domingo, 16 de outubro de 2011

A Combinação Zero (FIM) - Jeanne Chaves



A porta de aço do quarto de Laira não ficava mais travada. À procura da criança deparou, no final do corredor oposto à saída do prédio, com uma escada de acesso ao andar de cima e ao subsolo, pela porta entreaberta, como se alguém tivesse acabado de passar por ela, vinham vozes, três ou quatro pessoas conversavam, tendo ao fundo os ruídos desconexos de uma sinfonia de máquinas para respirar que agora ela reconhecia. O andar era mais iluminado, e por trás do grupo de assistentes que conversava, através de uma espécie de vitrine sobre meia parede, ela contou pelo menos trinta pessoas inertes, com tubos e agulhas a lhes penetrarem. Seu sexto sentido alertou para que não prosseguisse, e meio escondida na sombra do vão da escada, tentou compreender o que era falado, inutilmente. Já estava a ponto de retornar quando teve a atenção despertada por um homem, dentre aqueles pacientes, que se parecia com o piloto árabe daquela viagem fatídica, e arriscando-se a ser descoberta avançou mais no interior do andar. Ao mesmo tempo em que confirmava sua suspeita, levou a mão à boca, imediatamente, para abafar a exclamação de susto.


“Era ele!”


Então, Doc mentira deliberadamente. Mas, por quê?


De volta ao quarto, decidiu esperar por alguém que a levasse até a criança. Esse alguém foi o próprio Doc.


Hope estava bem acomodada, recebendo a mamadeira de uma mulher jovem, que Laira não tinha conhecido antes, e como os outros, de aspecto alheado.


A boca pequena e rosada agarrava o bico da mamadeira com pressa, as mãos cerradas, como imprescindível à concentração. Era uma criança bonita, de cabelos castanhos finos e encaracolados, porém fraca, a pele enrugada sugeria a aflição da fome.


Antes de sair, a mulher entregou a criança a Laira para que a segurasse.


- Doc... Você vai ficar com ela?


- Não posso, Laira.


- Então, tudo o que fizemos foi para nada?


- Ela vai ficar aqui o tempo que for preciso, mas como paciente.


- Você não tem uma esposa, uma família que a receba?


- Não.


- O que mais lhe falta? Piedade... Humanidade?


- Essa criança, aqui, é uma concessão que eu faço à sua piedade e humanidade, a Ordem não sabe de você ou dela.


- Se é assim, então são concessões que faz a si mesmo. Por quê?


- Não sei, talvez porque tudo em você vive de uma vida diferente da que eu conheço.


- Você corre algum risco? Pode ser mandado fazer conosco alguma coisa que não gostaria de fazer, é isso? A essa altura, algum dos seus assistentes já o terá delatado. Então, faça o que tem que fazer e acabe logo com isso!


- Não, Laira, não será tão fácil como quer que seja. E quanto aos assistentes, não há com o que se preocupar, seus cérebros são programados, não fazem nada que eu não ordene.


- Lobotomia! Você fez isso com eles?


- É necessário. Não temos variedades de medicamentos. Seus afetos interfeririam no que precisamos fazer aqui.


- Meu Deus! É monstruoso!


- Alivie sua angústia. Eles são voluntários, só depois a Ordem consente a cirurgia.


- O que mais você vai me deixar saber, Doc? Vai me dizer de onde vem tudo isso que mantém o hospital funcionando? Vai me dizer se vai me transformar num desses zumbis ou se me reserva para outra finalidade?


A criança, que tinha começado a cochilar, embalada no calor do corpo de Laira, emitiu pequenos grunhidos de reclamação, e ela se obrigou a abaixar a voz.


- Você pode mudar para cá, se quiser, ficará mais perto da menina.


- Hope! O nome dela é Hope!


- Mais tarde, vamos a um lugar, então, poderá fazer as perguntas que quiser.


Ele saiu sem esperar resposta. A impassibilidade dele exasperava-a fortemente.


***


O caminho do hospital até a casa térrea, no cerro circulado em sua meia altura por uma alta muralha de pedras vulcânicas, guardava uma distância considerável, vencida com o auxílio de lanternas, em cujos fachos, pequenos insetos realizavam uma dança hipnótica, resistindo ao maltrato dos fumos que nunca abandonavam aquela terra de impossibilidades.


