terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Combinação Zero - Jeanne Chaves



A extinção de todas as éticas construídas para a convivência entre os povos os faz auto-suficientes do seu desaparecimento.



A água lodosa e pútrida lhe envolvia o corpo. Tudo aconteceu muito rápido depois da forte turbulência que pôs em pane os instrumentos de navegação do pequeno avião a jato e ele começou a cair aos solavancos, quebrando bruscamente a resistência do ar ao longo de vinte mil pés de altitude, enquanto uma densa tempestade elétrica iluminava a vasta escuridão que unia céu e terra transformando tudo em um único imenso vazio. Quando finalmente colidiram com a superfície, ela já havia perdido os sentidos.



Arrastando-se para fora daquela água pesada onde nada poderia adquirir o poder de flutuar, deitou-se de costas para abrandar a ardência dos ferimentos pelo corpo e esperar o nascer do dia, sem saber que não o veria surgir por trás daquele caldo pantanoso e do ar negro, nunca.


Ao longe, à luz dos raios, divisou sombras de elevações que ora se assemelhavam a cordilheira, ora a uma cidade de arranha-céus espetando a noite. Não se lembrava de quanto tempo passou lutando para permanecer à tona, agarrando-se em objetos irreconhecíveis e viscosos que semi flutuavam. Diante do terror que a imobilizava, o mau cheiro do lugar encontrava quase nenhum impacto, e assim, deixou-se ficar imóvel, respirando apenas pequenas porções do ar pernicioso, até que desfaleceu no sono.


Abriu os olhos ao sentir no rosto o toque de uma pequena mão surpreendentemente forte. A mão tentava lhe abrir a boca e ela pôs-se de pé, empurrando para o mais longe possível aquela criança, e depois, tentando recuperar a calma, perguntou que lugar era aquele e onde poderia encontrar ajuda para procurar os demais passageiros e tripulantes do jato. O garoto, como se também temesse, e usando de uma agressividade desproposital, respondeu em um idioma que ela nunca ouvira, mistura de castelhano, inglês, mandarim, árabe e outras inflexões guturais que pareciam palavras de um dialeto, fluindo em uma torrente incompreensível, contudo, ela entendeu que recebia ordens para acompanhá-lo.


Durante a caminhada que fazia sempre à frente do garoto, tropeçava em coisas que não distinguia, era como se o chão se movesse por sobre uma superfície dura. Os contornos das elevações que viu antes de adormecer foram ficando mais definidos na medida em que se aproximavam, eram altos prédios, dos quais nenhuma luz emanava pelas janelas e cuja distribuição das estruturas no espaço, daquela distância, não permitia perceber ruas de acesso, nada as iluminava, nenhum farol de um carro. Parecia um enorme túmulo dentro de outro túmulo. A fumaça que envolvia tudo fazia os olhos dela lacrimejarem. Outro tipo de medo a tomou depois de pensar que não sobreviveria ao pouso desastroso do avião, o medo por ter sobrevivido.


Olhou para trás no exato momento em que um relâmpago despejava sua luz branca sobre o breu e a fumaça, então percebeu que o garoto que a incitava a andar tinha cerca de um metro e quarenta de altura, e à exceção dos óculos a protegê-lo da fumaça, estava nu, exibindo um falo descomunal. Não era uma criança e também, não era homem.


***

Um gosto horrível espalhava-se pela sua boca, vindo das profundezas do estômago, o qual, nas três horas entre o encontro com o seu guia bizarro e aquele chão indeciso, tivera que tentar esvaziar por diversas vezes.


Tomando-lhe a frente aquela pessoa fez com que parasse, gesticulando para que ela ficasse ali e começou a se afastar lentamente, olhando de vez em quando para se certificar que a ordem fora entendida, depois ela ouviu passos ligeiros de quem corre a toda velocidade. Deixando-se cair, quase em alívio, pois tinha a esperança de que o seu salvador tivesse ido à busca de ajuda, apalpou o chão onde estava sentada e dele recolheu e jogou fora novamente uma variedade de lixo, papéis úmidos, embalagens, componentes que um dia tinham feito parte de uma máquina inteira, e pensou consigo que se tivesse morrido, seus méritos como ser humano garantiram-lhe apenas o inferno.


Sabia que estava à beira da histeria e pôs-se a andar marcando os passos, para cada dez de ida, um pensamento, para cada dez de volta, outro.


