segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Atualizando Cândido - I I I

CÂNDIDO OU O OTIMISMO, de François-Marie Arouet - Voltaire (1694-1798)

"Cândido sobrevive a guerra entre búlgaros e àvaros e foge: na aldeia vizinha, velhos crivados de bala viam morrer suas mulheres degoladas, que seguravam os filhos nas mamas ensanguentadas; acolá, mocinhas estripadas depois de satisfazerem as necessidades naturais de alguns heróis, davam os últimos suspiros; outras queimadas pela metade, imploravam que terminassem de matá-las (...). Havia miolos espalhados pela terra ao lado de braços e pernas (...)". (Voltaire)



"Mas, o que seria compreender profundamente a condição humana, senão aceitar o falecimento paulatino das mais bem intencionadas potencialidades coletivas da nossa própria condição?"


Das armas artesanais primitivas: lanças, espadas, catapultas e canhões, aos mísseis, bombas de nêutrons, bombas atômicas, e às armas químicas e biológicas, produzidas em escala industrial e, com tudo que é pertinente: espionagem e contra espionagem, publicidades de guerra, guerra fria, terrorismo, num efeito dominó que nunca cessa.


Foram trinta e seis mil e quinhentos dias, com o primeiro iniciado em 1º de janeiro de 1901 e o último findado em 31 de dezembro de 2000. Em nenhum dos dias do século XX a paz visitou a Terra e esta nunca sangrou tanto. A análise histórica dos fatos desse século funda um grotesco contra-senso na correlação paz-prosperidade. O homem fez guerra pela paz e fez guerra pela guerra, fez guerra espúria, como se qualquer outra não o fosse, e a chamou de santa. Fez guerra apenas para mostrar ao mundo que podia fazer, e assim salvaguardar suas posições de líderes mundiais através do medo.


O homem jamais se especializou tanto no ofício de matar. A completa falta de territórios geográficos para serem conquistados levou as nações mais ricas do globo a desenvolverem seu mais alto grau de paranóia e temor, mas também à criação de mecanismos de colonização financeira através da imposição de sua cultura e hábitos.


Em meados dos anos cinquenta, como agora, vários povos 'consumiam o mundo feito coca-cola'. E estar em paz significava, meramente, não se envolver pessoalmente, como nação, em nenhuma guerra ou conflito externo.


Agora, neste final de década, início do século XXI as perspectivas não mudaram. Os espólios mais duradouros das várias guerras e conflitos detonados pelo homem são as guerras. O homem que restou continua sendo o maior e mais sanguinário predador de si mesmo.


A responsabilidade pela elaboração da arte da paz permanece relegada ao indivíduo como se ele, sozinho, tivesse condições espirituais de compreender a magnitude dos desastres de uma guerra ou a grandiosidade de apenas um dia de paz na Terra.


Quem sabe, com a ajuda da tecnologia, sem subterfúgios para a nossa natureza selvagem, pudéssemos contabilizar os dias de paz ao modo que se faz com os impostos e as mercadorias das bolsas de valores? E ao lado de cada impostômetro ou placa digital de exibição dos índices das bolsas, da cultura da guerra capitalista, tivéssemos indicadores da paz no mundo, com a esperança de, um dia, se ler:


"Hoje, nenhum ser humano perdeu a vida pela intervenção deliberada de outro ser humano."


Com a mesma eficiência que desenvolvemos os fundamentos das ‘culturas de guerra’, as culturas da paz devem ser produzidas coletivamente, ao mesmo tempo e além das retóricas, até que as primeiras sejam completamente suplantadas.


Utopia no século XXI é a conveniência criminosa de não reconhecer que já dispomos dos meios materiais e tecnológicos para nos levar à paz.


Jeanne Chaves