O sal das gotas escorrendo pelos cabelos para dentro dos olhos de Laira incomodava terrivelmente, mas Doc tinha sido categórico ao alertá-la para que não removesse a máscara sob nenhuma condição.


- Doc!


A voz baixa soava como um silvo. Um homem saiu da escuridão à frente deles, se colocando ao alcance dos círculos de luz, e mais três homens o acompanharam, eram agora sete figuras fantasmagóricas paradas na subida do morro. Pensando se tratar de um ataque, Laira já se preparava para correr quando Doc a segurou por um dos braços.


- Está tudo bem!


Em não mais de dez frases, trocadas entre Doc e o homem que não falava pela boca, mas por uma abertura na garganta, a conversa foi encerrada e os homens se foram.


- Quem são eles?


- São informantes. Vivem entre os rebeldes.


- Porque vocês precisam de espiões?


Doc continuou a andar, obrigando Laira e o assistente a segui-lo.


- Existe uma corrente religiosa que prega que o que fazemos aqui é uma aberração. Essas pessoas vivem para tentar e conseguir destruir a Ordem. Sua moralidade em tudo é semelhante a nossa, à exceção das religiões, as quais nós abolimos. São charlatães, mercadores hipócritas, produzem doenças em laboratórios, ameaçam e usam esses produtos para conquistarem uma superioridade ideológica na qual eles são os senhores da morte, e onde não haveria compensação se falhassem para com as determinações do seu líder espiritual, que diz receber mensagens telepáticas diretamente do próprio deus, e acredita que recebe. As pessoas lhes dão tudo o que podem, inclusive, seus próprios órgãos e caso sejam saudáveis, são aceitos como sacrifício de lealdade. Essas pessoas recebem o título de mártires do amor de deus, seus nomes são grafados nos muros, pelo punho do líder, o que para eles é uma honraria, nenhum deles consegue se expressar na escrita, falam, mas não lêem.


- Comparativamente, os métodos de despersonalização da pessoa, praticados pela sua Ordem tem mais moral, não é?


- A sua crítica é pertinente, mas lembre-se, são duas motivações distintas, a vida e a morte. De qual delas você desejaria ser mártir?


- Quando a única alternativa é a morte, ao menos, que haja um pretexto com mais esperança do que ela.


Doc estacou de repente e a segurou com violência pelos ombros, quase a sacudindo.


- Não use a palavra pretexto nunca mais comigo! Uma mulher devorada na rua por tentar salvar a filha não é um pretexto! A filha dela não é um pretexto. Um homem com um câncer a lhe corroer a voz, que se expõe e à sua família, ao risco de uma morte mais lenta e dolorosa do que a do próprio câncer, por acreditar na vida real que virá, embora não vá poder usufruí-la, não é um pretexto!


- Desculpe, Doc...


Foram poucos instantes de zanga, mas neles, Laira viu a dor gigantesca que era aquele homem magro, de pensamentos cristalinos e atitudes resolutas. Ele era tão frágil como quem nunca houvesse se permitido um sonho. Doc a soltou, um tanto constrangido por ter deixado a cólera apanhá-lo desprevenido, desculpou-se também, e além da sinceridade com que o fez, Laira percebeu fadiga.


Com um pouco mais de marcha, chegaram ao portão de ferro do muro de pedras. No interior do terreno, passaram por uma dezena de homens armados. O casarão inteiro sustentava-se sobre colunas que se uniam no topo através de amplos e delicados arcos mouriscos. Um luxo artístico antigo e decadente originalmente belo, que tornava impreterivelmente mais decadente e feia a paisagem urbana ao redor. Doc abriu a porta e deixou que Laira entrasse primeiro, então ela teve o impacto da música suave que os acompanhou por todo o caminho, mas perdida na distração dos seus sentidos, e teve também a consciência de pelo menos cem pares de olhos postos sobre ela.


