domingo, 16 de outubro de 2011

A Combinação Zero (Cont.) - Jeanne Chaves





- Engraçado... Parece que faz mais tempo do que o amanhã que você disse.

Doc colocou uma bandeja com medicamentos e ataduras ao lado dela, na cama, sem se importar com aquela saudação, mas também não disse que ela havia passado três ciclos, sedada.

- Como se sente?

- Com menos dores e menos febril.

- Do que se lembra?

- Do necrotério. Aquilo parece uma fábrica.

- Mas é uma fábrica. Parte da combustão dos corpos abastece de energia o hospital. Se a vida exige uma proficiência, a morte a exige também.

- Meu Deus!... Comece!

- O que?

- Conte-me que raio aconteceu aqui!

- Não sei de muitas coisas, sei que elas são assim desde que abri os olhos para esse mundo. Muitas informações se perderam em si mesmas e nos arquivos virtualizados. Tudo o que sabemos nos é passado de geração a geração. Meu pai me dizia que seu avô lhe contava que haviam nações distribuídas sobre os continentes e que cada uma delas tinha seu próprio idioma. Cada uma delas tinha suas próprias formas de sustentação do povo, mas então, as adaptações requeridas para que chegasse a esse nível de progresso negou-lhes o privilégio de progredir mais. A intelectualidade das civilizações ficou presa a produção e ao dispêndio. Um ciclo que nunca fechava. A queda foi paulatina e bárbara. O que temos aqui são os resquícios, pessoas que vivem para ver a sua própria morte, como os ciclopes dos mitos de uma extinta civilização.

- Vocês podem ver o dia em que vão morrer?

- Ter certeza, é como ver.

Doc lhe falava ao mesmo tempo em que realizava exames físicos, a blusa do pijama, levantada nas costas enquanto a auscultava, revelava uma pele morena com o arcabouço ósseo saliente sob ela. Os olhos, clareados por uma lanterna, verdes e viçosos. A boca larga, de lábios finos, escorada por uma arcada dentária branca e regular, estava ressecada, os cabelos igualmente, e tão embaraçados que não deixavam ver o seu tamanho natural, chegavam ao meio das costas.

- Onde você estudou, Doc?

- O tempo todo aqui. Meu pai e minha mãe me ensinaram tudo.

- Onde eles estão agora?

- A expectativa de vida aqui é bem limitada. Ambos mortos.

- Por que você não é igual aos outros? Digo; sua aparência não é como a deles...

- Bons genes, água e oxigênio limpos, alimentação... São meus privilégios para estar aqui.

- Você trabalha para poder respirar?

- Trabalho porque para fazer o que eu faço é necessário que eu respire, existem pessoas acima de mim das quais preciso cuidar, senão, esse equilíbrio se perde.

- Essa é toda a sua relação de trabalho?

- Essas são minhas relações de vida.

Ele terminou o exame e a troca de curativos. As mãos enlaçadas atrás das costas, parado na soleira da porta, ele ia se despedir.

- Eu quero ir lá fora

- Se quer encontrar alguma esperança, ela estará subindo por chaminés.

- Não acredito em você! Não acredito em ninguém que me algeme e me mantenha presa!

- Peço desculpa pelas algemas, mas eu não tinha como saber se você pertencia a algum clã rebelde, e quanto ao que você acha que é uma prisão, asseguro-lhe que está passando por uma quarentena. Ainda não temos como saber se está infectada por algum vírus ou bactéria letal produzidos nos inúmeros laboratórios clandestinos que existem. Os rebeldes já usaram esta estratégia antes.

- Não é ótima a nossa base de relacionamento? Você não confia em mim e eu não confio em você!

- Vou aumentar sua cota de água e alimento, e ver o que posso fazer quanto às suas roupas.

- Isto é tudo?

- Eu mereço essa sua impertinência, mas você a merece mais do que eu. Virei buscá-la amanhã.

