A vida dá voltas
estreitas que, às vezes, raras vezes, passam em um mesmo lugar.
Retroagida em meio aos móveis antigos descobertos e gastos, onde se assentam
várias camadas de poeira, eu estou no interior da minha ampulheta. Herdeira
dos meus despojos, e se alguma riqueza há nessa herança é exclusivamente a
lembrança que me avassala, juntando os grãos de areia do meu próprio tempo.
A fragrância adocicada de flores de laranjeira
dissipou um pouco do cheiro de mofo da casa dos meus avós quando eu abri a
porta que dava para os fundos, e onde a jurubeba subia alta, sufocando a
plantação de jerimuns não colhidos havia anos. Depois da horta, ao lado do
galinheiro vazio, a pequena oficina de marcenaria de paredes de tábuas
pendentes, onde brincávamos quando a serra silenciava, ou apenas ficávamos
aguardando o meu avô Feliciano dar faces abrutalhadas aos bonecos que talhava, e depois os pintava e vestia com batas de restos de tecido, para contarem,
pelas nossas mãos, as histórias que imaginávamos.
Na última vez que aqui estive com Jorge, procurávamos
por uma caderneta com cálculos mal rabiscados em grafite, com créditos e o nome
dos credores correspondentes, pouca coisa, mas o bastante para garantir os pães
franceses da semana, que vinham embrulhados ainda quentes em papel madeira. Cinco por dia, que eram repartidos ao meio. Na hora do jantar as metades restantes tinham a textura de pão dormido, e eram ingeridos com
manteiga, se tivesse, chá ou leite diluído domesticamente um pouco mais para
nós, e café pisado e coado na hora para Feliciano e Matilde. Na justeza da
necessidade os únicos excessos permissíveis eram os de economia.
Jorge esbarrou numa prateleira que acumulava
quase todos os expurgos da casa, velharias e utensílios de pouco uso, fazendo
cair um caldeirão, e ao olhar para dentro dele, uma lembrança o repugnou da
mesma náusea do dia em que presenciou o avô abater um carneiro. A lâmina
coruscante, gasta no fio, deslizou no pescoço do animal com a perícia do
hábito. Gotas brilhantes se dispersaram para todos os lados antes de a
aorta despejar as últimas no caldeirão de ferro fundido, então
o animal, finalmente, ficou inerte. Algumas delas pousaram no
seu peito e rosto, fazendo-o estremecer ao contato com o sangue quente. A avó
se apressou em fazer desaparecer a palidez estupidificada do seu rosto,
retirando-o delicadamente do quintal, o ajudou a se lavar.
Confuso pelo choque da cena submeteu-se sem protestos àquela
ternura antiquada, sem atentar para o incômodo áspero da esponja ensaboada
devassando as intimidades do seu corpo de dez anos. Agora, ele compreendia o
esforço dela para lhe apagar dos pensamentos o pequeno terror doméstico,
inventando casos engraçados, um falatório enganado das notícias dos jornais
velhos, recolhidos por ele da barbearia uma vez por semana para revenda, que
ela o fazia ler depois do sono da tarde, quando então as portas e janelas da
casa eram abertas, e as moscas retomavam seus zunidos na claridade.
Analfabeta, as notícias nunca chegavam a ter real
importância para alimentação das galinhas, a limpeza da casa, a colheita na
horta, o preparo das refeições módicas, para missa dos domingos, no pouco
diálogo que cultivava com o marido, na severidade da vistoria inócua dos nossos cadernos, em como fazia parecerem ricos os lençóis
emendados de sacos de farinha alvejados a força, até que não restasse nenhum
sinal azul ou vermelho da identificação do moinho de trigo. As notícias não
mudavam o que ela precisava fazer diariamente.
Em duas ocasiões do ano, no meio e no final, nossos guarda-roupas
eram renovados, ele e Félix recebiam três calções e três camisas, e
eu, três vestidos de fazenda que o avô trazia do centro da cidade, e um
par de sandálias, cada um, juntamente com os víveres: carne seca, farinha,
feijão, banha, sal, arroz, açúcar e sabão.
Foi assim que Jorge viu Feliciano pela
primeira vez, descarregando a carroça que fabricara na sua oficina, enquanto o
cavalo alugado resfolegava com sede. A mulher que o
trazia nos braços aproximou-se da frente da casa de duas águas e houve uma
conversa alterada. Depois disso, a tristeza da avó e o rosto atormentado
do avô. Ele estava olhando para sua família desconhecida, seu primeiro
discernimento infantil.
***
O cão robusto, de íris cor de caramelo, olhou
bem dentro dos olhos de Jorge e se esquivou assustado por alguém que
frustrou seu avanço astuto sobre a lata de lixo do quintal. Enquanto Jorge,
distraído, jogava dentro de um saco as laranjas que a avó o mandara apanhar.
A mulher que o havia trazido entrou pela porta dos
fundos, na cozinha onde a avó escolhia feijão sobre a mesa de pau-rosa marcada
de cicatrizes e queimaduras dos fundos das panelas. O menino ressonava em seu
ombro. As mechas de cabelo negro, escorrido, pregadas na testa e na nuca pelo suor, os bracinhos caídos ao lado do corpo de um jeito que deixavam as palmas
das mãos voltadas para frente, e a boca minúscula semiaberta. A avó se levantou
vagarosamente com os olhos fixos na criança e permitiu que a mulher a
beijasse no rosto. O assunto da conversa, retomado após longos trechos de
silêncio findou em uma pausa maior. Quando ela partiu, no final da tarde,
deixou o corpo de Jorge aniquilado por um abraço, que ele não sabia, ansiava
mais frequência, algumas notas sobre a mesa, e o nosso irmão. À noite, Jorge foi
se esconder na marcenaria, a fim de fugir dos gritos injuriados do avô. Dos
três netos de Feliciano e Matilde, o do meio era o que mais se parecia
com ele e talvez por isso, depois de excedida e acalmada a fúria, o menino
dormiu entre os dois até que o berço ficou pronto.
O cão tinha sido um prêmio de apostas em rinhas de galo.
Olavo escancarava suas preferências pela avó. Quando não estava roendo coisas
ou atazanando a vida das galinhas a seguia por todos os lugares. O tio Orlando
fizera questão que os meninos o chamassem assim, em homenagem ao seu patrão,
dono de uma extensa gleba produtora de cana-de-açúcar. Descasado, de tanto que
se envolveu em aventuras extraconjugais, não tinha filhos. Os traços mais
associáveis de sua aparência eram o cheiro de aguardente e tabaco, e as rugas
precoces nos cantos dos olhos, que independentemente de qualquer emoção que lhe
viajasse na alma, davam sempre a impressão de sorrirem.
Aos sábados, depois do trabalho e a menos que
chovesse, cumpria o compromisso quase religioso para com as pescarias, nas
quais levava Jorge, ensinando-lhe o manejo da vara de caniço, os segredos
das iscas, do varejo, e os tipos de anzóis. Naquelas horas, entre
um saramunete e uma sardinha, ele era o filho emprestado da irmã,
sobre a qual todos pareciam encerrar um silêncio irredutível, a não ser quando
das suas aparições sem aviso, inadvertidamente, acompanhadas de tensão.
No dique natural tocado na superfície pela preamar,
ouvira pela primeira vez o nome da nossa mãe, citado em uma conversa entre o
tio e o avô: Ester. Era assim que se chamava a mulher que rescendia a patchuli cabelos negros lisos, olhos enevoados de um infortúnio
sem nome. A mulher que o beijava, o cingia com tanta força, como se assim
pudesse fazê-lo parte dela novamente, mas nunca, nunca ficava tempo suficiente
para dissolver seus medos, saber suas conquistas, repreendê-lo ou
acarinhá-lo à noite, antes de dormir. Em sua lembrança, se acentuavam as costas
dela mais do que propriamente o rosto. Era a última parte do seu corpo que via,
sempre a partir tão sumariamente em cada vez que se encontravam.
Naquele dia, Vênus já brilhava única ao lado da lua
minguante e ele não fisgou nada, apenas, siris oportunistas. O tio e o
avô tiveram sorte, pegaram três peixes de bom tamanho, os menores foram desvencilhados
dos anzóis e devolvidos ao mar. A travessia de volta na preamar foi feita com
água na altura da cintura, e o tio o levou escanchado nos ombros.
Apanhados por uma correnteza, de repente Jorge se
viu submerso. Uma gigantesca massa de água rolou por sua cabeça, entrando pelas
narinas e boca. O tio o suspendeu por um dos braços, esperou que aliviasse os
engasgos. Na areia, o vento soprando do norte o envolveu gélido e ele
estremeceu, mais pelas associações que sua mente fazia atabalhoadamente da conversa do que
pelo frio, e ambos o faziam doer muito.
***
Eu fui registrada, apropriadamente, levando-se em consideração
o dia em que me encontraram na porta da frente da casa. Todos voltavam
caminhando da Igreja depois de assistirem a missa vespertina de Natal. Jorge
contou-me anos mais tarde, e muito antes de eu vê-lo sumir na estrada de terra
serenada no alvorecer, que o tio Orlando decidiu chamar de Natália a menina que
dormia envolvida em uma manta cerzida com retalhos estampados de pequenas
estrelas coloridas. Com Olavo alerta ao meu lado, como a velar-me o sono,
como se me conhecesse. Sob a luz amarela da lâmpada incandescente instalada na
cumeeira do beiral do telhado baixo, a avó examinou-me as feições. Exalou
profundamente o suspiro de um pressentimento confirmado e me estendeu para o
marido. Ele não fez menção de tomar-me. Destrancou a parte de cima da
porta e correu o ferrolho interno da parte de baixo com um misto de
resignação e enfado, sem nenhuma palavra. O tio o ajudou a improvisar, com
restos de madeira da marcenaria, uma cama no quarto de Jorge, onde, dessa noite
em diante Félix dormiria, enquanto eu assumiria seu lugar no quarto de Matilde
e Feliciano.
O jantar especial de Natal foi servido a meia-noite.
Jorge sentou-se a mesa sentindo aversão pelo carneiro esparramado em pedaços
dentro da travessa de cerâmica, regado de seu próprio suco gorduroso.
No ano seguinte se inaugurou para ele uma espécie de
geografia da sua condição. Éramos pobres, da quadragésima nona geração da
família de miseráveis, semi escravos dos semideuses do ouro branco, apesar já
irem longe, no passado, os tempos auspiciosos da exploração danosa e lucrativa
da terra cuja herança é a verossimilhança das relações senhoriais dos
engenhos-banguê. Essas gerações apareciam, reproduziam e morriam na montoeira
de casas entre as canas e o mar de pesca artesanal, no mais pleno ostracismo, e
fariam tudo de novo nas gerações subsequentes.