Um rapazinho que pelas contas de Laira não deveria ter mais de dezesseis ou dezessete anos, deslocou-se de um dos grupos dos vários que conversavam baixinho e se dirigiu até eles, cumprimentou Doc com uma voz doce, e para Laira, olhou longamente, depois, pousou as duas mãos de cada lado de sua cabeça e a abraçou ternamente. O que ele não disse, mostrou durante aquele abraço, em imagens límpidas, milhões de fótons impregnando, nações, mares, montanhas, animais, campos verdes, florestas, pessoas, conflitos, guerras, vida e morte, como uma estampa holográfica em fundo escuro. Ele era velho a tempo demais para ter-se descoberto e apartado dos seus fatos e suas éticas. Existira e desistira sem procedências. Não no mesmo nível de uma placidez ofuscada, sem a propriedade de suas etapas, sem qualquer outra sucessão além da queda seguinte. Perecera e viera ao mundo para viver, repetidas vezes, um florescimento ainda mais violento, o que versava em ser dele e dos outros, a essência mais depurada de suas fugacidades, e para as quais jamais reivindicou qualquer negação, e em cujos filtros de conhecimento, restaram matérias primordiais das quais são feitas todas as vidas.


Laira voltou a si, a mente extenuada, quando Doc finalmente os apresentou.


- Este é Átis, o Presidente.


Mas, Átis já os deixava, voltando para os convidados, africanos, oceânicos, europeus, americanos, asiáticos, e outros que Laira não soube distinguir, de todas as idades, mas nem todos vivazes e salutares com a intensidade do adolescente.


- Se não tocá-los eles não a tocarão, suas consciências poderiam matá-la.


- O que são eles? Ídolos esotéricos? Semideuses paranormais?


- São os remanescentes das suas hipóteses.


- O seu presidente é um adolescente... É o seu maior representante do poder?


- O poder se dispersou nas suas interdependências, não existe se não houver sobre quem ele possa ser exercido, essa relação frágil não existe mais. No entanto, restaram os hábitos, eles incidem sobre os parcos recursos e abrigos disponíveis. Todos que aqui estão, em seus nichos, são mera representatividade da resolução do caos, mas sem ter que lidar com a política, apenas com a racionalidade, que neles, é equânime. Foi preciso aprender tudo sem se contrapor ao poder falível da coletividade obtusa, e quando este finalmente desapareceu, não foi o fim do mundo, antes, o começo da verdade de agora.


- Essa verdade inclui você me dizer por que o piloto do jato está lá no hospital?


- Ele é reserva de pele, ossos e órgãos, como os outros que estão lá.


- Você não se cansa de me horrorizar, não é?


- Ele foi encontrado ainda vivo. Ciclos depois, quando eu lhe disse que todos estavam mortos, foi verdade. Você teria muito tempo para se afrontar com a sua própria mortalidade. Agora, ela lhe parece mais atrativa?


- Não.


- Só você sabe a chave da saída. Sobreviva e nós sobreviveremos em você.


Dito isto, Doc a levou para sentar a uma das mesas, onde o jantar, um caldo sem frivolidades ao paladar e objetivo à fome, estava sendo servido, depois discutiram sobre a informação passada pelo homem que os abordou no caminho.


Os rebeldes planejavam um ataque biológico à ordem, ele só não sabia quando o atentado se daria ou qual agente seria usado, sabia apenas que seria para breve.


***


Os ciclos seguintes foram de intenso trabalho. Entre os cuidados à Hope e a desocupação do prédio, Laira descobriu o elevador, por trás da estante do consultório, que levava muitos metros abaixo do solo, a um ambiente que reproduzia o que havia na superfície em proporções menores, contíguo ao necrotério, a um depósito pouco abastecido de insumos e medicamentos, e em único pavimento, alcançado através de um trecho de duto que mal comportava uma pessoa de pé, e se abria através de uma porta escotilha de aço maciço. O duto se estendia até a fortaleza que os membros da ordem, dos quais apenas Átis havia permanecido, utilizavam para as reuniões, e seguia se bifurcando em uma ramificação de calibre mais espaçoso.


A estratégia adotada para a batalha que se travaria seria muito arriscada. Cadáveres, e clones voluntários seriam usados para dar a impressão de que o hospital mantinha suas atividades, depois do ataque, eles identificariam o agente e retomariam as rotinas, dando a entender aos rebeldes que possuíam drogas capazes de promover uma barreira contra a contaminação. Contavam que fosse uma operação planejada com a rapidez da covardia, e os rebeldes não se apercebessem dos exaustores e filtros de ar desligados. Os reservatórios e linhas de fornecimento de água receberiam reforço na vigilância, apesar de os membros da Ordem considerarem mínima a possibilidade de os rebeldes a quererem contaminar, eles a roubariam.


