
envergonhei de você, Uélito. Controle sua paranóia. Você só disputa as meninas
com você mesmo.
E continuou:
- Eu era jovem e imatura. A vida era muito
difícil...
- Ah, sim! Quando a vida melhorou quis separar as
duas e brigou pela tutela de Mônica. Eu sei de tudo!
- Você nunca vai entender, mas não importa...
- Entendo perfeitamente, mas aceitar é outra
história...
Mariângela deu-lhe as
costas e se encaminhou para a fila que começava a ser preparada para a entrada
no teatro.
Ele viu que as filhas a
cumprimentaram com normalidade, achou que se não fosse pela cordialidade
obrigatória em presença das pessoas era, então, pela superação dos fatos
ocorridos.
De repente, Júlia e Mônica olharam fixamente na
direção dele. Um sorriso inseguro se desenhou em seu rosto.
- Pai!
Mônica disse, se jogando
nos braços dele, logo ele abraçava as duas como se pudesse arrancar daquele
abraço o tempo postergado.
- Como você fez falta, pai!
Disse Júlia entre soluços.
- Mas agora estou aqui...
Uélito tentava conter as lágrimas.
A comoção que os tomava
foi arrefecida por uma das recepcionistas do evento. Ela convidou Júlia a
voltar para o seu lugar. A cerimônia ia começar.
Depois de voltarem do toilet, onde se recompuseram,
Júlia voltou para onde estava o rapaz que a acompanhava, conversava com ele
enquanto este observava Uélito.
- Vamos...
Disse Júlia enfiando o
braço pelo de Uélito, e trazendo-o para mais perto de si, continuou:
- Quero que entre comigo. Tudo bem pra você?
E ele chorou, livremente, num contentamento de prece
que nunca fora feita, mas que fora atendida.
FIM