domingo, 16 de janeiro de 2011

O Encontro



No dia 31 de Dezembro de 2199, ano que Maria Isabel, hesitante no espesso casaco de gabardine, os cabelos envoltos por uma echarpe presa ao pescoço pela gola, arrastava uma grande mala com rodinhas que protestavam e emperravam em todo momento, na plataforma encardida do terminal de trens, viu a jovem entrar no vagão, um vulto familiar onde ninguém lhe era conhecido, sentiu uma pontada no coração, e mais, uma estreiteza, semente dormente antes de respirar a terra. Um encarregado da companhia de trens veio auxiliar com a sua bagagem, depois, ela já se esquecia dos pensamentos que tinha antes daquela interrupção.

A paisagem avançava veloz ao crepúsculo. Cada animal, planta, seixo, serra, rua, praça, casa, placa, escritório, fábrica, ela colocara ali aos poucos, minuciosamente, e, mais tarde dispusera as pessoas, entretanto, anônimas, feito coisas silenciosas elaborando coisas de silêncio: tijolos erigindo planos, árvores oscilando sombras, serras subindo e descendo sem cansaço, casas de abrigo e desabrigo, pôs, ainda, um excesso de vida assegurando que a morte pode ser tudo menos sádica com a matéria desprovida do talento para a eternidade, tecendo com paciência aracnídea a partir da senilidade da juventude uma fissura por onde transportava os plasmas, ossos, carnes, o frescor do que não era coisa, para sentimentos arenosos de felicidade, encantamentos fenecendo, por isso forjou a fenda, para se suportar nessa viagem que o trem desagregaria cada peça dos seus dissabores e paixões, ignorâncias e certezas, de um lado e outro da fissura.

Que seja. Muito pouco tinha pré-definições de utilidade, sua mente estava branca, branda, preenchia-lhe o absoluto labor silencioso das coisas, gratidão na falta da necessidade de expulsar as pessoas ou determinar a qual lugar de suas ambigüidades e das delas pertenciam, sim, elas também tinham fendas idênticas e anômalas as suas por onde se encontravam. Agora, era perfeitamente o inteiro das coisas que a escolheram, igualmente, das escolhidas, as vozes dos vivos imaginários, reais em suas distâncias intangíveis, suas experiências de amor, de ódio, calavam-se em seus ouvidos claramente, ela estava por si, só.

Ela abriu levemente as pálpebras. Era preciso assistir ao espetáculo de suas duas meias existências às quais os sonhos conferiram acabamento, prolongando-as.

-A senhora ficaria mais confortável se reclinasse a poltrona.

Sugeriu a moça que lhe afligira os sentimentos antes de embarcar.

-Nós nos conhecemos?

-Seria impossível, eu ainda não nasci.

-É claro que nasceu, pois se estamos aqui conversando.

-Quero dizer: existo em todo lugar da senhora ao mesmo tempo em que a senhora não me criou, sou o que vem antes e depois do nada, então não serei até que tenha matéria.

-Eu estou conversando com um fantasma?

-Em verdade este diálogo nem está acontecendo.

Maria Isabel olhou em torno: jovens, velhos, crianças, adultos; distraídos, cansados e indiferentes, outros, em euforia contida resplandecendo apenas no brilho dos olhos.

-Nada está acontecendo? Essas pessoas, a viagem, coisas, não existem?

-Todos, tudo, são informações dentro da senhora, inclusive eu. Uns farão o que a senhora precisa fazer e outros, o que eu farei.

-O que fará?

-Seguirei com as informações.

Maria Isabel, cansada demais para achar significâncias na objetividade daquela moça dizendo não existir, fechou os olhos novamente encontrando o escuro alentador e definitivo.

Na manhã de 1º de Janeiro do ano de 2146, uma jovem em seu espesso casaco de gabardine, os cabelos envoltos por uma echarpe presa ao pescoço pela gola, desembarcou no terminal de trens...


Jeanne Chaves