Uma boca a mais a necessitar alimento, extorquiu uma
das coisas que Jorge mais apreciava nesse mundo: depois das aulas, andar à toa
junto com Félix e Olavo, invadindo propriedades cercadas de arame farpado, para
do alto de uma das várias colinas nuas depois da colheita da cana, olhar a
cidadezinha de casas feias, cujo exemplo de fealdade ele estabeleceu da comparação
entre sua moradia grosseira e a do patrão.
O trabalho nas cocheiras da casa da fazenda, que começava
às cinco horas da manhã, lhe rendia um terço do salário de um adulto. Em dia de
pagamento, saia do trabalho diretamente para casa e entregava o dinheiro à avó
sem faltar um único centavo. Ela não dizia nada nessas situações. Recolhia o
dinheiro de sobre a mesa, e como num ritual, apanhava das prateleiras de
três níveis, cujo último, sustentava uma miniatura da Virgem, o bule de ágata,
destampava, soltava as notas dentro, e lhe devolvia as moedas. Só depois ele ia
para a escola. Em um desses dias, ele e o irmão se deliciavam com um sorvete de
uma bola, em casquinho de biscoito, que ele pagava com orgulho diante dos
outros meninos. Por querer, o garoto chamado Beto, fez com que Félix
deixasse cair o sorvete no chão. Aí se formou a confusão. Jorge e Beto rolaram
pela rua, distribuindo-se socos e ponta pés ao som da algazarra da
torcida dos outros meninos.
Sua primeira briga na escola lhe proporcionou um
olho roxo, joelhos e cotovelos lanhados e uma observação no caderno, em
tinta vermelha, solicitando o comparecimento de um dos responsáveis por ele à
diretoria da escola. Pela primeira e última vez em suas vidas o avô lhe bateu.
Enquanto o cinto ia desenhado lesões em suas costas, nádegas e pernas, a urina
escorrendo incontinenti lhe provocou mais constrangimento do que os gritos
irreprimíveis de dor. “Filho meu não briga na rua!”.
A frase lhe causou, paradoxalmente, um pouco
mais de amor por aquele homem rude de mãos grandes, marcadas de cortes das
foices na lida da cana, de poucas palavras e incapaz de uma amabilidade.
Suas costas ardiam, seus braços abertos em cruz, queimavam.
Precisava se levantar a tempo de apanhar o caminhão para a fazenda, se não
teria que ir a pé. A avó também perdeu a hora, ao que percebia. Não
ouvia os barulhos peculiares da cozinha, e parecia que até o galo do
quintal esqueceu-se de cantar.
***
Tônia vinha descendo a rua estreita com casas de
muros baixos, pintadas de todas as cores, para assistir, como ele, as aulas do
turno da tarde. Àquela hora, o sol alto fazia tudo tremer em brumas de mormaço.
Ela sentou-se ao seu lado, no meio-fio, na pouca sombra de uma mirrada
castanhola de folhas caducas, perguntando-lhe sobre os machucados. Era a primeira vez que lhe
dirigia a palavra. As meninas das séries mais adiantadas não tinham o hábito de
conversar com os garotos como ele, de uma série inferior, ainda mais ela,
diferenciada dos demais alunos por ser filha do homem de confiança do velho
Coronel, fazendeiro de grandes posses, mas que nunca ostentou em toda a sua
vida, um uniforme militar, e ninguém lhe batia continências, antes,
lhe tomavam a benção.
Tímido no início da conversa, ele desatou a falar
sobre o motivo da briga, a inveja e a malícia de Beto, e de como suportou com
coragem o castigo infligido pelo pai. Na medida em que o interesse dela crescia
e para mantê-la mais um pouco ao seu lado, sentindo o cheiro de alfazema,
vendo seus cabelos revoltos caindo nos olhos, jogados pela brisa tão
ligeira que mal levantava do chão as folhas alaranjadas da castanhola, falou de
Olavo, o cão, e das pescarias aos sábados com o tio.
Ao toque da cigarra, Jorge e Tônia entraram lado a
lado no pequeno pátio de terra escaldada da escola municipal.
A voz esganiçada da professora de matemática, as paredes
pintadas até a metade em azul quase negro, meio fúnebre, tatuadas de diversos
nomes conhecidos e desconhecidos, alguns palavrões, as bancas tortas manchadas,
enfileiradas alinhadas diante do quadro cheio de contas, não penetraram a sua
atenção em nenhum momento daquele dia. Ele estava repleto de Tônia. A menina
mais velha que ele espreitava na hora da entrada, do recreio e da saída. A menina que
jamais o olhara duas vezes, agora, no intervalo das aulas, dividia o lanche com ele e Félix, uma guloseima com a qual eles não podiam dar-se ao luxo de
contar diariamente e por isso, às vezes, perdiam boa parte do tempo de recreio
na fila para a merenda. Engoliam a sopa, ou leite ou mingau, afobados, de pé,
para terem tempo de conseguir vaga no jogo de futebol, com a bola
feita de panos e uma velha meia. As barras, gravetos fincados na areia, e não tinha goleiro.
Naquele dia, a brincadeira perdeu a prioridade. Os
dois permaneceram sentados no calçamento que revestia o corredor aberto para o
pátio e fechado do outro lado pelas paredes das salas de aula contíguas, sob o
alpendre, enquanto Félix jogava sem o parceiro.
Um amor ingênuo surgiu. Tônia lhe punha as mais
doces expectativas nas rotinas. Na verdade, ansiava pelo momento de guardar
baldes e escovas e atravessar a porteira da fazenda correndo para, em um só
fôlego, chegar ao abrigo de varas coberto de palha na estrada da fazenda, de
onde ia de carona para a escola e lá chegava afogueado, ainda com o odor das
cocheiras na pele. Trancava-se no banheiro, lavava apressadamente o tronco e
vestia o uniforme; calção azul e camisa branca com botões. Então, voltava
para esperá-la. Depois do primeiro beijo, trocado no susto, quando a rua
ficou deserta em um rápido momento após a entrada dos alunos, ele
passou a dormir sonhando com um esconderijo ensolarado, uma campina de
grama macia, e Tônia.
***
Jorge tinha Félix por testemunha e cúmplice daquele encantamento
juvenil inalienável, e a mim como confidente de cada minuto roubado às
obrigações para se apropriarem de emoções novas, nascidas do próprio novo a
transbordar nas pequenas aventuras inventadas. Uma dessas aventuras marcou sobremaneira
nossas infâncias. Um desafio. Aconteceu depois de uma história contada por tio
Orlando durante uma pescaria no feriado do Dia da Independência.
A fogueira acesa para assar os peixes flamejava enquanto a noite acendia
lentamente a lua cheia de trás do mar. A inspiração da aguardente e da lua
deixou Orlando mais falante e dramático do que era seu costume. Contou sobre um
homem grande, de aparência assustadora, com uma cicatriz quase fechando o
diâmetro da garganta e um nariz enorme e torto. Habitante, a muito tempo atrás,
da velha choupana abandonada em um pedaço de terra acidentada nos limites da
cidade. Pouco tempo depois de sua chegada, pequenos animais começaram a aparecer
trucidados nas propriedades ao redor, em uma quantidade tão grande que a
autoridade policial precisou ser acionada. Surgiram descrições de uma criatura
malévola, com grandes presas e garras, do porte de um homem. A criatura vestida
de trapos desaparecia na escuridão carregando suas vítimas, indefesas diante de
tal força mortífera. Os homens da região faziam campana noite após noite no
intuito de capturar a fera, sem sucesso algum. Então, atinaram que o
desconhecido da choupana nunca participava das atividades
da comunidade Não era visto em nada que dissesse respeito ao
cotidiano da pequena cidade. Quando uma criança desapareceu nas mesmas
condições dos animais todos se enredaram em uma comovente histeria.
O homem estranho passou imediatamente de suspeito a culpado. Depois de vários
depoimentos confirmatórios de sua descrição após os assassinatos, o povo decidiu
fazer justiça, invadiu a propriedade em uma noite assim, de lua cheia. Enforcaram o homem em uma árvore, enterraram o corpo atrás da choupana e
salgaram a terra para que nela nada mais viesse a crescer.
A história não parou ali. A parte mais sinistra dela estava ainda por
vir. Os nossos olhos não despregaram do tio Orlando durante a breve pausa na
qual ele ajeitou as achas da fogueira.
Quando retomou a narrativa não havia sinais da leve embriaguez que o
acompanhara durante toda a primeira parte da história. Contou que enquanto
aqueles fatos se desenrolavam nos limites da cidade, o pai de Feliciano atirou
e matou uma onça parda quanto montava guarda no engenho do Velho Coronel. A
pele do felino foi exibida como troféu na única praça da cidade. A dúvida
carcomeu cada dia da paz novamente adquirida. Consensualmente, os moradores
decidiram que, por via das dúvidas, era melhor dar um destino cristão ao corpo
do homem estranho, contudo, a abertura da sepultura revelou ninguém. O
corpo sumira. Desapareceu como se nunca houvesse estado lá. Nada. Nenhum
resquício. Aliviados, pensaram que o homem podia ter sobrevivido ao
enforcamento e fugido, o que os eximia de um crime. O alívio durou pouco, até o
dia em que uma tríade de ladrões de carga recorreu à polícia para relatar a
perseguição de um homem horrendo e ameaçador, que tinha a marca de um corte na
garganta e infernizava a vida na choupana que eles tomaram posse para
descansar. Os ladrões passaram a morar na cadeia, pois que já vinham sendo
investigados pela polícia, e aquele pedaço de terra, estigmatizado pelas aparições do homem estranho se transformou em tabu para os moradores da cidade.
Vez ou outra, uma pessoa desavisada caia na armadilha sobrenatural e corria a
desfiar um rosário de horrores aumentados e retocados pela cidade. Diversas
versões sobre a história do homem estranho atravessavam mais de um século.
O avô Feliciano advertiu Orlando a que não ficasse enchendo as nossas
cabeças com aquele assunto um tanto tarde demais, o imaginário de Jorge, Félix
e Tônia já se havia contaminado da curiosidade por aquele
lugar proibido. Pela vontade de se tornarem portadores de uma grande
aventura a ser contada.
Na escola, a lenda ressurgiu com força, alimentada por eles, e um pequeno
grupo de incursão à preferia da cidade foi organizado. Beto, o mais cético
entre todos se incluiu de última hora, ele desdenhava daquelas histórias, mas
não perderia a oportunidade de caçoar dos colegas quando percebessem a grande
idiotice da empreitada.
Assim, em uma tarde de tempo incerto, ora respingada de chuva ora
penetrada de uma claridade branda por feixes de sol entre nuvens pesadas e
baixas, eles partiram em duas bicicletas, uma que levava Jorge e Tônia e outra,
Félix e Beto, rumo à choupana do homem estranho.