Um, dois, três... Fabrice, que nesta hora...


Tentou ler as horas no pequeno e sofisticado relógio de pulso sem marcadores fosforescentes, não viu nada, estaria preso no trânsito, telefonando para ela e justificando o atraso...


Nove, dez. Um, dois...


- Eu disse bonsais, bonsais! Como diabos você foi entender bromélias? Leve isto daqui e me traga bonsais, não quero um jardim semi-árido.


E a reclamação malcriada do paisagista.


- Seu gosto me deixa inseguro, senhora, farei o que pede, mas que isto fique em segredo de morte e eu não assinarei o projeto!...


Um, dois, três, quatro...

O resultado dos exames de sua mãe depois de última sessão de rádio terapia...

Um, dois...


Concentrou-se no retorno apressado do seu acompanhante, juntamente com mais três iguais a ele.


Eles a cercaram, o mais alto deles, vestido com uma túnica de ráfia e mais nada, a empurrou rudemente, eles precisavam correr.


Correram cerca de vinte minutos no meio do que parecia uma avenida, pequenos grupos de dez ou quinze pessoas tentavam impedir a progressão deles e eram repelidos violentamente com pedaços de pau.


O mais alto deles se antecipou na corrida e virando em uma esquina parou na frente de um prédio de dois andares, empurrando estrondosamente a porta dupla de madeira pesada. Sentindo o oxigênio faltar completamente, na soleira da porta, sua visão turvou e ela tombou desacordada. Eles a arrastaram para dentro e trancaram a porta com travessas de ferro. Depois acertaram entre eles os turnos de vigília. Dali a algumas horas tudo ficou em silêncio, mas ela não ouviu.


***

Ao ser aberta, a porta do cubículo rangeu nas dobradiças e uma tênue luz de lanterna a querosene penetrou a escuridão.


Deitada no chão de pedra, em posição fetal, ela viu um par de botas pretas desgastadas de cano alto, o homem usava uma capa de couro escuro e uma espécie de máscara para respirar que deixava oculto o seu rosto, e apenas a fronte alta e os cabelos louros à mostra.


Fechando a porta atrás de si, caminhou até ela e a pôs de pé quase com gentileza. Olhou-a de cima a baixo sem dizer uma única palavra, nem parecia sentir repugnância por sua aparência imunda.


Ela ensaiou algumas perguntas, mas ele fez sinal para que calasse. Caminharam por um corredor úmido e opressivo até desembocar em uma sala espaçosa, onde uma lareira ardia alimentada de lixo e fornecia a única luz do ambiente, e onde doze daquelas criaturas pareciam esperá-los.


Uns estavam completamente nus, outros resguardavam o recato com trapos, fêmeas, ao que ela pode ver. Umas velhas, outras apesar de possuírem quase a mesma estatura, eram ainda muito jovens. Não tinham pelos sobre a pele olivácea e os olhos eram muito grandes e arredondados, como os de animais noturnos.


Uma das fêmeas se aproximou bradando aquele idioma incompreensível e o homem de botas a fez baixar a cabeça. A fêmea não queria que os olhasse.

O homem deu uma ordem e o grupo que a resgatou na praia saiu, voltando logo em seguida com várias caixas contendo alimentos, medicamentos e água. Depois, ele a algemou e saíram do prédio, então ela compreendeu que havia sido produto de uma troca.


A carroça que usaram para chegar ao outro lado da ilha era puxada por quatro daqueles seres. Pelas ruas, eram observados com curiosidade, mas algo lhe dizia que ninguém ousaria nada contra a autoridade daquele homem. Quando chegaram ao prédio que parecia ser um hospital, ele pagou com antibióticos pelo serviço de transporte, ao que os seres agradeceram com uma reverência.




Dentro do prédio havia luz e o ar era refrigerado, com energia fornecida por enormes geradores instalados no subsolo, como ela descobriria mais tarde. Um assistente de aspecto idiotizado veio recebê-los à porta. Logo ela foi encaminhada para uma espécie de câmara de descontaminação, na qual a água que saia do chuveiro tinha cheiro de produtos químicos e fez queimar os ferimentos dos quais agora ela se dava conta. Um dos pulsos, onde estava o relógio inútil, pois as horas haviam parado de correr, estava fraturado. Tinha escoriações nos braços e no rosto, havia lama misturada a sangue coagulado dentro dos ferimentos, alguns voltaram a sangrar.