Ou ela muito se enganava ou tinha conseguido adentrar na personalidade glacial daquele homem. Mas ela lhe falara a verdade em troca daquela rispidez. Não confiava nele e não sabia de onde vinha a descrença que se materializava, talvez, em sua própria ânima. Ligada por conexões fora do alcance dos cientificismos humanos e ainda muito mais aquém das suas manifestações de espiritualidade. Não era algo como uma vela a depender de um sopro para voltar a ser apenas parafina torneada e pavio de barbante, que depois de apagada pode voltar a se acender e acender até que a escuridão a consuma por inteiro. Não. Era como magma incandescente aquecendo as entranhas da Terra, viajando, se mostrando nos poros da superfície com uma força vital abissal e inacabável, na qual o movimento que erige e dissolve as coisas, que desloca os continentes como se brincasse de montar e desmontar quebra cabeças, massacra a ignorância das criaturas ocultas de sua própria pequena energia vital a se tornar outra, e na qual, essas criaturas são insignificantes.

Contudo, o que ela viu no ciclo seguinte baqueou seu coração com o impacto e o efeito de uma geleira a desabar, e ela chorou como se todo o mar nunca mais cessasse de lhe escorrer dos olhos.




***


Doc se mantinha à frente, iluminando a senda que levava ao alto de um promontório, uma única extensa rocha desnuda que se projetava para o interior do charco, parando de vez em quando para que Laira recuperasse o conforto de respirar dentro da máscara. Sentaram-se recostados à parede de um velho farol, cuja sinalização perdera a finalidade muito antes que a IV Ordem se estruturasse, pois quando isto aconteceu já não havia tráfego naquele mar, nem correntes, nem vida marinha.


- Essa é a nossa costa, foi aqui que a encontraram.


- Qual mar é esse?


- Chamava-se Mar Mediterrâneo, agora não tem mais denominação, assim como o oceano que o irrigava. Isto que vê é a pequena porção restante, tão sólida de detritos que virou uma ilha negra.


- O que tem depois dele?


- Uma paisagem igual a esta, uma terra com outros clãs. Quando o mundo antigo começou a se desmantelar estabeleceram-se várias correntes migratórias em busca de terras altas e seguras. Na primeira fase da falência, o nível dos oceanos subiu drasticamente, na segunda, houve muitas guerras. Toda a chuva caída na terra era veneno e levou à destruição de rios e oceanos já repletos de radiação.


- Foi assim que a os idiomas se perderam?


- Não só isso, muitos morreram. Grandes etnias ficaram reduzidas a clãs, alguns com o tamanho de uma família, como aquele que viu. Outros são maiores e funcionam como micro sociedades que sobrevivem à custa de tecnologias de combinações de genes pré-escolhidos em laboratórios clandestinos. São os clãs superiores, os inferiores, se contentam com antibióticos que atenuem as infecções disseminadas em seu próprio meio. São capazes de morrer e matar por eles, pois não tem em quantidade suficiente para todos. Mas para cada clã que se extingue, pelo menos dez outros surgem. São tão sexualizados que já nascem com suas estruturas neurais ajustadas ao estímulo da libido. Perderam os elementos culturais reguladores do instinto e procriam em terna idade.


- Isto não acontece com os clãs superiores?


- Sim, com alguns, aqueles cujos membros não optam pela psicocirurgia. A eles é facultado o direito de se submeterem ao tratamento.


- É uma espécie de regalia? Quem lhes dá esse direito? Quem são eles?


- Os membros do conselho da Quarta Ordem. Os Sábios do Espírito. Há muito tempo houve um sufrágio para eleição da Ordem. São seres perfeitos que se sucedem à frente de todas as organizações sociais pela perpetuação de suas réplicas.


- Clones?


- Isto mesmo.


- O que acontece aos outros?


- Eles têm seu protagonismo nesse equilíbrio.


- E a isto chamam de organização social?


- Conhece outra maneira de dizer?


- Não... É um padrão repetido, mas em um nível de decadência inumano...


Laira disse pensativa, transitando por pontes de cognição atemorizantes, nas quais seus próprios passos pareciam machucar-lhe o estômago, produzindo uma dor que ribombava nas têmporas, como uma substância amorfa que penetrasse o manto de uma ostra murcha do mar ausente, e só pudesse ficar estática e velha, dilatando abortos sucessivos da luz de uma pérola que não vinha.


- Vamos.


Disse Doc, erguendo-se e estendendo a mão à Laira.


- Podemos ir pelo outro lado? Quero ver a cidade.