O casebre sem janelas e uma só porta se erguia sombrio no meio da
capoeira. O que tinha sido, em algum tempo, uma árvore projetava seus galhos
despidos em todas as direções, como a se defender de malfeitores. A visão dessa
paisagem árida e sombria, e as lembranças das histórias provocaram temor até em
Beto. Foi neste momento que o inexplicável se deu. Eles viram, flutuando por
sobre o chão, na encosta do morro atrás da choupana, um homem de estatura
descomunal, vestido de farrapos. Tônia foi a primeira a gritar, sentindo os
pelos dos braços e nuca se eriçarem. Jorge a tomou pela mão e os quatro
deflagraram uma corrida, cegos pelo medo. De repente, Tônia estacou. Félix não
estava mais com eles. Havia um buraco no chão com profundidade de mais ou menos
dois metros, cavado provavelmente para um poço. Era lá que Félix estava
desfalecido pela queda e pelo pavor. Suas tentativas desesperadas de
alcançá-lo, seus gritos para que acordasse foram inúteis.
Beto pedalou como um louco de volta até a cidade onde, passado o estupor,
conseguiu contar coerentemente ao pai, o que aconteceu. De imediato a notícia
chegou às casas de Feliciano e Tônia.
O risco de morte de Félix pôs um fim definitivo às suas carreiras de
aventureiros, mas por outro lado, os aproximou de uma forma que só um segredo
acima da capacidade de entendimento dos demais faria. Mesmo quando o avô, na
tentativa de redimir um pouco a culpa do tio Orlando, levou Jorge ao cemitério
e lhe apresentou um túmulo de pedras cuja cruz trazia a inscrição: “DESCONHECIDO”,
e afirmou estar enterrado ali o homem estranho, mesmo argumentando que o homem
fora enterrado às escondidas pelo padre da época dos incidentes que originaram
toda aquela confusão, Jorge optou por calar sobre o mistério, que de certa
forma, não invalidava nem era menos verdadeiro do que o dele, Félix, Tônia e
Beto. Para que assim permanecesse, como algo pré-fabricado na imaginação, eles
jamais voltaram a comentar sobre a aparição fora do grupo.
Agora, quando o tempo parece estacionado, a
fogueira, a choupana, o túmulo, as faces pétreas do homem estranho, as ironias
dos meus irmãos e dos amigos acerca de seus comportamentos durante o episódio,
ao relembrarem a aventura, fundem-se em um turbilhão de cenas que eu não
consigo mais delinear, pois que me parecem desmesuradas e desalinhadas da
precisão com a qual Jorge as compartilhou comigo.
***
Uma grande sensação de perda experimentada por ele
decorreu da conclusão dos estudos de Tônia na escola municipal. Naquela fase,
os jovens tinham duas escolhas: acomodarem-se em subempregos ou continuarem os
estudos em outra cidade. A primeira alternativa estava fora da cogitação dos
pais de Tônia. Os recursos que possuíam lhes permitiam sustentar a menina em
uma escola particular de nível razoável na capital, e estava decidido que assim seria.
Na festa de
encerramento do ano, promovida pela diretoria da escola, Tônia já lhe parecia
distante. Falando às amigas dos seus planos para o futuro na capital de modo
desprendido. Os olhos brilhantes, inquietos, mas sempre a buscá-lo e
encontrá-lo incomodado entre Félix e Beto.
As férias, desfrutadas apenas meio período foram, contra todas as suas expectativas, pobres de acontecimentos extraordinários, a não ser por uma descoberta tão poderosa quanto impossível de ser dividida com o irmão e o amigo. Uma dimensão nova que ele e Tônia se deram em um dos últimos dias das férias, na oficina de carpintaria de Feliciano, através do beijo mais profundo e também mais doce do que qualquer outro trocado às pressas, escondido de olhos alheios, na rua da escola. Do abraço mais meigo e nu, de corpo inteiro. O fato de não conhecerem o fim daquele labirinto de sensações não os perturbou, em verdade, não teve a menor importância. Aquele momento de despedida jamais desapareceria de sua memória enquanto existisse. As impressões desse dia persistiram a tomá-lo de assalto com sua cristalinidade em instantes que surgiriam ininteligíveis para logo se perderem, tocadas de um prazer singular intrínseco que, ele sabia, vinha da presença de Tônia em sua imaginação.
As férias, desfrutadas apenas meio período foram, contra todas as suas expectativas, pobres de acontecimentos extraordinários, a não ser por uma descoberta tão poderosa quanto impossível de ser dividida com o irmão e o amigo. Uma dimensão nova que ele e Tônia se deram em um dos últimos dias das férias, na oficina de carpintaria de Feliciano, através do beijo mais profundo e também mais doce do que qualquer outro trocado às pressas, escondido de olhos alheios, na rua da escola. Do abraço mais meigo e nu, de corpo inteiro. O fato de não conhecerem o fim daquele labirinto de sensações não os perturbou, em verdade, não teve a menor importância. Aquele momento de despedida jamais desapareceria de sua memória enquanto existisse. As impressões desse dia persistiram a tomá-lo de assalto com sua cristalinidade em instantes que surgiriam ininteligíveis para logo se perderem, tocadas de um prazer singular intrínseco que, ele sabia, vinha da presença de Tônia em sua imaginação.
***
Quando ele deparou com a infelicidade ela estava
totalmente despojada dos valores pueris de suas privações, meramente porque
a denominação para estas não alcançava a verdade dos dias em que Feliciano, sem
colheita, sem trabalho, na entre safra da cana, sentava-se a uma das mesas do
boteco que reunia homens em igual situação, a espera de alguém das fazendas para
contratar seus serviços. E nas raras ocasiões em que isto acontecia, a
oportunidade ficava para os mais jovens, capazes de maior produtividade em
menor quantidade de horas. A seleção levava em consideração, ainda, suas
escolhas políticas. Era restritiva aos capatazes a contratação de trabalhadores
contrários aos partidos políticos dos patrões. No meio do dia Feliciano voltava
para casa, para um prato com farofa de abóbora e carne seca, e por ele dava
graças no devir da cana quando em outros dias nos eram permitidas refeições
menos frugais. Ao encontrar sua particular infelicidade, ela acumulava a
tristeza íntegra de nosso avô e da nossa avó, a odiosidade refreada de Orlando,
e foi ficando desmedida de revolta.
***
O homem chegou
à noite, acompanhado de dois outros homens. Jorge o reconheceu como sendo o
patrão de Orlando, o neto do Velho Coronel. Feliciano recomendou que Matilde
permanecesse onde estava quando ela fez menção de recolher as cadeiras da
calçada e entrar conosco. Ele intuía que a presença daquele homem em nossa
casa, apesar de há muito tempo ele não nos incomodar, não era um bom sinal.
Aquela tensão, a arrogância e desprezo de Olavo não passaram despercebidas a
Jorge, mas o avô recusou também sua presença na conversa. A decisão de ir à
busca do tio, ele tomou sozinho, sem dizer nada a avó.
Orlando entrou na sala e ficou de pé, em silêncio,
avaliando as intimidações sutis proferidas contra a sua família.
Era evidente que o herdeiro do Coronel se preocupava
com o bem estar dos que desfrutavam da sua proteção. Indagou se eles estavam
bem instalados naquela casa arrendada nas terras de sua propriedade, se
não era o caso, já que a família crescera, de se mudarem para uma mais
ampla, com uma diferença de preço justa, claro. Perguntou sobre Ester com certa
malícia, dando a entender aos homens que o acompanhavam, as intimidades que
tivera com ela. Ah, sim! Ela trabalhava na capital, fazendo coisas incríveis
para outros homens de sorte como ele. Ester era uma Deusa. Inesquecível.
Qualquer dia ele os levaria para conhecê-la.
Não, ele não viera até ali para poupar Feliciano a vergonha. Precisava aviltá-lo, reduzi-lo aquém do nada para assim ter a certeza
de que, Jorge, o filho bastardo, não seria empecilho em sua candidatura a um
cargo político. Sua família não tinha máculas visíveis na reputação e tudo o
que precisasse ser feito para que as coisas continuassem assim, seria feito.
O punho cerrado ao lado do corpo, imóvel, Orlando assistia
a cena de profunda humilhação sentindo-se impotente. Olavo encerrou a
visita, convidando-os a participar das mobilizações em seu comitê eleitoral.
Então, Jorge sentiu que era a hora de cobrar
explicações sobre a visita daquele homem tão parecido com ele. Sobre toda
aquela comoção. Aquele medo. Aos dezessete anos não era mais um menino. Se as
respostas não fossem dadas, as buscaria diretamente de Olavo. A ameaça surtiu
efeito. Orlando o convenceu a ir até a sua casa onde forneceu cada peça ausente
do quebra-cabeça dele e dos irmãos, aceitos assim porque lhe diziam que assim
era, mesmo sem a presença dos elos naturais que ligam irmãos: um pai e uma
mãe. Nunca sua família soube das insinuações que os outros meninos faziam
acerca da sua origem e da dos seus irmãos. Eles nunca souberam o quanto se
sentia grande na sua incapacidade de dividir tanta mágoa da condição que
suspeitava, e tão minúsculo diante dela.
Com a idade de Jorge, Ester possuía uma beleza infrequente,
morena, cabelos e olhos negros, traços delicados, herança dos colonizadores
europeus que a miscigenação não conseguiu eliminar completamente da família.
Muitas vezes, Orlando precisou pôr a correr os rapazes que a assediavam, uns
porque julgava escroques, outros dos quais sentia ciúmes. Venerava a irmã gêmea
sem parcimônia. Mas, seus cuidados não foram eficientes contra tudo. A infâmia do
clã do Coronel não tinha limites e isto eles descobriram quando ele e Ester,
concluídos os estudos na estrutura educacional possível da cidade, conseguiram
emprego na fazenda.
Olavo lhes revelou o caráter cínico de imediato.
Suas investidas deixavam Ester acuada, a ponto de um dia, não suportando mais,
abandonar o trabalho sem fornecer explicações, a não ser para Orlando, que não
hesitou em cobrar providências do pai do outro. Foi então que a estratégia de
Olavo mudou, desculpou-se, tornou-se cortês, sedutor, desta forma conseguindo
atrair Ester para onde ele queria, e reconquistada a confiança, esbanjou
gentileza, auxiliou-a na contabilidade dos negócios da família, convidou-os
para as festas da fazenda, e por fim, pediu-a em namoro, uma, duas, três vezes.
Quando ela, encantada com um modo de vida que os meus avós jamais poderiam
proporcionar, aceitou, mais por este motivo do que por paixão ou amor, e o pedido
foi repetido formalmente para Feliciano.
A gravidez de Ester aos dezesseis anos encerrou o
namoro. Olavo jurou, diante do pai, de Feliciano e de Orlando, por tudo o que é
mais sagrado, que nunca se deitou com ela, então, aquele filho não podia ser
seu. Ele não se casaria com uma criatura desfrutável que se deitava com
qualquer pária.
Foi só uma questão de tempo e a máscara desafivelou.