Assustou-se ao perceber a volta do assistente para lhe trazer um pijama e tentou esconder a nudez, mas ele parecia não fazer caso do seu embaraço, apenas pendurou as peças de roupa num cabide da parede e saiu.


No consultório, sobre uma mesa de mogno, havia uma bandeja com comida e água, nos primeiros goles, sentiu a garganta doer, engasgando até quase sufocar.


O homem das botas, agora sem máscara, recomendou em inglês, que ela tomasse a água devagar e do mesmo modo, fizesse com a sopa. Quando ela terminou de comer o que conseguiu, ele tratou dos ferimentos dela, aplicou-lhe antibióticos e colheu amostras de sangue.


- Que lugar é esse?


- O término do fim - Ele se limitou a responder.


- Como o termino do fim? Que resposta é essa? Aqui há de ser algum lugar!


- Era, mas não está mais no mapa.


- Pode me falar alguma coisa coerente, por favor? As pessoas que viajavam comigo, onde estão?


- Quantas eram?


- Cinco.


- O Presidente ordenou a formação de um grupo de busca, mas só trabalharão quando chegar combustível para o barco.


- E quando vai ser isso?


- Garanto-lhe que eu gostaria que fosse o mais breve possível, a chance de sobrevivência no nosso mar é nenhuma, e se tiver alguém vivo quanto mais o tempo passa menores as chances dele e nossas de algum aproveitamento.


- Aproveitamento de quê?


- Das suas vidas.


- Quando eu vou falar com o Presidente?


- Não vai.


- Está bem. Eu quero um telefone, um computador, qualquer coisa de onde eu possa me comunicar com o meu país.


- Lamento, não há nada disso aqui.


- Como não? Como fazem para falar com o mundo lá fora?


- Não falamos, não existe outro mundo lá fora.


- Você é louco ou quer me enlouquecer... O que são aquelas criaturas?


- São pessoas.


- Pessoas? Parecem animais!


- Como você, elas são sobreviventes.


- Sobreviventes de quê? Houve um grande cataclismo e eu não estava na janela para ver?


- Mais ou menos isto. Eles são sobreviventes de si mesmos.


- E você?


- Sou igual a eles e igual a você. Como se chama?


- Laira.


- Me chame de Doc.


- Como soube que eu estava lá naquele lugar horrível?


- Eles vieram me avisar.


- Você me negociou?


- Você não estava sequestrada, apenas não tinha utilidade para eles.


- Como você é frio!


- Objetivo! Não existe caridade onde o dinheiro não circula. Eles não poderiam manter você. Acabaria perecendo nas ruas e virando combustível de fornos de cremação.


- Não usam dinheiro aqui?


- Não.


- Porque não?


- Não há trabalho, não há produção, o dinheiro é dispensável.


- O que vale aqui?


- Estar vivo.


- E considera isto vida?


- Enquanto houver um único Ser com os sistemas funcionando, os instintos de sobrevivência atuarão sobre ele.


- Não! Isto não existe! É um pesadelo, já vou acordar!


- Quando fizer isto, não haverá dias, suas janelas se abrirão para ruas cobertas de lixo e para um céu de fumaça, únicas formas de proteger a nós e o solo dos raios ultravioleta.


- Nada cresce aqui?


- Só a população e o desespero.


- Você disse que não há trabalho, não há produção... De onde vem a comida, a água e os remédios?


- Por ora, chega de perguntas!


O arremedo de cortesia com o qual ele a tratara até então foi interrompido de forma incisiva e cortante, não lhe deixando alternativa ao não ser acompanhar o assistente débil que veio buscá-la como atendendo a um chamado inaudível, então ela foi levada a um quarto sem janelas, cujas portas travavam eletronicamente.


Chegavam ruídos através das paredes, passos ocasionais no corredor que tinha portas iguais à sua; ar, como se aspirado e soprado por uma máquina, e um estalido grave e breve a intervalos regulares. Estes sons se repetiam como obedecendo a uma escala musical para os mesmos instrumentos, mas que tocavam em tempos diferentes. Havia uma imperceptível variação de altura entre eles, como se estivessem relativamente distantes um do outro. Um barulho de fogos de artifício a zunir no espaço sem, contudo, estourar a espoleta, era constante. Descargas elétricas a propulsionar um motor que imaginou ser de um elevador, embora não tivesse visto nenhum da entrada do edifício até o consultório de Doc. Embutida entre essas vibrações havia outro som que sua óptica determinou como sendo... Música!


