quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Crítica Literária Para "Estado Bruto" - Janilto Andrade





O romance moderno, em sua infância, travou uma dura quebra de braço para se fazer respeitável. É frequentemente, em narrativas romanescas dos séculos XXVIII e XIX, a recorrência a curiosos artifícios, a fim de dotar esses textos de veracidade. O narrador, por exemplo, às vezes, assegura ter conhecido tal ou qual personagem; ou fornece um endereço real, onde teria ocorrido o conflito.
Quem é do ramo das letras sabe que o que importa não é saber se o mito num romance corresponde a um acontecimento de realidade, mas apreender, na leitura, o que o escritor manifesta a respeito de fenômenos da realidade. Não será a exata adequação do mito com um fato real que dará excelência a um romance. Será, sim, a agudeza das revelações que o escritor faz de comportamentos humanos. Atitudes subjetivas ou sociais.
O mito, num romance, é a trama das ações vividas pelas personagens. E isso que constitui um universo ficcional. É a pequena história. Se a pequena história possibilita a construção de uma grande história, aí o texto romanesco se afirma como literatura. Dependerá do tamanho da grande história a riqueza do texto.
São as leituras que vão cosntruindo o tamanho da obra literária. Imagine-se o tamanho da Ilíada...!
Minha breve leitura de Estado Bruto, que parece ser a primeira leitura desse texto, desejo que seja acrescida de outras, para a construção da grande história, que virá a ser sugerida no mito fundado por Jeanne Chaves, com o encontro de Max e Uélito.
Faço referência a um aspecto que me despertou especial atenção. A existência de um drama romanesco se constrói numa tensão dialética. No texto de Jeanne, o eixo dialético põe as duas personagens numa prisão. Mas a prisão, o espaço físico, é apenas alegoria do cárcere interior em que se debatem ambos. Um cárcere de calúnia; o outro, no da rejeição. Rejeição e calúnia originam conflitos humanos sem tamanho. Se Braz Cubas diz que não teve filhos para não transmitir o legado da nossa miséria, a personagem de Jeanne diz: "Não vou procriar para ver meu filho se tornar mais uma vítima de discriminação."
A mim, como leitor, interessam-me algumas coisas neste romance. Algumas imagens, por exemplo: "... liberdade é (...) cometerem coisas de pássaro..." Alguns momentos de reflexão a respeito do ceticismo, o ceticismo na postura de Uélito, por exemplo.
Mas, assim, o que me interessou, mais de perto, como leitor, foi precisamente o cárcere da rejeição. Cárcere vivenciado por Max. Destaco o que me pareceu mais significativo em Estado Bruto. Aqui na fala de Max: "O homossexualismo é ancestral, Uélito, e não só na espécie humana. A organização do homem em sociedades e civilizações, sob a influência de religiões de culto monoteísta, determinou uma ordem social que vinculou amor à reprodução. Minha prisão vem de antes de eu nascer."
Ao ler essa concepção que a romancista faz Max expressar, é impossível deixar de fazer referência a Otávio Paz: "O erotismo é metáfora da sexualidade. É triunfo do homem sobre a imposição de procriação da natureza. Para a personagem de Estado Bruto, é libertar-se da "influência das religiões de culto monoteísta". E mais, ainda com Otávio Paz: "O erotismo é a cota de paraíso que coube ao ser humano neste mundo." É isto, parece-me, a grande descoberta das personagens desse romance. Descoberta vivida nas grades da prisão, antes prisão existencial que prisão física imposta pela organização social.
Pode-se prender um ser humano, mas ele, ainda assim, pode estar em liberdade.
Janilto Andrade

Professor de Teoria Literária e História da Arte da Universidade Católica de Pernambuco