Doc assentiu em silêncio, por seus olhos azuis, ela viu passar uma sombra de desalento.


Caminharam sobre esteiras de lixo e lama. Doc continuava a lhe segurar a mão, tanto para ajudá-la a se equilibrar quanto para manter as outras pessoas afastadas. Alguns trocavam provocações e insultos, dispunham-se nas ruas como uma turba agitada e violenta, exercendo suas maldades naturais intrínsecas livremente. Outros incitavam a balburdia, apreciando a barbaridade como se fosse diversão.


Laira viu bandeiras hasteadas em prédios e casas, todas brancas com letras, às vezes, símbolos, decorando o centro.


- O que significam essas bandeiras, Doc?


- É uma demarcação, indicam que a residência está ocupada, prédios têm mais de uma, ou duas bandeiras, pois às vezes abrigam mais de um clã. Quando o último membro morre, qualquer outro clã, o que for mais rápido em assumir a casa, se torna proprietário dela.


- E aquelas chaminés?


Apontava para um grupo de doze chaminés enegrecidas, visíveis atrás de um conjunto de construções baixas.


- São fornos crematórios que nunca param de arder.


De repente, uma mulher correu em direção a eles, com um grupo de pessoas a perseguí-la. Segurava algo por baixo das vestes maltrapilhas, o que a deixava mais lenta do que os seus perseguidores. Ao passar por eles, empurrou o que trazia para Laira enquanto Doc tentava afastá-la. A mulher continuou a corrida, mas ela foi logo alcançada poucos metros à frente. Muitas pessoas passaram por eles. Trêmula, Laira olhava o rosto de uma criança recém nascida, alheia ao tumulto, tranquila como se dormisse.


Doc quis tirar-lhe a criança para devolvê-la a alguém, mas Laira resistiu instintivamente, fechando com mais força os braços ao redor dela. Doc argumentava algo, tentando fazê-la mover-se para longe. Mas ela não ouvia, olhava para onde estava a mulher, caída, com dezenas de pessoas a disputarem o saque das suas carnes.


Laira lançou ao chão a máscara antes que o vômito a sufocasse, e rápido, alguém a apanhou desaparecendo no meio do bando barulhento. Doc, erguendo-a nos braços a levou dali. Em uma rua deserta, pois que todos se concentravam na avenida do incidente, ele deu-lhe a sua.


Ela não se lembrava de como tinham chegado ao hospital ou de como Doc a fez entrar na câmara de descontaminação, agarrada a criança tão ferozmente como se o que lhe quisessem tirar fosse um membro seu, enquanto o choro copioso soltava uma dor de quem já o tivesse perdido.


Aos poucos, Doc conseguiu transpor o delírio histérico. Gentilmente, tomou a criança em um dos braços e com o outro abraçou Laira pelos ombros, falando-lhe baixinho um tipo qualquer de acalanto, o qual sequer julgava-se capaz de pronunciar, habituado que sempre fora a sedar dores com a eficiência de medicamentos, mas abalado, e disso tinha consciência, por aquela condição extrema, diante de um amor tão cabal, que algum prodígio, por conceito eventual, valorasse nas relações individuais das criaturas, tonava-se misericordiosamente opaco em suas insuficiências.


Laira recusou o sedativo que o assistente lhe trouxe, ficou deitada de costas, na cama estreita do quarto asséptico, olhando além do teto, revirando imagens na memória, planos que tinha feito e se visto dentro deles, como se já completamente realizados; o jardim farto de vegetação exótica que circundaria a casa de dois pavimentos, reformada para permitir o máximo de aproveitamento da luz do sol. As horas felizes que desfrutaria com Fabrice, e mais tarde, com suas carreiras consolidadas, em companhia dos filhos, uma boa velhice. Um ciclo natural bem mais alargado e promissor nas suas regulações e obstáculos, nas suas aflições, encantos e encantamentos indispensáveis à sua longanimidade, e no qual se sabia, por mais que girasse, o atributo de girar era a própria valia. O sentido dessa exposição drástica a um universo inqualificável assumia a forma de escapismo, ela se perguntava se afrontar a si desse modo, conhecer o ponto exato do qual partira, lhe conservaria a lucidez com a qual utilizaria uma das opções oferecidas por Doc.