“Que droga de lugar era aquele? Quem eram aquelas pessoas? O que havia acontecido com elas? Com aquele lugar? Estava evidente a preparação do edifício para evitar fugas. Portas e janelas eram blindadas. Nenhuma placa sinalizadora nos corredores nem nas portas.”


Apesar da educação do médico, era óbvio que ele não se sentia na obrigação de fornecer nenhuma explicação mais contundente e pensou que não era porque ele não quisesse dá-las, mas talvez, diante das circunstâncias, e se fosse ela uma prisioneira, as explicações não fossem necessárias.

***

Decorreu muito tempo, não sabia precisar quantas horas, até que o assistente veio lhe aplicar uma injeção.

- Que dia é hoje? Que horas são?

Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, dando a entender que não compreendia.


- Doc... Preciso falar com Doc!


Depois de várias tentativas, de todas as palavras que ele pronunciou, ela entendeu apenas ‘en otra parte’, mas foi preciso segurar-lhe a mandíbula para forçar um ritmo mais lento na pronúncia das palavras. A expressão dele estava entre a demência e a diversão, mas ambas, delineadas por certa ingenuidade, dessas que se percebe nos filhotes de cães, Como se lhe faltasse faculdades adultas da espirituosidade e prevenção.

Um, dois, três...


Pense!...


Sete, oito, nove...


Pense!


Tinha de haver um jeito de sair daquele lugar...


Um, dois...

Não há outro mundo lá fora...


Sete, oito, nove...

Não há outro mundo lá fora...


Nove, dez...


As pessoas que estavam no jato...


Um, dois, três...

Desconhecidas...


Seis, sete...


Tinha que saber o destino delas...


Dez, um, dois...


Deviam ter família...


Sete, oito, nove...


Isto vem primeiro...


Quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez...


Sentou-se na cama e se distraiu a tentar se apoderar da intimidade de todos aqueles sons de fontes invisíveis. Não sabia, mas todos os seus sentidos se apuravam para a sobrevivência.

‘Música! Ainda tem gente viva aqui.’


***

Uma enfermeira trocava seus curativos enquanto a porta aberta do quarto exalava o cheiro forte de anti-sépticos. Ela realizava as tarefas com uma precisão automática. O rosto impassível e senil contraiu-se na testa ao verificar a temperatura de Laira. O filete de mercúrio tinha parado de subir no bulbo, e marcava trinta e oito graus.


Sem que houvesse percebido, Doc acompanhava os procedimentos do outro lado do corredor. Ele se aproximou e tomou o termômetro das mãos da enfermeira passando a lhe dar ordens, as quais ela saiu para atender.


- Você está com uma infecção.


- Bom dia, Doc!


- Desculpe-me, bom dia!


- Isto que dizer que não terei alta.


- Não se apresse, não há para onde ir.


- Eu mereço algumas explicações! Há alguns dias eu estava viajando para fechar um grande negócio no Oriente Médio e agora estou aqui, dentro do que parece ser um hospício, cercada de criaturas dementes e com você me dizendo que não há para onde ir. Porque faz isso comigo? O que eu lhe fiz? Onde estão os outros?


- Venha comigo!


Ela o acompanhou, observando mais detalhadamente o caminho. O prédio era velho, as paredes espessas revestidas de azulejo branco, a iluminação era deficiente nos dois lados, o consultório, ficava no corredor oposto ao que ao quarto que ela ocupava, delimitando-os, havia um portão de grades onde uma escada que descia se perdia no vão escuro. Ela notou a ausência dos movimentos normais de um hospital.


O consultório se parecia a uma sala de estar, tinha um jogo de poltronas de encosto alto à frente da mesa de mogno, dois sofás de desenho futurista, um à frente do outro, separados por um centro que sustentava um vaso de porcelana com flores artificiais. Atrás da mesa de mogno, quatro prateleiras, protegidas por vidro, iam do chão ao teto, exibindo instrumentos rudimentares de medicina. As duas do meio se apoiavam sobre pequenas rodas e eram unidas às da extremidade por fitas de dobradiças.


Ele apontou uma das poltronas e acomodou-se ao lado dela, na outra, e ela achou se tratar de um artifício para que ela não o olhasse diretamente.


- O que fazia no lugar de onde veio?


Ele perguntou com voz suave, como se realmente, desejasse aquela conversa.


