domingo, 19 de junho de 2011

A Última Onda


É aquela que fere, que virá mais tranquila com a fome do povo, com pedaços da vida, como a dura semente que se prende no fogo de toda multidão. 
(José Ramalho Neto - 1981)



Ele chegava sempre, pontualmente, às 22:45h, a menos que precisasse dobrar o turno na fábrica. O cansaço marcava ainda mais os traços do seu rosto, sobretudo, as rugas verticais entre as sobrancelhas castanhas espessas, e as dos cantos dos lábios, retos de tão finos. Franzino, se movimentava com agilidade pela cozinha. Retirava da pequena mochila plástica a inseparável garrafa de café, lavava-a e depois destampava as panelas sobre o fogão, se o conteúdo o agradasse, revirava os olhos e se apressava para o banho, se não, deitava as tampas de volta nas panelas e entabulava assuntos corriqueiros do trabalho, até ir para o banheiro, de modo que só se sabia o que ele achava realmente do jantar através do seu humor. Em uma dessas noites do ano de 1976, ele chegou de outro jeito. As íris castanhas, muito claras, brilhavam feéricamente em órbitas avermelhadas, tornando-se verdes. A mochila com a garrafa de café ficou esquecida sobre a pia, enquanto ele contava a esposa, em voz muito baixa, o sequestro de um casal amigo da família. As luzes dos aposentos foram apagadas e todos se reuniram ao redor da chama de uma vela, como se o que fosse ser dito necessitasse unicamente desse acolhimento, em volta da mesa de madeira barata, pintada a tinta óleo de um azul de gosto questionável, semelhante ao fundo escolhido pelo pintor do quadro que ilustrava a Santa Ceia, pendurado e milimetricamente ajustado sobre um conjunto de rachaduras na parede pintada tantas vezes em diferentes cores que agora não só ela, mas todas as paredes da casa não tinham cor comparável.

Era uma época em que os ventos levavam muito longe, e às vezes nem tanto, as palavras. Tempos em que era necessário cuidar dos ventos e das palavras, sob o risco de se desaparecer como quem não teve nem terá história, e o medo, embalado pelo som de fuzis automáticos, era insone. Com pormenores, todos ficaram sabendo que o casal amigo fora denunciado juntamente com outras pessoas que se organizavam para exigir o pagamento de horas extras e reposição salarial. Já bem tarde, cada um foi dormir aspirando a fumaça de espirais repelentes de mosquitos que duravam o tempo bastante de se cair em sono profundo e as picadas não incomodarem mais.

Doze anos antes, os três filhos desse angustiado operário, regalavam-se com os muitos sanduíches de carne, trazidos da fábrica, onde foram servidos fartamente em celebração a um novo tempo, depois não mais. E embora o telejornal, exibido em aparelhos de marca japonesa, apregoasse a existência de um boi no pasto para cada cidadão, eles ainda não tinham visto os chifres dos seus, sequer um bife.

Todos os dias a TV dizia que o futuro seria generoso e todos os dias se aguardava a lâmina dilaceradora da perversidade incubada na onda retardada da industrialização do país e do cidadão. No dia em que ela chegou, ele reuniu a família e foi para o meio do povo na rua, como gente que pode toda a liberdade, mostrar aos filhos uma euforia diferente, incontida de expectativas, pois que apenas tê-las, mesmo cega dos olhos que se cabiam, já bastava, e se dignava a todos os exageros, como se quisesse deixar  as mentiras e o medo de ressaca, e a certezas fiadas em si mesma, sóbrias.

A lâmina viera tranquila, vagarosamente, ferindo as fomes, e nelas amola ainda os gumes durante o tempo em que ele pensa que se pudesse ter a rapidez para ver tudo, assistiria a todos nos trinta quilômetros por hora da velocidade da Terra, acelerando-se na quarta e última onda erguida, a mostrar o falso fundo, e tapar o mundo, uns ficando para trás, outros funcionando, acontecendo, ficando como os cocos verdes que rebentavam dos coqueiros tortos, plantados por ele há anos atrás de eternidade, aos quais não se pode prescindir de mutilar o corpo na busca da cristalinidade doce, e varar a carne para se provar o sabor.

Na idade em que quando se fecha os olhos não se sonha mais, acorrem as lembranças como recurso derradeiro do que se viu e realizou. Como se fosse fraco, ele fechou os olhos brilhantes em verde, e estendeu a mão a velha esposa que a tomou na sua, sob a mesma mesa de sessenta e cinco anos antes, vigiada diuturnamente por rachaduras e apóstolos, acomodou a testa na mão dela, sem que fosse uma bênção nem um perdão, e seu último pensamento, na casa em silêncio dos filhos, vagou para os coqueiros marcados com o nome de cada um deles há várias eternidades atrás de lembranças, quando uma brisa fria o fez descer da última das ondas, a sirene distante de uma fábrica soou seu epitáfio, então ele se foi, como quem pudesse ter sido grande.


Jeanne Chaves