A covardia, a hipocrisia com que aquela família tratou o caso precedeu a máxima
vergonha e desventura de Feliciano e Matilde. Não havia sentido em Ester
continuar no emprego nem na cidade. Abalada, sem chão, fechou-se em
casa por vários dias, depois, sem a sombra de Orlando, voltou à fazenda. O pai
de Olavo, mais velho dos quatro filhos legítimos do Coronel, ofereceu-lhe
uma quantia em dinheiro para que resolvesse o problema da melhor maneira, sua
palavra de que manteria Orlando no emprego, e seus pais na casa arrendada,
depois de obter a dela de que o assunto se encerrava com aquele acordo.
Então, um dia, ela simplesmente partiu. Retornou depois de quatro anos trazendo
Jorge e mais duas vezes, de dois em dois anos, trazendo Félix, eu em seguida, e
não regressou mais.
***
O sol já chamuscava o horizonte enquanto Orlando arrematava
o drama da nossa mãe. Retirou da carteira uma fotografia, na qual ambos
sorridentes se abraçavam em celebração da primeira comunhão, e entregou a
Jorge. Naquela noite, meu irmão, o menino das pescarias, explorador audacioso
do sobrenatural, das traquinagens na chuva, aprendiz de tratador de cavalos,
desembarcou em seu primeiro limbo.
Quem era ele, afinal? Ninguém por ele mesmo. Não eram
seus pais quem o referenciavam, não era por intermédio deles que se
identificava entre seus iguais, ao mesmo tempo em que não podia ser aquilatado
e tampouco execrado por este motivo, por aquela coletividade de ética
combalida, pois ele sim estava acima dela, como atuante inerte, produto do
pecado incipiente, no qual a cana era a moeda à qual os homens de
poder acrescentavam ágios no desempenho de suas hierarquias, vaidades e
lascívias. Um homem precisaria ter um espírito de formidável inocência para
tolerar essa descoberta da qual acabara de se apropriar, uma brandura
impraticável para não receber com estranheza e revolta o sofrimento que lhe
trazia essa circunstância de sua origem, ainda mais não fosse, porque ela
eclipsava o padrão de família.
Mas, Jorge ainda não era esse homem. Era o menino precoce
a quem os avós maternos ensinaram que abrir os olhos de manhãzinha para uma
vida dura de sol a sol representava a aceitação do ônus de abri-los para fazer
o que precisava ser feito, pois se há um julgamento, suas atitudes determinam
suas condenações, e a dos miseráveis é bem sucinta.
O amor do nosso avô era demonstrado de maneira rude,
em que sobressaia a prática de uma conduta moral dissociada de uma lógica
verbal, não por mesquinhez no uso da palavra, mas porque seu vocabulário era
precário à teorias. Feliciano abstraía da sua própria formação que só se
aprende a ser pessoa de valor, sendo.
Matilde, o oásis na seca manifestação de sentimentos
do avô. O rosto sempre imperturbável fosse quais fossem as tristezas ou contentamentos
que a assaltassem, somente os olhos, doces, eram caminhos para os seus
pensamentos, se estendo em ato contínuo às mãos, que ela fazia pousarem na cabeça dos
netos, prendendo-a para um beijo, como a selar um decreto de afeição contra a
dor. Por este gesto, iniciava as curas de ferimentos físicos e emocionais até
enquanto os netos não ultrapassaram sua altura, quando isso aconteceu o carinho
rareou para a relevância das dores. Mas, desta vez, os ombros muito vergados,
não ergueu os olhos do fogão à lenha, aceso na impossibilidade do uso do
gás. Apontou o lugar onde ele deveria se sentar à mesa, inspirando lentamente,
disposta a recordar um passado ao qual não deveria voltar nunca e de fato,
acalentava a esperança que tal concessão do destino fosse negada, acostumando-se a não
pensar sobre ele em suas derivações. Sendo as urgências de um dia as mesmas do
dia seguinte, essa irredutibilidade de suas condições, em sua concepção, se
justificava como fim. Ela, que fora ensinada para um comportamento no qual
a honra feminina não admitia vieses, temeu e chegou a intuir dentro do coração
que a nossa mãe desejou a morte diante de toda aquela vergonha como um auxílio.
Sem nenhuma alternativa a oferecer, Matilde rezava à Virgem Maria e se
desesperava trancada em si mesma.
Antes de Jorge deixar a cozinha enfumaçada para o trabalho,
solitária do restante da família na hora em que rotineiramente o café da manhã
era servido, permeava sua alma a certeza de que a revolta da avó era a
mesma, apenas, muito mais antiga, e por nenhum outro motivo mais honesto ele
agora estava ali. Afinal, encontrou o seu enigma, absolutamente determinado por
preceitos que deixavam às orações nada para atender.
***
De setembro a fevereiro o sol se punha mais tardiamente. A luz derreada alcançava os veios abertos nos canaviais, ficava estática entre as amplas cortinas verdes e a atmosfera repartida, depurada e, embutindo porções de cor amarelo-dourado nas folhas agudas da cana, refratava-se com a gentileza que tem os pássaros no céu cheio de azul a mudar com o sol. Ao bucólico fenômeno óptico sucedia os correlatos panoramas de desolação em preto e cinzas. Terra preta coberta de cinzas, colmos tingidos de preto, homens, mulheres e crianças amputando os colmos, virando cinzas, virando cana, revirando a miséria calculada em toneladas, remunerada em ninharias. Sobretudo, o ciclo anual da cana adubava-se de fome e no verão ela reduzia seu tamanho sem, contudo, suprimir a debilidade ardilosa, a velhice prematura, sentenciadoras do tempo de vida útil do cortador de cana. Em seis meses de cada ano, os seus dias se tornavam mais compridos e suas vidas proporcionalmente mais breves.
Na estação chuvosa os ventos do Atlântico perpetram um balé sereno aos canaviais. À noite, à sombra das luas, descansam em movimento, se insurgindo da terra, expelindo seus nós, rangendo folhas no interlúdio entre o suor dos cortadores e a moenda.
Em alta hora da noite, vigiada apenas pelos bichos da escuridão, Jorge e Beto iniciaram a ignição da cana do Coronel. A partir de quatro pontos, a queimada em círculo, do exterior para o centro, deixou sem salvação pequenos animais da plantação ainda jovem, tangendo-os cada vez mais para o interior da armadilha incandescente, no dia seguinte, corpos amanhecidos que ninguém lamentaria, e a cana não se prestaria mais a combustível ou açúcar, nem ao menos para a mais travosa das aguardentes. Na fazenda do Coronel, o balé extemporâneo foi de chamas, o resto fez o vento.
Eu acreditava que se contrai a qualidade de bom ou mau das tendências que as pessoas instigam. Certas situações atribuem ao seu contexto uma dualidade distinta para cada entendimento, nesse sentido, um segredo compartilhado só é elemento de ligação enquanto resguarda o pacto mais enorme do que suas razões, porém não eram dessas considerações que se valia o ímpeto de justiça de Beto e Jorge para o ataque ao patrimônio do pai deste último, mas da cumplicidade acima do bem e do mal. Na praia, para onde foram livrar-se dos fumos da queimada, indagado sobre os motivos, Jorge apenas respondeu: “Eles me devem.”
Uma dívida que teve a paga do desagravo convertida em benefício quando, na tentativa de salvar a safra, trabalhadores foram contratados para fazer o corte antecipado da cana, inclusive Feliciano. Naquele ano, aos seus dias de inverno foram decrescidos dias que o verão já roubava como alternativa garantida, porém ele pode comprar uma cabra.
***
Jorge partiu em um domingo de manhãzinha, quando a claridade dos primeiros raios de sol invadindo as rachas das duas janelas da sala, revelavam aerossóis em agitação na casa às escuras, onde todos dormiam alheios a que ele nos deixava um pequeno milagre futuro e um bilhete no qual dizia que ia a procura da nossa mãe. E depois, não tinha certeza.
A friagem trazia o cheiro de mato orvalhado, folhas mortas e mosto, atravessando a trama fina da minha camisola desengonçada. Antes de desparecer junto com a estrada, ele se voltou uma vez para despachar Olavo, me acenou e ajeitou o saco de viajem no ombro, como se oscilasse na vontade.
Por um longo tempo, tivemos notícias somente através das cartas que chegavam duas vezes por semana, a maioria delas endereçadas a mim. E por um tempo que dura até agora, de todas as lembranças dele, estas são as que me tomam mais inteiramente os sentidos, não necessitando o intermédio da imaginação. As lembranças posteriores vêm com a impressão de eu me ver arrastada para as catarses que ele incluía nas descrições em pormenores das suas tristezas e conquistas, algumas delas, ocultadas nas leituras que eu fazia para Feliciano e Matilde, em quem o abatimento deu mostras de ceder a partir da certeza de que não era a eles que Jorge rejeitava como filho ingrato, mas ao seu passado, e era justo que não desejasse estar tão perto dele, muito embora o levasse consigo aonde fosse.
***
Nessa terra de homens duros, a necessidade do pão de todo dia penhorava suas almas à esmola do trabalho, os poupava do espancamento como cães nas ruas, ainda que a fome fosse justificativa para o ato de roubar. Cada homem e mulher tinham seu dono com poderes extensivos à família. Cada homem e mulher com idade bastante tinha o direito de defender seu dono a troco de pretensa ideologia política que todos acreditavam possuírem alguma. Um trabalho mal remunerado honradamente para si ou um parente; um hectare bom para uma lavoura; algum material de construção. Nas eleições, a pobreza acendia euforia, esperança, e a benevolência enganosa, avara, do muito que faltava.
Os seus donos os identificavam social e politicamente; “Fulano é de Sicrano”. E todos eles acreditavam piamente que Sicrano faria por Fulano, depois de eleito, o que não faria por si primeiro, garantir abastança às suas próximas gerações. O Sicrano de um era sempre mais bondoso e íntegro do que o Sicrano de outro, e tal crença nessa generosidade e honestidade provocavam rixas de morte nos currais eleitorais agrilhoados à miséria, da qual muitos perdulários se pensavam isentos por estarem do lado certo quando esse lado era o que detinha as melhores oportunidades de oprimir e enriquecer. Os tentáculos das dinastias, transferidas dos Sicranos para seus familiares ou sócios partidários alcançavam a capital, rica e paupérrima em proporções definitivamente desiguais. Um mínimo de muito ricos, um máximo de muito pobres, e um meio disputado como cabo de guerra, no qual os grandes negócios estavam, mas onde a diversidade dos padrões de vida obstruía a supremacia de uma ou outra dinastia política, e não se podia contar com a lealdade de uma boca esfomeada, uma doença de difícil tratamento ou a necessidade de uma moradia.
