segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Volto ao Tema: Generosidade



Em função da discussão acalorada e proveitosa surgida entre eu e a amiga Sara Carvalho, volto ao tema da generosidade. Não pretendo aqui, discutir a bondade como traço de caráter que se evidencia em uma relação mais íntima entre indivíduos de um mesmo grupo social, religioso, político, de trabalho, ou comunitário. Não. Vou escrever sobre a generosidade de Gaia, ou Géia ou Gê, entre outras denominações.

Neste intento, me reporto à "Hipótese de Gaia", uma proposição formulada no fim dos anos sessenta por James E. Lovelock, para explicar o fato de todos os seres vivos estarem interligados entre si e o ambiente físico. Então, a tese de que a Terra seria um organismo vivo estava proposta. Para Lovelock “a Terra precisa ser entendida e estudada como um sistema fisiológico fechado.” O nome Gaia, dado a teoria, é uma homenagem a deusa que representava a Terra na Mitologia Grega.

Impossível avaliar o quanto da moral machista e da religiosidade, e aqui, não confundamos religiosidade com espiritualidade, dos grandes cientistas, interfere na aceitação desta proposição por boa parte da comunidade científica.

Por quê? Porque Deus criou o homem e viu que era bom, e a ele concedeu a sina de “reinar sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre toda a Terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a Terra”. Juntamente com essa concessão, a ordem de multiplicar-se, de frutificar a Terra e sujeitá-la, (Sujeitar: definição: verbo transitivo: 1. Reduzir à sujeição ou obediência; subjugar; ter sujeito; prender; segurar. 2. Submeter para sofrer alteração ou modificações).

Ora, mas a Bíblia foi escrita, originalmente, em três idiomas: o hebraico, o aramaico e o grego. Numa compilação que se utiliza de quatro regras básicas na busca da veracidade da escrita e dos príncípios cristãos originais para o estudo dos vocábulos: 1. Lectio difficilior: variante mais improvável é aquela que pode ser original; 2. Lectio brevior: a frase mais breve tende a ser a original; 3. Lectio difformis: Dentro de um mesmo contexto, se uma frase é diferente e inovador, pode ser a original; 4. Ceterarum originem explicat: O princípio explicado acima: a variante que consegue explicar a gênesis das outras é a original.

Muito depois a Bíblia foi transcrita para o latim e ainda mais tempo depois, para o alemão e outras línguas. Isto é um fato. Como é fato também, que a Igreja Católica através de seus vários concílios ao longo dos séculos, a modificou para atender alguns interesses institucionais. Assim como a Reforma Luterana se insurgiu contra os interesses da Igreja Católica e a favor dos seus próprios.

Digressões em separado, e retomando o objetivo do texto... Apesar de existirem dois contextos e vários vieses oriundos dessa cisão da filosofia cristã para atender as necessidades espirituais de povos distintos, com origens e hábitos coletivos diversos, a presunção do domínio exclusivo sobre a Terra, palavra do gênero feminino, e sobre todos os seres viventes, nesta ordem, não se alterou nos escritos. Este ideário, embora sustentado em outras bases filosófico-religiosas é observado também em outros livros ditos sagrados.

Assim como é nas ciências, que tem sua origem na filosofia, e deixou de ser empírica quando passou a ser exclusivamente, necessariamente, experimental, com a introdução de um novo conceito: o método científico.

“O ateísmo é tão insensato e odioso à humanidade que nunca teve muitos professores.”

Pensamento de Sir Isaac Newton, contra a filosofia materialista que sobressaía no pensamento ocidental, tendo como bases a sua "mecânica newtoniana".

Não se trata aqui que afinar discurso com o clero, mas da visão iluminada de um cientista que se recusou a ter seu pensamento transformador do conhecimento existente na época a justificar outro, emergente, que priorizava o aspecto material da vida em detrimento do espiritual, mas este último sempre esteve em "xeque" desde que o homem começou a se utilizar da racionalidade em suplantação ao instinto.