- Átis, a Ordem poderia atacar primeiro, não poderia?


- Nossa fundamentação é a vida, Laira, e não a morte, nós não adulteramos nada para a finalidade dela. Você sente medo, eu também, e afirmo que os rebeldes têm medo de não encontrarem o céu prometido. Usarmos do mesmo princípio que os move seria decretar a insolvência de tudo pelo qual resistimos.


- São pesos insuportáveis.


- Os antigos os carregaram mais pesados, pois não os percebiam se acumulando nos séculos de filosofia e religião apartadas dos processos vitais da Terra. Em um primeiro momento, poderá perdoá-los, baseada no que eles percebiam do seu meio próximo tão pouco exuberante de vida, no qual havia quase nada para o pensamento cobrir, em um segundo momento, pode condená-los por cegarem, convenientemente, à percepção acrescida de uma terra extorquida e com a crosta em alvoroço, e em um terceiro momento, este de espera no qual se encontra, pode esquecer o perdão e a condenação, eles já não têm mais importância.


- Você fala exatamente igual à Doc, e eu desejaria compreender e aceitar tudo isto como vocês.


- Não estranhe se eu lhe disser que tudo está dentro de você, quanto a Doc, ele também fala como quem a ama. E eu jogaria fora a hélice do meu DNA se você negasse honestamente que existe reciprocidade. É acerca do que lhe diz respeito que o homem encontra os maiores obstáculos para entender os próprios sinais.


- Nesse mundo não cabe amor, Átis.


- Engana-se, Laira, apenas urge que ele seja grande para além dos fatores limítrofes dos valores apreendidos e dos hormônios, como aqueles, estes últimos são portas que abrem outras até a última se fechar, e para transitar na matéria e na essência com a pureza de uma fera perseguida, há que se saber qual porta se fechou, então, ao final, pode-se contemplar o amor intocado, será ele toda substância, essência e lucidez.


- Uma fera perseguida não olha para trás. Fale por si, Átis. Substância e essência são sensoriais, necessitam de caracterização palpável.


- Então, aproveite para tocá-los sem as vicissitudes dos sentidos enganados, descobrirá que as consequências não atingirão o que não foi ainda descoberto, e por isso, o que está oculto, bom ou mau, só poderá ser modificado quando emergir à luz do conhecimento, e que o universo tem segredos feitos para permanecerem assim, segredos resguardados das avarezas e paixões humanas.


- Até quando esses segredos bastarão tão estáticos e indulgentes?


- Até quando o homem se aproprie de sua fragilidade e pare de andar em círculos, matando no caminho o que não compreende, meramente por não desejar assimilar. O que pode ser indefinidamente.


- Mas, era do amor que suspeita existir entre eu e Doc que você falava...


- O tempo inteiro eu falei tão somente de amor. Tudo o que não nasce no amor da Terra, já cresce escombros.


***


Ao final de vinte e seis ciclos, Laira tenazmente se habituou ao pequeno reservado que dividia com Hope, dormiam na mesma cama de campanha, e quando sabia que o leite racionado não atendia à sua satisfação, oferecia-lhe o seio. No início ela protestava até a exaustão, ludibriada, e com o tempo, não mais. Assim, Doc as encontrou ao abrir o cortinado de plástico que fechava suas intimidades. Laira, o tronco nu, alimentava Hope.


Ele se aproximou e pousou a mão suave e firmemente no ventre de Laira, e sobre ela a fronte. Ficou nessa posição, imóvel, ajoelhado sobre ela, apreciando o vestígio nervoso aninhado no escuro do útero, como se o visse, e quando finalmente voltou os olhos azuis ao encontro dos olhos dela havia toda uma tradução de certeza.


- Tenho até receio de fazer algo que o traga de volta a realidade e leve embora esse riso.


- Nunca estivemos fora dela.


Entregando a menina a Doc, Laira tratou de se recompor, de costas para ele.


- Tem algo errado comigo, Doc.


- Não, não tem. Você está grávida.