Essa terra jamais havia se separado do germe de sua origem subserviente e mansa, embora tenha, no seu passado, a custo da exploração da sua gente, ajudado a prover o luxo e o desperdício nas Capitais Federais, mais do que qualquer outra terra, da qual fazia parte a parte, como um membro inconveniente e sem uso que, no entanto, não podia ser extirpado, pois tinha lá sua importância sendo o que é, e cuja desfiguração não assumia proeminência econômica no todo do país, a não ser em época de eleições majoritárias, mas era apenas isto. Os fardos coletivos, nunca sentidos por nunca o terem percebido, tal o excesso de necessidades desiguais, faziam Sicranos e Fulanos cativos no mesmo estorvo para com regiões mais prósperas do sul e sudeste, de necessidades menos diversas, nas quais a competição se mantém da competição, articulando os mesmos resultados sociais por vias de inconsequências éticas e políticas.
Essa terra é um círculo no interior de outros maiores, no qual o papel pressuposto de quem tem menos é perder para quem conseguiu juntar mais, num contexto em que a ignorância se oferece fartamente, no intuito de que as tradições políticas se mantenham acima de qualquer ideologização, que se emergida, logo recebe a atenção insidiosa dos que mantém o poder, seja religioso, econômico, ou político, e qualquer desses que se dispusesse a libertar, o fazia dos outros donos para si. Toda ousadia era marginalizada.
O torrão cujo trecho mais confortável da via crucis de quem parte é o retorno, não trouxe o meu irmão de volta.
***
Jorge admirou na espreita a aparência obscurecida da
mãe através de toda a rua. Convenceu-se de que as tormentas mais ameaçadoras
são as que vibram tranquilas na superfície do indivíduo e não as que se lhe
arrogam, como se pudessem realmente compreender, e por essas percepções, os
caminhos de uma remissão se tornassem menos trágicos ou banais. Ele a conhecia
por ele, por suas latências iguais. Teve certeza que a estanqueidade de
todos os tipos de amores em sua parafernália romântica, como coisa inventada e
enfeitada para a eternidade da alma não intervém no amor excepcionalmente
concebido no instinto cruciante de amar. Descobriu que a amava e sentia raiva,
sem outras escolhas, e, era desesperadoramente tarde para laços jamais atados,
tardança com o predicado natural da primeira infância, esta que as mães embalam
do lado esquerdo do corpo por imposição misteriosa, porque no escuro do útero
as batidas ritmadas do coração são os primeiros e únicos rumores que um ser
humano conhece, e fora dele tem sua primitiva identificação, como se o chamassem
de um nome que ainda não é capaz de entender e não obstante é familiar. Então,
Jorge teve pudor em chamá-la de mãe, e quando ela se voltou para atender ao
chamado pelo seu nome, o reconheceu com temores de dúvida. Depois de
infinitésimos de segundos, no qual o passado e o futuro, obscuros, fundiram-se,
ela o convidou para os seus braços como se a felicidade estivesse muito
próxima de ser um perdão enquanto persistisse o espanto do repentino encontro.
Na rua de pedras portuguesas e flores aprisionadas em desenhos encardidos de sujeira, à sombra da marquise do prédio mal afamado, onde ele a esperou desde muito cedo, os braços dela, estendidos, os desamparou. Eram estranhos repartindo a perfeição dos desgastes influenciadores das ocasiões de se amar, e por não saber exatamente o que representava aqueles sentimentos ele não se moveu. Não fora obter nada. Nada ele poderia querer da vida de uma mulher que para uns fora a prostituta do alívio rápido. E aliviados, eles desapareciam sem deixar rastros. Para outros, a outra. Uma fraude romântica com alguma permanência, que atenuava pieguices sentimentais prorrogadas na hipocrisia e ódio de cada qual. Para ela, alguns tinham sido menos do que animais polidos, outros, poetas perdidos em desejos, mágoas, autocomiseração, piedade pelas dores do mundo, e deslumbre embaçado. Também passaram. Na pouca idade de Ester as mazelas suas e de todos eram tão imensas. Dela, ninguém saberia por onde começar a querer. Nas palavras objetivas, nos gestos seguros, no rosto pronto para o desfio que encobria suas fragilidades, deixava evidente: o que havia feito para sobreviver não a definia, embora ainda a enquadrasse.
Na rua de pedras portuguesas e flores aprisionadas em desenhos encardidos de sujeira, à sombra da marquise do prédio mal afamado, onde ele a esperou desde muito cedo, os braços dela, estendidos, os desamparou. Eram estranhos repartindo a perfeição dos desgastes influenciadores das ocasiões de se amar, e por não saber exatamente o que representava aqueles sentimentos ele não se moveu. Não fora obter nada. Nada ele poderia querer da vida de uma mulher que para uns fora a prostituta do alívio rápido. E aliviados, eles desapareciam sem deixar rastros. Para outros, a outra. Uma fraude romântica com alguma permanência, que atenuava pieguices sentimentais prorrogadas na hipocrisia e ódio de cada qual. Para ela, alguns tinham sido menos do que animais polidos, outros, poetas perdidos em desejos, mágoas, autocomiseração, piedade pelas dores do mundo, e deslumbre embaçado. Também passaram. Na pouca idade de Ester as mazelas suas e de todos eram tão imensas. Dela, ninguém saberia por onde começar a querer. Nas palavras objetivas, nos gestos seguros, no rosto pronto para o desfio que encobria suas fragilidades, deixava evidente: o que havia feito para sobreviver não a definia, embora ainda a enquadrasse.
Ele ficou em companhia de nossa mãe e da atriz de
teatro com quem ela dividia o apartamento por mais seis dias, nos quais não
foram feitos planos. Reportou-lhe os fatos recentes da família, vendo os olhos
dela brilharem mais intensamente a menção dos nossos nomes, meu e de Félix.
Incluiu a vingança contra o pai, que não foi a favor de Ester, mas dele
próprio, Jorge, motivo que o levou a abandonar a cidade, para que os avós e o
tio Orlando não sofressem represálias. Ester riu, mas estava triste. Nossos
desdobramentos eram intervalos cegos nas nossas existências. Tão inversos
e convergentes.
O dia 18 de Dezembro de 1964 permaneceu entre nós
com jeito de emblema. Através de um armador que devia favores à nossa mãe,
Jorge entrou em um navio cargueiro que viera buscar açúcar e desceria para o
sudeste. Ele trabalhou para pagar a viagem, sem recusar nenhuma tarefa. Ester
lhe deu dinheiro e recomendações de quanto mais ficasse distante de
prostitutas, jogadores e ladrões, maior a possibilidade de a viagem ser bem
sucedida. E por derradeiro, no porto, sobre os paralelepípedos azulados da rua
cortada por trilhos de bondes aposentados, o abraço invariável de despedida que
se não apaziguava o passado o fazia subjetivamente como futuro. Perdendo-o em
mais uma ocasião, dessa vez para um orbe maior, Ester não o abandonou. Sendo a
solidez fugidia, a constância não é um momento vulgar. O que nos
repercutiu foi essa absorção, a partir da primeira longa carta que Jorge
nos enviou.
***
O terço de contas, pendido no lírio burilado no
espelho da cama de Matilde e Feliciano, imitação grosseira e barata do estilo
Luís XV, já não brilha sob as espessas camadas da seda das aranhas. O colchão
de palha, cuidadosamente escondido sob um lençol sem absolutamente uma única
ruga, fazia um barulho moído quando eu, revoltada, protestava contra o pente de
osso que a avó arrastava nos meus cabelos com a ajuda do óleo de coco. Uma
pendenga diária antes de eu ir para a escola ou para a Igreja. Inúmeras vezes a lembrança do cheiro do óleo me trouxe para dentro deste quarto estreito e
calorento. O mosquiteiro azul-natier desbotado, decorado de furos e ciscos,
descendo de uma ripa do teto, sobre a cama. O guarda-roupa escuro de três
portas, todas tortas, que entre os panos, guardava o baú do meu avô, uma caixa
de madeira revestida de linóleo, de tampa abaulada, que ele comprou como
prestamista de um mascate da capital, na qual retinha o passado. Dinheiro fora de
circulação, convocações para missas de sétimo dia e os santinhos dos finados,
recortes de jornais com as fotografias de homens da política e correspondências,
arranjadas em maços amarrados por fitinhas verdes e amarelas que ganhávamos na
escola quando participávamos dos desfiles do Dia da Independência.
Na foto do santinho, o rosto vigoroso e pálido do Velho
Coronel aparecia destacado pelo linho negro do paletó, entre
bem desenhadas suíças brancas.
Mesmo antes da extrema-unção, os portões da sede da
fazenda foram abertos para os que ele costumava chamar de ‘meu povo’ em
discursos coloquiais no âmbito de entendimento dos seus eleitores.
Pés descalços, galochas e os sapatos de verniz da
elite rural desfilaram em romaria sobre as passadeiras e tapetes italianos das
amplas salas.
Félix ficou sentado em uma das várias namoradeiras espalhadas
pela casa enquanto esperava a próxima rodada de refrescos e olhava,
agastado pelo sinistro das caras e palavras funéreas, o choro talentoso
das carpideiras e ouvia os murmúrios graves de homens que não tinham conseguido
proteger suas filhas virgens do poder do Velho Coronel sobre todas as criaturas
de suas terras. Suas deferências ao momento extremo que glorificava o mito
tinham também o refinamento do escárnio complementando a farsa da comiseração.
Velas e incensos eram queimados de manhã à noite, e
com os olhos ardendo, eu e a avó acompanhamos um pequeno séquito trabalhador
que retorcia os chapéus, pelo corredor, à penumbra dos aposentos do Coronel. Seu
estado era quase de humanidade, purificada na agonia. Nada não era tão íntimo daquele
homem indo à prenhez de sua morte quanto esse supremo instante, e, nele alguns
o amaram para depois esquecê-lo a ponto de não correlacionar o nome em
placas de rua a imagem vendida nas campanhas eleitorais.
O velho padecia agora da santidade de todo homem com
a mesma idade de sua carne, quando ela não é mais capaz de respostas aos
entusiasmos e tragédias da vida. Quando não há mais nada a ser incitado a não
ser a magnanimidade do Deus que o desafiou com retóricas inventadas e
expropriadas do homem para revelá-Lo.
Cumpridas as delicadezas sociais, Matilde nos
levou diretamente para casa e à noite, depois de retirar a mesa do jantar,
contou a Feliciano sobre nossa visita a casa da fazenda. Ele não foi ao enterro
do Coronel dois dias depois. O único respeito que conseguia demonstrar à
família do morto era com a sua imperceptível ausência.
Mais tarde, eu voltaria a cruzar, por minha conta, a
alameda de pedras ladeada de altas palmeiras imperiais, a fim de uma entrevista
com a avó paterna de Jorge. Eu tentaria arranhar a suscetibilidade dela para
algumas vírgulas, pontos finais e reticências que foram secando em hiatos na
voz das cartas.
***
Por baixo
das águas do Atlântico armas trazidas pelos fomentadores do golpe de 1964
asseguravam mais uma das várias etapas da Guerra Fria no Continente. Em praias
desertas ao sul do porto, embarcações, algumas sem bandeiras,
e tripulações tensas, eram vistas aqui e ali, disfarçando não se tratar de
uma esquadra. Duas coisas preocupavam o Comandante do navio: os piratas e
presenciar o que não era para ser visto.