- Trabalho para uma companhia exploradora de petróleo. As pessoas que viajavam comigo... Onde estão?


- Eram suas amigas?


- Porque está usando o verbo no tempo passado?


- Elas foram resgatadas. Mortas.


- Quando?


- A última, uma mulher, foi resgatada ontem.


- Onde elas estão?


- No necrotério.


- Quanto à sua pergunta; não eram meus amigos, a mulher representaria um agente financeiro, os outros dois eram os advogados da fusão que a minha empresa faria com a outra.


A notícia roubou de forma definitiva a possibilidade de preservação do vínculo que ainda julgava existir entre esse mundo e a sua vida conhecida e normal.


- Doc, me mande de volta!


- Não há como!


- Não insista nisso! Se nós chegamos até aqui, há um caminho de volta!


- Entenda, para mim é tão estranho ter você aqui, falando de um mundo que não existe mais quanto é para você essa existência num mundo derivado do que havia.


- Há quanto tempo estou aqui?


- Quinze ciclos.


- O que isto quer dizer?


- Quer dizer que a maré subiu duas vezes e desceu duas vezes em um intervalo de vinte e quatro horas vezes quinze.


- Então por que você não diz quinze dias?


- Por que não há luminosidade do dia, nem da lua. As rotinas são desnecessárias, por isso, as horas não têm importância.


Ela começou a chorar baixinho.


- Está me dizendo que estou presa numa morte pior que a morte?


Ele levantou-se, como se apanhado de surpresa por aquela expressão de emotividade.


- Alguém decidiu lhe dar uma escolha.


Falou de costas para ela.


- Quais escolhas?


- Viver assim, ou morrer completamente.


- Quem me deu?


- Eu.


- As escolhas que me dá são cruéis!


- São as que eu disponho para mim e para você.


- E se eu decidir morrer?


- Pode sair pela porta da frente, ou cometer suicídio.


- Você não me ajudaria nisso, não é?


- Não.


- Se eu decidir viver?


- Viveria aqui, e seguiria regras.


- Leve-me ao necrotério. Quero ver aquelas pessoas!


Ele a conduziu de volta pelo corredor, antes de descerem a escada que ela viu descendo a escuridão por trás das grades, lhe entregou uma máscara para respirar.


-A descida é longa, vamos devagar. Tente respirar compassadamente.


Na medida em que desciam, o ar ia se tornando mais frio e pesado, até que eles chegaram a uma cripta iluminada por lanternas de emergência. O piso, as paredes e o teto eram de pedra escura. A atmosfera recendia a necrose e formol. Os corpos estavam dispostos sobre mesas de pedra que formavam seis fileiras de oito, todas ocupadas, alguns corpos estavam no chão, descobertos. Havia muitas crianças entre eles.


Um homem de pele escura de olhar alucinado parou de manusear um cadáver e veio até eles manifestando surpresa, como se a presença de estranhos ali fosse algo incomum, no entanto, parecia à vontade com Doc.


- Ele está dizendo que à exceção da mulher, todos os outros corpos já foram incinerados. Quer vê-la?


- Sim. - Disse hesitante, lutando para não desmaiar.


A mulher estava em uma maca e como os demais, despida. Uma parte do seu rosto estava destruída por ferimentos e queimaduras, o restante do corpo tinha mutilações horríveis. Laira não conseguiu mais olhar, apenas, pediu entre soluços, que lhe fosse entregue a aliança de casamento que brilhava no dedo anular da mão esquerda, parcialmente íntegra.


Percebendo que ela desmaiaria Doc a segurou pelos ombros e a levou a uma sala contígua ao necrotério, onde eram feitas as incinerações, de lá, saíram por uma grande porta escotilha.


Caminhavam em um aclive suave para fora do prédio. No exterior, o terreno arenoso vinha aos seus pés em meio à bruma fumarenta. O percurso de volta até a enfermaria do hospital era mais longo, porém, menos desgastante. Laira pode ver, encravada em uma colina, uma casa com as luzes acesas.


- Você mora ali?


- Não fale, caminhe.


Suas vozes saiam abafadas pelas máscaras e eles não trocaram mais palavras até ela desabar na cama. Doc saiu e voltou com a enfermeira. Ela lhe aplicou uma injeção e antes que terminasse todo o conteúdo da seringa, Laira já estava sonolenta e confusa.


- Quando você vem? - Perguntou a Doc.


- Amanhã.

***