- Você não costuma fazer piadas... Eu e Fabrice não queríamos filhos agora, sempre me preveni... Para com isso...


- Quem é Fabrice?


- O homem com quem eu me casaria. Esqueça! O que está acontecendo aqui?


- Você foi inseminada, dentro de você há uma seleção de genes dos membros da Ordem.


Laira o encarou, estupefata, então se lembrou da sensação de vácuo que teve após a visita ao necrotério.


- Porque, Doc? Porque você me usou desse jeito?


- O nosso tempo se esgotava. Desculpe-me...


- Pede desculpas como quem tivesse tomado algo emprestado sem pedir e depois devolvesse estragado. Eu não sou um dos seus assistentes, clones ou cadáveres, Doc!


- Eu jamais deixaria que fosse qualquer dessas coisas. Você não reparou que ninguém desceu aqui nestes últimos dois ciclos? O ataque já aconteceu.


- Todos lá em cima estão mortos?


- Eu e Átis estamos nos preparando para fazer as confirmações e caso não voltemos, pegue aquela roupa, ela é hermética, o capuz é conectado com um cilindro de oxigênio, e vá por aquele túnel.


Doc indicou um armário sem portas, onde se via apenas um conjunto do equipamento e o seguimento mais largo do túnel.


- Quanto à Hope... Olhe...


Doc devolveu a menina para Laira e usando o lençol da cama, prendeu-a ao corpo dela.


- Depois, vista a roupa. Ela ficará bem enquanto você estiver também.


- Doc, tem partes de você aqui dentro?


Laira levou uma mão ao ventre e Doc assentiu. Então ela o abraçou tendo Hope entre eles, a ressonar confiantemente.


- Quem é Fabrice?


- Agora já não sei mais.


- O reconhecerá quando estiverem face a face novamente.


- Essa positividade me é estranha em você.


- Você gesta três pessoas que poderão mudar os desígnios do mundo, e deverá ensiná-las o que aprendeu conosco. Assegure-se de que Fabrice poderá amá-las sem restrições e protegê-las.


- Como você faz comigo?


- Como eu amo você.


Quando Laira estava pronta para verbalizar o mesmo sentimento, Doc a silenciou encostando os lábios nos dela.


- Eu sei.


Átis vinha entrando com todo o cuidado em se fazer notar e comunicou-lhes que subiria sozinho, naquele momento, pois acreditava que seja lá o que fosse que os rebeldes tivessem feito, a falta de movimento no hospital exporia possíveis saqueadores que poderiam se transformar em disseminadores de uma contaminação sem precedentes. Doc deveria ficar e aguardá-lo, somente ele saberia o que fazer depois.


Já na porta do elevador, Átis deparou com todas as superfícies do consultório cobertas por um líquido ralo e gelatinoso que em alguns lugares começava a ressecar formando cascas. Nas paredes do corredor, apresentava-se completamente seco, manchando as paredes brancas de filetes pardacentos. Os quartos e a unidade de terapia intensiva, onde cadáveres embalsamados faziam às vezes de pacientes, os móveis e equipamentos, o chão das escadarias, tudo havia sido aspergido, e os clones tinham sido assassinados.


Assim, ele só pode supor o que havia se passado. A invasão foi rápida. Apanhados de surpresa, os voluntários foram acuados, alguns chegaram a ser caçados, havia corpos nos quartos, no final do corredor e nas escadas. Todo o prédio estava em silêncio e o odor da morte impregnava o ar abafado e pestilento.


Ele dedicou-se a tarefa de remover os corpos para o necrotério, após o que, já cansado recolheu amostras do líquido para que Doc analisasse. Só então voltou ao subsolo, tomando o cuidado de se certificar que realizara todos os procedimentos de descontaminação.


A identificação do agente consumiu mais tempo do que Doc havia previsto. Não havia vírus nem bactérias de relevância que justificassem a ousadia e a carnificina promovida, entretanto, sabia que os rebeldes não se utilizavam do hábito de blefar, foi então que com a ajuda do adolescente, quase ao fim do décimo oitavo ciclo desde o atentado, Doc descobriu a proteína.


- O que é? - Perguntou Átis.


- Kuru!


- Eles se sofisticaram.


- Sim. Fatal, lenta e dolorosa.