O mundo
vivia intenso transe político-ideológico polarizado entre comunismo e
capitalismo sobre os quais apenas ouvíamos falar nos sermões do Padre, para
quem dar ouvidos aos pregadores das Ligas Camponesas era aceitar preleções do
próprio Diabo. Que toda pobreza fosse compassivamente franciscana, santificada,
e assim sendo, não existia na Terra.
“Não
olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a nossa Igreja”.
Verbalizar a pobreza como forma de reivindicação de melhoria das condições de vida era se apoderar de outro tipo de autoflagelo. Era proibido afirmar que ela existia, mais ainda, necessariamente para os que precisavam dela, e os vendilhões de ombros estrelados, como tio Orlando insistia em denominar os que estavam entre o poder superior oculto e a instabilidade do Governo, cuidavam para que tais premissas fracassassem em seus significados, violentamente, em prol da prosperidade da Colônia em adolescência.
Alheio a
tudo, Jorge se limitava a cumprir com as tarefas e seguir à risca as
orientações dadas à tripulação. O mundo ainda lhe parecia um balão displicente.
Quando
tomou o ônibus do porto para a capital financeira do país tinha dinheiro
no bolso para manter-se por duas semanas, nas quais teria que conseguir
trabalho e moradia. Para preparar o seu destino naquele mundaréu opaco. Os
bloqueios do Exército na estrada tornavam o percurso mais demorado do
que era na verdade.
Na tarde
impregnada de fumaça, o rio que cortava a cidade cheirava a garapa da cana
quando se decompunha. O rio se decompunha sob os dias insuficientes de sol. Sob
as noites sem estrelas. Pouco a pouco. Suas águas seguiam turvas pela metrópole.
Como gente. Limpo no início e limpo no término, entretanto, no meio é onde se
exala como proposta de existência, e era tão menos importante do que ar
sequestrado pela fumaça.
O enorme
número de desvalidos o espantou, e ele olhou cada rosto agradável e hostil que
também o olhou, mendigos, malandros, e prostitutas. Trabalhadores saindo de
lojas e escritórios, chegando dos bairros industriais, indo para casa dormir,
acordar, trabalhar e fazer tudo de novo. O progresso tinha mais variedade de
pobreza.
A cidade
o aterrorizou e marginalizou. Antes tinha um dono agora não tinha nada além da
massacrante impressão de ter perdido a si mesmo. Pertencer a alguém eliminava a
competição, a luta por espaço, por dinheiro, por ar. Desejou a antiga miséria
de volta, havia mais dignidade nela, lhe era pessoal. Esta outra, desordenada e
disputada como sobejos o recusava. Ele não queria ser parte dela tanto quanto
ela não o queria.
A partir
desse período, pequenas quantias passaram a chegar regularmente através dos
Correios, depositadas por Ester. Muitas vezes, esse dinheiro socorria o mês,
impedindo o oco grande demais do armário da cozinha de Matilde, e já o
amor-próprio de Feliciano se imobilizava e envelhecia junto com ele.
***
Os canteiros feitos de dois pneus velhos, meio
encravados no terreiro em frente da casa, um de cada lado da entrada,
transbordam trevos delicados, uma novidade do esoterismo, comprada na feira, na
época em que Matilde plantava o jardim de flores silvestres e ervas cujas
folhas significavam amor, fé e esperança, fazia o divertimento de Félix na
busca da quarta folha, a sorte.
Sentada no batente da porta com o sol a declinar na
noite, negando-se às andorinhas que principiavam a procurar o aconchego das
copas amareladas das árvores ao longo da estrada, vejo nitidamente os pulsos
magros e as mãos de Félix, sujas de esterco seco, empurrando as raízes da planta para dentro da terra dos pneus, como quem planta sorte, sob a supervisão de
Feliciano.
Éramos nós dois também, que impacientes,
catávamos e combinávamos retraços de tecido para que Matilde costurasse em sua lubrificada
e taquilálica máquina de costura, as roupas dos mamulengos das nossas
brincadeiras como quem costura amor. Na qual ela costurou as roupas das nossas Crismas e Natais, como quem costura fé. E todas as outras para a escola e o trabalho, como quem costura esperança.
São Paulo, 17 de Janeiro de 1965.
Querida Natália,
Espero que esta encontre todos bem.
Já morro de
saudades da nossa terra. Das conversas na calçada, à noite. Das lorotas do tio,
do arroz com carne seca da mãe, até da intransigência de pai e das bobices de
Olavo. Félix está bem? Ele conseguiu passar de ano na escola? Antes de eu sair
daí ele estava fazendo corpo mole para mostrar o boletim. Sinto muitas saudades
de você.
Agora, moro em
uma hospedaria no centro da cidade. O dono é um árabe matreiro em questões de
negócios que me fez pagar toda a hospedagem adiantada, em um andar com banheiro
coletivo e mal cheiroso. Divido o quarto com um representante comercial, um
estudante de universidade, um velho nobre decadente do café, segundo ele, e um
boêmio comunista de muitos amigos e mulheres.
Deve haver
alguma beleza natural aqui, mas não descobri ainda.
Procuro
trabalho, mas todos me cobram certificado de alistamento militar, terei que
fazê-lo, enquanto isso, o árabe me dá alguns trocados para que eu mantenha a
hospedaria limpa, apesar das traças, baratas e ratos.
Juro que
pensei em voltar para casa. Pensei até em ir à uma rádio, na qual
segundo informações do nobre decadente do café, Seu Adolfo, uma artista popular
ajuda a devolver pessoas desgarradas de volta às suas casas. Mas não fui.
Pensarei sobre isto se for rejeitado no serviço militar. Nele eu teria casa e comida,
por enquanto. E quem sabe, com o tempo, uma promoção me faça ganhar mais?
Agora,
sinto-me como aquele menino ajudante do cego da praça da igreja. Lembra? Aquele
que era espancado e xingado pelo cego, e mesmo sabendo que ele não poderia
alcançá-lo se se escondesse ou corresse, permanecia parado com sua lealdade
burra, a receber safanões e palavrões. Félix disse que deu vontade de pegar as
esmolas, jogar longe e fazê-lo ir buscar. E tio Orlando, disse: “Eles se
entendem. Amanhã os verá de novo aqui, dividindo o mesmo pão que o diabo
amassou, mas que só tiveram para amassar pela falsa caridade dos que incentivam
o comodismo e a fraqueza”.
São poucas as
alternativas, mas hei de conseguir retribuir o esforço do avô e da avó por nós.
Sinto saudades
da mãe, também, não aquela que eu sentia por não tê-la, mas a de ter sido sem
ter de fato. No fundo, acho que são essas saudades que me fazem amá-la, mas
acima de tudo, ela me conhece e aceita sem que me tenha.
Assim
que puder vá vê-la, e convença Félix a fazer o mesmo. Muitos anos se
perderam, e neles o que havia de definhar já definhou, inclusive, qualquer
maledicência e vergonha que não foram nossas.
Abrace todos. Todos me fazem falta.
Beijos do irmão que te adora,
Jorge.
São Paulo, 8 de Janeiro de 1966.
Querida Irmã,
Espero que esta encontre todos bem. Por mim, já
nem sei. Sou obrigado a ir a lugares onde ensinam a extrair a dor nas pessoas.
Nesta semana
vi o Juca, aquele estudante de engenharia com quem eu dividia o quarto na
pensão, chorando e babando, sentado sobre as próprias fezes. Colocado
estrategicamente numa cela com duas moças e um rapaz, encapuzados. Contava o
que tinham feito a ele, e eu quase podia ver o horror e o medo que eram aquelas
pessoas por baixo dos capuzes.
Reconhecendo-me,
cuspiu no meu uniforme com tanta força, mas nem de perto se igualava
a força do seu ódio. Eu nunca lhe fiz nada. Ele não é exatamente um amigo
do qual eu pudesse matar a amizade para retomar uma indiferença que
existisse por não conhecê-lo. Nós somente habitávamos o mesmo teto
fedorento ao lado de corpos de baratas e traças secas.
Eu achava que
as únicas guerras que ele travava era com o sono das ressacas, as
cuecas sujas que se escondiam no armário, o rádio frio da sala de espera,
no qual batia para acender as válvulas quando queria escutar as
notícias, e com os ratos que esmigalhavam seus livros caros. Lutas de
inércia. Eu o subestimei, ele tem uma causa.
Não havia nada
que eu pudesse ter feito por ele sem correr perigo na carne, os
do espírito eu não contabilizo mais.
A época é de
temermos e odiarmos o que representamos uns para os outros. O nosso mal maior
levado aos extremos por espécies diferentes de liberdade, tal fosse
preciso doer, e, fazer doer por elas. Não há como dizer qual restará, no
entanto, como posso gostar de sentir esse respeito por mim mesmo que vem do
desprezo, do ódio e do medo alheio, como se os meus estivessem mortos?
Na caserna, no
rancho, nas latrinas, nos treinamentos, ensinam-me a ser igual a todos. Nas
ruas, me obrigam ao que eu não desconfiava de mim.
Juca foi
dedurado pelo Nobre Decadente do Café. Portava cartilhas subversivas que
ensinavam terrorismo. Pelos bons préstimos à nação o Nobre recebeu dinheiro da
caixinha de empresários e comerciantes do bairro.
Ninguém está
seguro, minha irmã. E por isso, peço que todos fiquem longe de contendas
políticas e ideológicas, mas especialmente, converse com tio Orlando. Um
deslize pode nos custar muito mais que uma palavra.
PS: Junto com esta, envio o vale postal.
Jorge.
***
A tarde ensolarada resplandecia tudo ao redor da
casa da fazenda, aumentando a amplitude brilhante dos verdes gramados que a
circundavam. Eu esperava algum trabalhador vir atender ao toque
persistente do sino de bronze, cuja corda eu puxava com uma mão insegura,
enquanto a outra agarrava os varões de ferro fundido que
terminavam pontiagudos, em latão oxidado pelo vento marinho. Agarrava-me
ao desejo de que a ousadia, mentalmente ensaiada, não me falhasse.
O homem velho, de rosto amarfanhado e curtido de
sol, veio caminhando lentamente com suas canelas secas, onde
as calças se enrolavam até a metade, e com um sorriso educado
faltando alguns dentes, estendeu a mão para receber o pedaço de papel no qual
eu me identificava e solicitava uma conversa particular com a avó de
Jorge.
Transcorridos mais de quarenta minutos do desaparecimento
do homem pelos fundos da casa, tempo em que, certamente, a avó de um dos
políticos mais ativos em favor da bancada ruralista no Congresso Nacional
se interrogava dos motivos e implicações do meu pedido, quando eu já pensava em
ir embora, o homem ressurgiu na alameda com seu passo lépido, me dando acesso
ao interior da casa onde entrei pela cozinha, na qual três trabalhadoras,
acostumadas ao tráfego de pobres de toda a sorte que iam pedir benefícios
políticos, não deram conta da minha passagem.
