quinta-feira, 2 de junho de 2011

Como Um Pão e Dois Vinténs




Existem expressões antigas que assumem certo requinte de metáfora. Eu não conseguia entender, por exemplo, o que a minha mãe queria dizer quando se referia à circunstância da morte de algum parente ou conhecido com a frase: “acabou-se como um pão e dois vinténs.” Era uma espécie de jargão que ela aprendeu com a minha avó e ilustrava de maneira rápida e eficiente no diálogo, os desaparecimentos anônimos, sem brilho, em que o legado, independentemente da ‘causa mortis’, eram as incertezas para a família, caso existisse, se não, expressava da mesma forma a efemeridade da vida do finado ou da finada em questão.

A expressão descortinava uma compreensão subjetiva, embora sustentada na observação da realidade próxima, dos seus fatores de inserção social.

Minha avó, de quem minha mãe tirara o aprendizado daquela frase, era religiosa ao extremo do rigor, analfabeta e demasiado fecunda, o que a impediria de participar do mercado de trabalho de sua época mesmo que existisse algum que assim pudesse ser chamado na cidade em que ela viveu sua infância, juventude e boa parte da maturidade. Assim, alguém que não merecesse o pejo da expressão, apesar de morto, era aquele que se saísse vitorioso das rumorosas lutas de classes, nunca admitidas de boa vontade pelos apaixonados defensores do capitalismo parasitário. Achavam que poderiam, um dia, parasitar também, esquecendo que quem nasce para ascaris nunca chega à cascavel, ao menos, não coletivamente.

As lutas agora são um murmúrio indistinto e agonizante, sufocado por confortáveis e ilusórias almofadas de economia globalizada em um mundo feliz. Um mundo escrito por profissionais de marketing, profissão ainda mais brilhante e importante do que as personalidades dos líderes das grandes nações. Os maiores ‘caras’ entre os 'caras', aqueles que fazem ser outra a teoria vendida na prática, auxiliados luxuosamente pelos gurus acionados por controle remoto, nesse tal mundo feliz que nos é vendido.

O que os moicanos sabiam, como se constante de sua identidade genética, os tupiniquins aprenderam por estímulos quase pavlovianos. As diversas classes (cidadãos trabalhadores, classe estudantil, aposentados) ‘involuiram’ para apenas duas: a dos cidadãos de primeira classe, e a dos cidadãos de segunda classe, que se alternam na roda da fortuna e das políticas públicas e econômicas sempre tão volúveis e inócuas. As nações, igualmente: nações de primeira classe e as outras, nas quais a regra número um de contenção das massas é “esconder o que seja ruim e faturar sobre o que seja considerado bom”, seguida pela regra número dois, “vender cianureto como se fosse coca-cola”.

Literalmente ao pé da letra, a qualificação de cidadãos em classes A, B, C, D... sugere um 'copy-plast' da hifenização de relatórios da Organização das Nações Unidas de avaliação de desempenho do crescimento de um país. Itens que satisfazem a economia globalizada e oferecem um fôlego sobressalente ao Grupo dos 20 menos 8.

Então, em um país no qual o número de mortes por assassinato chega a cinquenta mil por ano e o número de vítimas fatais do trânsito chega a trinta e sete mil por ano, como é o caso do Brasil, se alimenta, longamente, a idéia de que a expectativa de vida da população aumentou em função de uma melhor alimentação e mais investimentos em ações de atenção e assistência à saúde. Entrega-se, assim, a idéia de mão beijada aos gurus acionados por controle remoto, e os telespectadores acreditam piamente que vivem mais e melhor, e ainda, que o aumento da idade e do tempo de contribuição para o Instituto Nacional de Previdência Social é justo e se não for, não importa, eles sobreviverão às doenças crônicas adquiridas com a idade e as provenientes do trabalho, caso consigam cumprir ininterruptamente o tempo de serviço e de contribuição, superarão mais uma reforma previdenciária, que indica o contrário de crescimento econômico, para um mundo feliz em sua demência estática de ascaris.

Agora, sei que a profundidade da comparação da minha avó correlaciona a fragilidade da existência com o valor material da subsistência.

Os cidadãos de primeira classe simplesmente morrem, os de segunda classe se acabam com a rapidez do vintém trocado pelo pão e da fome que devora este. Depois, não há mais necessidade de pão nem vintém.

Mesmo analfabeta e pensionista do INSS, minha avó era uma filósofa sensível e perspicaz da realidade próxima.


Jeanne Chaves

Com agradecimentos a Cau Alexandre