- O que faremos?


- Eles conseguiram inviabilizar o hospital, precisamos queimá-lo o mais depressa possível. Depois, voltaremos para a fortaleza, de lá cruzaremos o mar e nos reuniremos aos outros.


- Não confia em que descobriremos a cura?


- Não aqui e nem com a rapidez que necessitamos.


***


Do ponto mais ao oriente da cidade, o hospital se assemelhava a uma tocha, cujas línguas de fogo trincavam o escuro ao redor e o movimento da fumaça se condensava na ausência de vento, oferecendo um espetáculo funesto para o povo que não tardou a encher as ruas, e que o preservava no ideário, sacralizado feito um templo, de onde não viessem maravilhas personalizadas para atenuar as penúrias que o assolava, mas no qual, a concretude do propósito redimia as suas desesperanças.


Muito vagarosamente, ondas de calor começaram a chegar ao subsolo, enquanto Doc, Laira e Átis se preparavam para partir, deixando para trás os pacientes comatosos da reserva estratégica. Nesse ínterim, os rebeldes finalizavam o ardil, um grupo seguia pelo túnel que ligava o hospital à fortaleza, o objetivo era encurralar e capturar o maior número possível de membros da Ordem.


Átis foi o primeiro a perceber que eles não estavam sozinhos. A única alternativa era retornar para as instalações do subsolo que já quase se encontrava em ebulição. Assim fizeram e travaram a porta escotilha.


Doc retirou de entre a pouca bagagem que eles levavam a roupa que tinha instruído Laira a usar e passou a ajudá-la a se vestir. Hope estava visivelmente inquieta, e nem quando Átis a acomodou o mais confortável possível, nas dobras e nós do pano que a prenderam ao corpo de Laira ela sossegou.


Em frente à boca do túnel maior, Doc recomendou:


- Não importa o que você ouça ou veja, siga à diante. Não deixe que a peguem.


- Onde ele vai dar?


- Na saída.


- Vocês vêm?


- Sim.


- É uma promessa?


- É uma possibilidade.


Laira retirou do pescoço uma delicada corrente de prata, na qual, a aliança resgatada da sua companheira de viagem servia de pingente e a entregou a Doc, esse gesto o fez sofrer, pois se tratava de um compromisso tardio e inconcretizável. Mesmo assim, havia um riso em seus olhos quando ele passou a corrente pela própria cabeça.


- Agora, vá!


Ela o abraçou uma vez mais e se despediu de Átis.


- Vá!


Laira procurava compassar a caminhada e controlar a ansiedade cada vez que o facho da lanterna não iluminava a porta de saída. Ela se mantinha consciente de que dentro da roupa eram duas pessoas a respirarem do mesmo cilindro, e se se apavorasse, o oxigênio talvez não fosse suficiente para quando chegasse ao exterior. Mas então, ouviu passos além dos seus e começou a correr.


Finalmente, chegou à porta de saída e a mesma estava trancada. De nada adiantou forçá-la, pois ela não se mexeu um único milímetro. Ao lado, Laira viu o mesmo mecanismo de travamento e abertura por código de quatro dígitos das portas do hospital. Em desespero, introduziu várias combinações que não funcionaram. Deixou-se cair no chão, agoniada, ouvindo os passos dos seus perseguidores cada vez mais perto. De repente, ergueu-se e pôs-se a andar de um lado para o outro.


- Não. Não vai ser desse jeito, não é Hope? Não. Não vai ser...


Um, dois, três...


Pense!...


Seis, sete, oito.


Pense!


Dez, Um, dois...


"Eles falam, mas não lêem"...


Sete, oito, nove...


Quem colocou ali aquela porta nunca usada antes obedecia a ordens...


Dois, três, quatro...


"O que não foi aprendido também ensinou"...


Oito, nove, dez...


Com mão trêmula ela introduziu o número zero nas casas digitais e ouviu estalido das travas se movendo, quando forçou mais uma vez a porta, esta se abriu.


***


Tingido em púrpura e cobre do pôr do sol, o mar, soberbo, exalava uma brisa morna a desfazer os cabelos das quatro crianças que brincavam e corriam na areia da praia, sob o olhar cuidadoso de Laira e um céu de nuvens esparsas e finas.




Fim