Ela estava de pé, ao lado da porta
do pequeno aposento bem iluminado, apesar do revestimento escuro de
lambri. Seu porte extraordinário ficava ainda mais impressionante no vestido
bege de corte reto e futurista. Então ela me olhou dos sapatos gastos e
empoeirados aos olhos, e a vontade que deu foi me desculpar e voltar sobre
os calcanhares, entretanto, certa amabilidade na voz bem modulada que
pediu para que eu me acomodasse numa das poltronas impregnadas do cheiro
de extratos franceses, me fez sustentar o olhar castanho claro, encimado por
uma cabeleira tingida de tinta importada. Vários retoques de laquê não
permitiam o escape de um fio sequer.
Tentei relembrar brevemente, apenas para que
reavivasse a memória, sobre as relações de minha família com a dela, foi quando
entendi que nada do que havia se passado desde a demissão de Orlando e Ester da
casa da fazenda era do seu conhecimento, em verdade, no período em que se deram
os fatos ela estava em uma de suas muitas viagens pela Europa. Embora
acreditasse que pouco pudesse intervir para o reconhecimento da paternidade de
Jorge, pois o falecido Velho Coronel não fazia distinção entre coisas de
família e coisas de política, a não ser quando as de família, e relacionamentos
escusos, dos quais alguns ela tinha conhecimento na vida do patriarca, fossem
ameaça ao patrimônio. Dona Maria Alice, que teve o casamento arranjado
em função de interesses comerciais, se acostumara a permitir que o Coronel
gerenciasse todos os aspectos de todos os negócios da família.
Havia surpresa comedida em cada uma das perguntas
que me fazia, como se encurralada pela nulidade dos anos dedicados a buscar
compensação para a falta de amor do marido nos supérfluos que ele lhe
proporcionava. Como se sentisse exigida por uma espécie, agora consciente,
de desleixo para com os laços de sangue.
Por último, lhe entreguei a mais recente carta de
Jorge e uma foto dele metido em um uniforme militar. Deixando a carta sobre a
mesinha de centro, ela foi até a grande janela aberta para o pomar
de tangerinas e ficou a contemplar o rosto bonito do meu irmão por vários
minutos, em silêncio. Não havia como negar a semelhança com o seu filho.
Antes mesmo de ler a linha final, numa
compreensão que me poupou argumentos obsequiosos, ela perguntou: - O que eu
posso fazer por vocês? - O que puder fazer para tirar Jorge do país.
Encontramo-nos dali a uma semana na missa de domingo,
ocasião em que a simplicidade elegante das suas roupas e o véu
delicado de renda regional a fazia parecer uma senhora comum. Nossos olhares se
cruzaram e ela, num sinal quase invisível com a cabeça, deixou claro
que mais do que me saudava, tinha uma saída para o grande problema que me
consumia.
O embrulho me foi entregue na saída. Félix, Matilde
e Feliciano conseguiram segurar a curiosidade até estarmos em casa, mas só por
não terem reconhecido a avó paterna de Jorge, em contrário, Feliciano me faria
devolver qualquer favor que cogitasse estar recebendo daquela família. E
eu precisava de tempo para fazê-lo compreender a gravidade do perigo que
Jorge corria. Agora, era o momento de falar, aliviada, sobre
o que eu escondia de algumas cartas dele.
***
São Paulo, 05 de Setembro de 1969.
Natália,
Esta é a
última carta que envio como cabo do Exército Brasileiro. Ainda posso fazer isto
com relativa confiança, depois não mais.
O pai de
Tônia se adiantou na viagem ao Rio de Janeiro, para onde ela será transferida.
Aqui é presa incomunicável. Contra ela pesam inúmeras acusações. Bem sei que a
maioria delas, suposições, por causa de sua participação na Aliança Libertadora
Nacional. O pobre homem parecia um molambo. Ainda que tivesse trazido um
advogado para representá-lo de nada adiantaria, quanto mais uma cartinha de
apresentação do patrão, cujo nome não teve nenhum significado para o Oficial de
Dia. Quero achar que foi melhor assim. Ele não suportaria ver o estado em que
Tônia se encontra como eu não suportei. Economizo os detalhes e efeitos
das sevicias sob as quais qualquer um confessa até o que não fez. As
atrocidades físicas e morais destroem crenças, no país, em Deus, nos homens.
Entes sãos viram animais pensantes, acuados pela fome de liberdade e desejo de
segurança, e a conclusão a que se chega é que as duas sujeitam. A justiça dos
homens, falácia paralela em campo de batalha de direitos individuais
assassinados.
Sofri por não
poder tranquilizá-lo, ao menos quanto às decisões que eu tinha tomado. Os
planos que tinha feito para tirá-la daqui. Mas, se tudo correr bem, a viagem
dele ao Rio será em vão.
Estou fazendo
uma escolha, minha irmã, pela primeira vez na vida. Se a errada, torço para que
o erro valha à pena. E que Tônia sobreviva para se lembrar de que um dia me
amou de modo tão genuíno quanto os sentimentos que tenho por ela e nunca me
abandonaram. Se não, inventarei algum que nos faça
justiça, não posso lançar mão de realizá-lo.
Nenhuma das
minhas cartas deverá ser respondida, de hoje até que eu avise. Amanhã serei um
desertor e estarei nas listas do Serviço Nacional de Informação.
Depositei tudo
o que me foi possível em vale postal. Peça desculpas ao avô e a avó.
Destrua
esta e todas as outras cartas que possam ser comprometedoras. E
não se atormente, pois de todo modo eu ficarei bem.
Abrace a todos.
Jorge.
***
O quarto
que eu ocupei agora me parece absurdamente pequeno. A alvenaria, pintada de
verde degenerado em matizes ocres das penetrações de água das chuvas na parede
do fundo, levou Feliciano instalar a cama de armação em ferro, que rangia,
entre a parede lateral e a porta. E assim, antes de ele vir apagar a lâmpada
incandescente na chave do bocal, às nove da noite, eu ficava a decifrar os
desenhos que se formavam ao redor da janela basculante, com alavanca que já
tinha sido mais funcional.
Como
foram lúdicas aquelas manchas. Lebres perfeitas se modificavam em borboletas e
bois chifrudos, peixes em leitões gordos, papoulas, lagartos, gafanhotos ou em
gente. Metamorfoses fluidas gravadas pelas chuvas.
Um
conhecido de Feliciano, que fazia o transporte de engradados com aguardente
três vezes por semana para a Capital levou a nossa mensagem para Ester, escrita
na prancheta portátil que eu usava para carregar os cadernos amarrados com
elásticos. Quando eu terminei, Félix, na impaciência de por palavras em minha
mão, já tinha respingado calda de doce de banana por quase todo o lençol.
Naquela noite o rigor na economia de energia elétrica foi quebrado, excepcionalmente,
como acontecia em casos de doença. Então, Félix foi ao quarto de Feliciano e
Matilde ler para eles o conteúdo da mensagem.
“Mãe, necessitamos tomar algumas decisões que implicam no destino de
Jorge. Por ora, basta saber que ele não está seguro. Existem muitos pontos que
precisam de orientação depois que conseguimos algum dinheiro com Dona Maria
Alice. Os avós e tio Orlando gostariam que a senhora viesse auxiliar a tomar
essas decisões. Mãe, nós temos urgência.”
Natália.
No dia
seguinte ela chegou pela porta dos fundos, por força do hábito que praticava
raramente. Eu e Félix só conseguíamos olhá-la dos nossos lugares na mesa.
Feliciano, vencida a névoa da catarata, ao se aproximar de Ester, simplesmente
abriu os braços para a filha, Matilde em seguida. Só então ela veio para nós
sem impor nada, nenhuma palavra ou carinho que pudesse parecer falso
ou premeditado. Terminado o jantar a avó se encarregou de colocá-la a par dos
motivos pelos quais a chamamos. No pacote que me foi entregue por Dona Maria Alice
havia uma considerável soma em dinheiro nacional e estrangeiro, o título de
posse da casa em que morávamos, um nome e um endereço em Marselha, na França. A
minha mãe era uma mulher de conversa rápida, sem nuances de rancor. Neste
quarto, conversamos baixinho até o sono vir, de madrugada.
***
Um diplomata norte americano fora sequestrado no
dia anterior à data da carta de Jorge. Tanto os sequestradores quanto os
presos políticos para os quais eles exigiam a libertação seriam caçados como
bichos pelo Regime. Ouvíramos a leitura do manifesto que exigia a soltura
dos presos em cadeia nacional de rádio. A voz do locutor me dava paúra. Havia
algum tempo, nada de bom vinha após essas interrupções na programação normal
das rádios. Embora as baixas do lado dos militares fossem incomparavelmente
menores as dos revolucionários, ficávamos apreensivos juntos, aqui, em frente
ao velho móvel recoberto de fórmica azul e branca, onde havia um rádio, diante
do qual Matilde rezava o terço na hora do Ângelus.
Eventualmente, Tio Orlando aparecia para filar o
jantar e depois de a Voz Do Brasil, as discussões políticas entre ele e
Feliciano eram inevitáveis. Se inflamado pela aguardente, parecia mais
subversivo e intolerante do que quando sóbrio. O consenso político entre eles era
tão inverossímil quanto o religioso. A trégua vinha no silêncio acomodado
lento, em espirais de fumaça de fumo envolvido em palha de milho, que tomava a
sala e se perdia pelas gretas das telhas inglesas.
Os apelos persistentes de Matilde, até então, o havia
mantido longe da Liga Camponesa. Mas, era evidente que a inércia diante da
opressão disfarçada o desafiava, e foi com diligência que juntamente com
Ester elaborou sua ida para São Paulo. Conquanto ele
soubesse que a profissão de Jorge de forma alguma se alinhava com seu ideal
político e existencial, ficou feliz em pensá-lo fora das Forças Armadas. A
ordem era uma ilusão.
A exorbitância do preço da passagem de avião era mínima
diante da urgência que havia. Orlando partiu imediatamente para a Capital
e de lá para São Paulo. Após cinco dias de buscas, ele foi encontrar Jorge e
Tônia escondidos na despensa da pensão do árabe. Tônia estava em estado
lastimável, pálida como que exangue, os cabelos cortados rente, ainda vestia as
roupas do dia em que foi presa.
O comunista boêmio recrutou militantes
do MR 8 para auxiliarem no resgate de Tônia em uma emboscada na qual
o grupo também simulou o rapto de Jorge. A mentira só vigorou vinte e
quatro horas, e então ele passou a ser procurado pela Polícia do Exército. Um dos
rapazes do grupo havia caído, e sob tortura, entregou os detalhes da operação.