Doc foi vê-la depois de examinar a criança. Ela não o viu chegar, mas também não se mexeu ao ouvir sua voz.


- Aparentemente, a menina está bem.


- Uma menina... Como a chamaremos?


- Não pensei nisto. Aqui, ela é a paciente de número dois.


- Não tem mais ninguém nesse andar?


- Não.


Laira ficou em silêncio e depois, voltou para ele o rosto cansado.


- Hope. Nós a chamaremos assim. E se posso lhe pedir alguma coisa; não importa a minha decisão sobre as escolhas que me deu, não permita que ela suba por chaminés...


- Poderá vê-la amanhã.


- Você cumpre promessas?


- Eu sei dar alternativa.


- Então, faça esta escolha.


- Falaremos amanhã.


- Você vai me deixar?


- Precisa descansar.


- Não quero ficar sozinha agora. Meus pensamentos retornam ecos.


- Venha, vamos ao consultório.


- O que aquela mulher fez para merecer aquele tipo de punição, Doc?


- Ela roubou comida do clã. E quando alguém foge à regra geral, se arrisca a ter que dispor da própria vida. Sendo ainda saudável, serviu de alimento, do contrário, ela e a criança iriam para os fornos, é a pena capital para quem diminui dos seus pares a espécie legítima de sobrevivência.


- Então, ela deveria esperar e morrer de fome, tendo uma criança para alimentar? É nojento e irracional!


- Condena-os? As éticas não dispõem de abundância para se manifestarem. Vivemos a ética do mínimo, primitiva e essencial. O que quer dizer que há racionalidade, sim, mas sem os subterfúgios dos limites incalculáveis e prósperos a serem superados. Todos já o foram. Não lamente como quem os amasse de um falso amor, isolado, decomposto aos milhões de pedaços, como a dificultar o trabalho do amor inteiro, por que foi essa a conveniência de todos para sobreviverem.


- Ocorremos de lapsos, é isto o que está me dizendo. Foi isto o que quis me mostrar...


- Não, foi isto o que você quis ver. Pode aceitar ou se condenar por ter visto que o sentido da vida não é uma especificidade quântica ou teorias distraídas logo abandonadas por outras não mais benéficas, porém, mais aceitáveis à adaptação da própria vida.


- Não aceito esse caminho sem volta, e você não deveria falar como se aceitasse!


- Laira, nós estamos por aqui a tempo bastante para entender que todo aprendizado traz consigo no mínimo um trauma. Que para cada noção contraída muitas outras morrem, e que esse embate, esse contato com a transformação real é imperioso, sem ele não há aprendizado. Mas a sabedoria não veio a esse mundo orgânico divinal porque a humanidade o concebeu sumariamente assim, unicamente orgânico e dócil. Porque seria preciso o homem admitir que o que não foi aprendido também ensinou...


- Há quanto tempo... Há quanto tempo você está aqui?


- Desde que a Quarta Ordem se estabeleceu. Eu sou um clone.


- Seus pais não eram?


- Não. Eles sim foram sábios, praticavam a seu favor uma ciência mais austera, prorrogarem-se na expectativa de vida eterna seria para eles um engodo, mas já era uma época em que a ciência tinha assumido a mesma forma das religiões, mentia, matava, fraudava, vendia, usava, enfim, tinha os mesmos significados dos que a fizeram.


- E o que você espera Doc, uma saída milagrosa?


- Se existir alguma, ela não estará em nós, nem em nenhum deus, messias ou profeta irado e confortável.


- Onde ela estará?


- É essa informação pura que a Quarta Ordem busca, mesmo sem muito tempo para encontrar, e sem fugir da dinâmica pré-estabelecida, o último pedaço de silício tem a mesma gravidade de uma célula viva.


- Então, vocês já têm a resposta.


- Não é surpreendente o tempo que levamos para ter consciência dela? Desperdiçamos o tempo como mero fetiche da morte, e a crueldade está em não morrermos todos inteiramente ao mesmo tempo.


Laira sentiu, ele também padecia, nas entrelinhas do que dizia pairava certo desprezo pelo que o qualificava para buscar a saída, e o que se ocultava naquela indiferença estudada também era o medo.


- Venha, estamos acordados há quase dois ciclos. Precisamos descansar.



***