terça-feira, 9 de novembro de 2010

Essência



Acho que sempre esperei sentir o cheiro do melaço da cana na minha primeira respiração.Eu esperei ser aquecida em roupinhas de cambraia, bordadas pelas mãos das avós, tias, madrinha, e vizinhas. Um gosto irrecusável da florada do caju na boca. Esperei que meus primeiros brinquedos: meu chocalho, a caixinha de música... Fizessem o mesmo som da garganta da acauã... Do curió. Acho que sempre desejei que o primeiro lugar destinado a mim na casa, tivesse uma grande janela de onde eu pudesse olhar o colorido de coroas-de-frade no quintal. E num domingo, quando todos se reunissem para comemorar as chuvas vindas das preces a São José, eu passaria de mão em mão, e cada uma delas cuidaria de me empanturrar de rapadura batida, calda de doce de jaca, suco de umbu cajá, pamonha de milho fresco. E com mais um pouco de tempo, o interminável enxoval feito para o meu nascimento seria substituído pela carícia do algodão cru, fiado em teares nos fundos da casa, e tingidos em tachos fumegantes de barro.

Mas, por força do êxodo, tudo ao que os meus sentidos pueris se ativeram era tão cinzento e frio. Tais informações não coincidiam com as que os meus genes já conheciam. A chuva que caía não era rezada, dela não se esperava abundância no roçado. Não, ela não faltava, como imposição de castigo imerecido. Era constante, acabrunhada, e, excomungada. Refratando o asfalto feito rio, cujas margens brotavam concreto. Nenhum júbilo lhe abria as bocas nem o chão. Ela era tão sem graça, tão sem cor. Nenhum arco-íris a precedeu, só a fumaça.

Meu lugar na casa mostrava quadrados de grades pelas quais eu via alvenaria, alvenaria, alvenaria, antenas e muitos fios, irrisórios pombos, pardais ocasionais. Uma selva de almas nas mãos de nenhuma das quais a minha passou.

Tudo cheirava a Tietê. E os gostos, fuligem. E eu era tão nua. Tão farta da falta da identidade que meus genes conflitavam.

Quase fui triste, como se a ausência de explicação para mim não fizesse sentido. Temendo que quando, por ventura, um dia fizesse, eu perdesse todo o sentido.

Ilustre desconhecido, o destino é um poeta, fez do sal das salinas daqui, o mesmo tempero das minhas veias. Agora me basto. E do meu lugar jamais fui tão plena. É ele quem me conhece os canaviais e coqueiros, o mar, o cerrado, e a caatinga.

Voltar à minha terra acidental de nascimento nunca é como me visitar. É uma gozadora concessão do destino a que ela me visite. Ela, estrangeira que perdeu a bússola na pressa de partir e se partir, como quem não se quer mais.



Este texto é dedicado, com um carinho imenso, a Marcelo Rocha, com umas observações:

Somos esse povo grandioso sem jamais ter utilizado qualquer tipo de medo, de fraqueza, de insegurança. Nós não os conhecemos. Somos quem somos porque ainda sabemos o que somos.

E, à Mayara Petruso, incitadora do afogamento de nordestinos, estudante de Direito que fez torto, rogarei uma praga no estilo Bento Carneiro, personagem de Chico Anízio (cearense):

“Tomara que ao transitar com seu carro, lavado de chuva ácida, em um dia de engarrafamento quilométrico, pela Marginal Pinheiros, lhe tombe em cima um caminhão carregado de rapaduras, e, que se elas não lhe abrande a mediocridade, ao menos, lhe torne a vida mais doce."

Quando isto acontecer, vem pra cá que serás bem recebida.



Jeanne Chaves