O comunista fugira, alertado sobre a prisão do companheiro, o que não
evitou as batidas regulares dos policiais, que ao revistarem a despensa encontravam
pilhas de caixas e sacas, com ratos circulando entre elas, a perfeita
barreira entre a polícia e os fugitivos.
A hospedagem inusitada rendeu ao árabe quase todo o
dinheiro de Jorge, e como Tônia demorava a se recuperar, ele economizava para o
caso de ser preciso chamar um médico, pois procurar um serviço se saúde seria o
mesmo que se entregar. De noite, saía por pouco tempo em trajes civis,
retornava com sopa quente e fazia Tônia tomar até a última gota apesar dos
protestos, seu estômago tinha sido muito machucado. Jorge desconfiava de outros
tipos de tortura, sobretudo morais, havia uma hemorragia que só após
vários dias começava a dar sinais de recrudescimento. Eles não conversavam
sobre aquilo, era uma forma de não fazê-la reviver o terror. A falta de
dinheiro significava a falha nos planos de retornar com Tônia para casa, e os
tolhia.
A chegada de Orlando foi o triz
que desistira de aguardar. A angústia dividiu espaço em seu coração com a
saudade da família e da terra natal. Pasmou ao saber a origem do dinheiro que
lhe proporcionaria, e à Tônia, o exílio. Passaram-se três dias e ambos entraram
em um dos navios do armador amigo de Ester, que estava atracado no Porto de
Vitória.
Usando dos seus conhecimentos e influência, D. Maria
Alice conseguiu junto ao consulado francês no Brasil que a França os
aceitasse como exilados políticos, bastando apenas que eles conseguissem chegar
ao país. Depois de uma arriscada viagem noturna até o Espírito Santo, Orlando
se despediu de Jorge e Tônia, em dúvida se ela resistiria à viagem, já que havia
cogitado não ir em função do seu estado de saúde. Foi quando Jorge
afirmou não fazer sentido tudo o que tinham passado para,
simplesmente, sabotarem a liberdade daquele jeito. Ele ficaria também. Ela
cedeu. Não havia opção, e não desejava jamais ser a pessoa que colocou a vida
dele em perigo, já que a sua própria, no momento, estava avariada, viu pouca
diferença entre perdê-la aqui ou a caminho de outro país. Emocionalmente
agitada, esta foi única lógica que lhe restou. Assim, eles se foram.
***
Jules abriu a porta da pequena casa térrea e ajudou
Jorge a levar Tônia até o sofá, onde ela desabou sem cerimônia. Um vento gelado
de resto de inverno ficou lá fora na noite. Ele já os esperava. No dia seguinte, à tarde veio
uma médica dar assistência à Tônia, a partir de então seu estado físico começou
a melhorar. Jules passava os dias fora e eles ficavam em companhia de uma
diarista que lhes preparava as refeições sem disfarçar a curiosidade por suas
origens e sobre a terra do sol e dos coqueiros.
Marselha como toda a Europa, se recuperava da crise
provocada pelo fechamento do Canal de Suez e a consequente escassez de petróleo. Forçava sua prosperidade disposta em forma de anfiteatro, de frente ao Mediterrâneo. Os
estrangeiros pobres que iam buscar uma oportunidade de emprego na cidade, distribuíam-se
em sua maioria nas banlieues. Não era o
caso de Jules, cidadão franco-brasileiro, filho de uma brasileira de rica
fortuna em terras e empresas da cana. Essa brasileira chamava-se Maria Alice. E
isso explicava o fato de ele possuir boa expressão da língua portuguesa. Jules
tinha oito anos a menos que o pai de Jorge, e embora sua renda como
engenheiro lhe permitisse ir aonde quisesse, nunca visitou a terra da mãe.
Ele conhecia todas as histórias; a paixão profunda
de Maria Alice por seu pai, desaparecido numa incursão militar na África e dado como morto. Sua dor por não ter podido sepultá-lo.
Jorge teve percepção então, da vida da outra mulher que, oculta em
culpas e glórias, mudara a sua própria vida para bem longe, e lhe proporcionara o
segundo limbo.
Em três meses Jorge já possuía um emprego como assistente
administrativo na mesma empresa que Jules trabalhava, e Tônia estava quase
completamente recuperada, porém, com um diagnóstico precipitado de
esterilidade. A convivência os tornara íntimos em muitas situações além das
rodadas de pastis à noite, antes
do jantar que Tônia preparava e se punha a espera de Jorge e Jules.
Jorge não queria ver aquele encantamento nos olhos
de Tônia quando ouviam e viviam o modo de vida e a liberalidade francesa. Jules
era um homem sensual e charmoso em todas as atitudes. Um idealista, cujas
ironias comportavam um cinismo franco e bem humorado. Com o passar do
tempo, Jorge tentou convencer Tônia a alugarem um apartamento. Ela não impôs
barreiras, mas Jules, sim.
Aconteceu depois das comemorações pelo Dia da Queda
da Bastilha, alcoolizados, usaram o banheiro ao mesmo tempo. A mesma cama ao
mesmo tempo. Amaram-se ao mesmo tempo. A estranheza daquela situação não
incomodava Jorge, não ter desgostado o incomodava.
Mesmo quando Tônia conseguiu emprego, suas rotinas
afetivas se alternavam, se juntavam, mas não mudavam.
Neste ínterim, Orlando foi preso e
desapareceu para mais nunca. Então, Matilde se entregou. A vida em sua máquina
de costura silenciou. As galinhas foram ficando escassas até calarem o
terreiro. Os trevos amarelaram, feneceram. Feliciano ainda resistiu por mais um
ano, depois se foi em pleno gozo das capacidades mentais. Morreu por
inteiro. Eu o encontrei, no começo da noite, sereno como quem dormisse, no chão
da oficina de marcenaria, quando eu voltei das aulas do magistério.
Olavo, o cão, velho e maltratado pela ausência da dona, vigiava a porta
com olhos embaçados. Tamanha era sua tristeza que não se animou a
procurar entre as minhas coisas o embrulho da padaria contendo o bolo de trigo
confeitado de glacê. Pouco tempo depois, eu o sepultei também. Jorge ainda não
podia por os pés no país.
Félix corria a bater em todas as portas de
organizações de luta pelos direitos humanos sem sucesso, até que como eu fiz um
dia, foi dar nos portões da casa da fazenda de onde foi enxotado por um dos
capatazes do pai de Jorge, pois este já descobrira as crises de bondade de
Dona Maria Alice para com a família do filho bastardo muito antes de sua morte.
Contudo, não tentou anular a transação da mãe. Entrementes, sabia da fibra de
Ester. Naquela sociedade conservadora, tinha motivos para temer o
passado.
***
Marselha, França, 28 de Outubro de 1982.
Querida irmã,
Estaremos em
São Paulo no dia 10 de dezembro, no hotel San Raphael. Há um vale postal em seu
nome. Gostaria que mãe e Félix pudessem ir. Será preciso que o pai de Tônia
tenha conhecimento disto. Faça-me esse favor.
Saudade grande.
Jorge.
***
Um carro de bois retardado fazia gemer as rodas sobrecarregadas
de cana na estrada de terra iluminada fracamente por uma lua nova. Eu nem me
dera conta do adiantado da hora. Separei do baú de Feliciano o título de posse
da casa e guardei o terço de Matilde na bolsa. Eram estes os nossos espólios
materiais. A casa da nossa infância, que nunca foi nossa, voltaria ao seu dono
legítimo. Félix havia preparado junto com tabelião da cidade os termos de
devolução do imóvel, coisa que fizemos sem demora, Ester, Félix e eu.
Quando Olavo entrou na sala onde o aguardávamos, não
percebeu o leve tremor das pálpebras de Ester. E se alguma surpresa
teve ao ficar sabendo do motivo que nos levava até ele, não deixou
transparecer. Somente um brilho diferente ao se dirigir a ela indicava que
mesmo após tantos anos sua beleza e impertinência ainda o afetavam.
Ele sumiu pela porta do escritório e retornou
minutos depois. Trouxe um cheque com um valor que julgou ser um bom preço pelo
desembaraço de ter aquela pequena parte de suas terras reincorporada. Ester
sequer olhou para o cheque, nem lhe deu chance de fazer a pergunta que ia fazer
sobre Jorge. Era tarde para amenidades. Foi a última vez que o vimos sem ser
pela TV.
***
Jorge e Tônia se casaram num Fórum do Centro de São
Paulo em Março de 1984. Véronique, sua filhinha de três anos permaneceu nos
braços de Ester durante toda a cerimônia.
Jules voltou sozinho para Marselha, com seus lábios
pequenos e cheios, constantemente úmidos e brilhantes, com sua testa calva,
morena, vincada, os olhos negros e seu andar felino. Era um homem de
personalidade dominadora e extremamente consciente do poder
que possuía. E embora um rejeição sem motivo se estabelecesse em nossos
breves contatos, eu entendi Tônia. E ainda mais, a manobra de Jorge para não
perdê-la novamente.
Jorge e Jules continuaram tão amigos quanto dois homens que disputam a mesma mulher conseguem ser, e a distância auxiliava bastante.
Jorge e Jules continuaram tão amigos quanto dois homens que disputam a mesma mulher conseguem ser, e a distância auxiliava bastante.
Anistiado, o casal se estabeleceu em Paris. Sempre
que era possível, quando conseguiam conciliar todas as férias e economias,
eles nos visitavam em São Paulo. Véronique crescia com o charme e os traços de
Jules. Eu sabia que não havia ali nenhum acordo que não pudesse ter sido
feito.
***
Véronique diz:
O negócio da casa está
praticamente fechado. Papai ainda tem que resolver algumas coisas dos vistos.
Encerrar contas bancárias. Mamãe ainda tem que cuidar da demissão. Não haverá
retrocessos, dessa vez. Eles vão voltar.
Natália diz:
Você, não?
Véronique diz:
Não. Preciso terminar os estudos
e tenho o meu trabalho.
Natália diz:
Um namorado?
Véronique diz:
É...
Natália diz:
Pretendem morar juntos?
Véronique diz:
Não, tia. Vou alugar um kit net.
Ainda não tenho certeza sobre casar, me prender... Essas coisas.
Natália diz:
O que seus pais acham?
Véronique diz:
Eles ficaram chateados num
primeiro momento, mas sabem que a minha vida está aqui. Além do mais, se a
crise apertar muito, eu terei para onde ir sem que seja uma aventura.
Natália diz:
Quando eles chegam?
Véronique diz:
Até o final do ano. Agora, diz
que está feliz.
Natália diz:
Você sabe que sim. E olhando
direitinho o passado, Matilde costurou bem a fé.
Véronique diz:
Me fala sobre eles, um dia?
Natália diz:
Falo. Quando você vier, eu
conto...
Desde os vôos supersônicos o mundo não cabia tão bem numa cabeça de alfinete. Previsões e histórias acontecidas e acontecendo em um clic. E nós? Nós confluíamos.
Fim