Mas qual a distância precisa entre o conforto espiritual e o conforto material?

Pois as igrejas e templos, na sua suntuosidade, no modo de vida e no poder de consumo de quem as preside, não são um exemplo contraditório de que essa distância é incomensurável?

Nos demos objetivos materialmente inatingíveis, um paraíso onde tudo e todos se igualam. E onde as privações, materiais e do caráter pessoal do indivíduo não existem. Esta expectativa nos faculta a supressão dos princípios da filosofia cristã.

Como o homem, Deus foi criado à própria imagem das religiões e suas interpretações fabulosas sobre de onde viemos, como devemos viver e para onde vamos. E inexiste uma preocupação mais profunda em se utilizar da racionalidade para se questionar os motivos de estarmos aqui.

A racionalidade humana nos impele a elaborar ou absorver um conceito excludente a outro, uma escolha excludente a outra. Mas, jamais nos assegurou de que esta ou aquela seriam as necessárias à manutenção da vida na Terra, no máximo, nos proporcionou as que são mais convenientes, e a isto chamamos de adaptação.

Sob esta óptica de conveniência foi que se estabeleceram os papéis do homem e da mulher na sociedade, com base em suas origens ancestrais, onde o homem era destinado à caça e ao provento da proteção contra predadores e contra eles mesmos, e onde à mulher cabia a procriação e os cuidados com a prole. Embora atingindo um ponto em que o conhecimento acumulado pela vivência, e pelo produto do pensamento de vários renomados cientistas e filósofos do pensamento iluminado, o que colocava as mulheres na mesma condição de racionalidade dos homens, àquelas era negada ou reprimida a expressão do pensamento em áreas onde o conhecimento poderia por em risco a supremacia bíblica do macho humano.

Em sintaxe, a condição do sujeito que domina é dominar.

Falo de um tempo em que aos seres humanos do sexo feminino era proibida a participação nos estudos e discussões filosóficas e científicas, estas, estavam sujeitas aos seres humanos de sexo masculino. Assim como as religiões estiveram e estão sujeitas a princípios patriarcais. À imagem e semelhança de Deus? “Criou Deus o homem à sua imagem; a imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou.”

Cumpre-nos agora, abstrair que por um tempo demasiado longo a humanidade se privou através das instituições por ela criadas para o controle e o conforto material e espiritual do indivíduo, da perspectiva de uma existência integrada com os fatores bióticos e abióticos da Terra e da integração entre os "fatores" macho e fêmea humanos, num âmbito além da reprodução da própria espécie.

A qualidade de quem vive deveria ser deixar viver.

No entanto, o entendimento instintivo desta questão passa, indubitavelmente, pela espiritualidade de mulheres que se assumem como fonte primordial de alimento, como Gaia ou Géia ou Gê ou Terra. As mulheres que oferecem seu leite materno a um animal diferente da sua espécie, em sua maioria, não professam nenhuma religião cristã ou ciência. E se uma fêmea oferece as tetas a um animal de outra espécie, é porque são capazes de maior generosidade para com a vida do que a nossa racionalidade dogmática, pragmática e macanicista permite.

Talvez, seja um ato cristão pensar que a mesma condição de sobrevivência, "generosamente", ofertada pela Terra aos nossos ancestrais e demais animais, seja a que ela nos cobra para se manter e a nós outros.

Mas não creia, minha amiga Sara, que estou aqui a estabelecer um paradoxo, pois que ele já existe, e talvez seja muito tarde para se perceber que o machismo feminino é-nos, a nós mulheres, imensamente peculiar, e dificulta nossa visão, num plano mais alargado do que seja viver e deixar viver. Não seria uma atitude cristã tentar modificar um pensamento e um modo de vida que garante uma co-existência pacífica com todos os conflitos de nós. Talvez, tua boa vontade em discutir comigo os teus conceitos religiosos aprendidos, seja outro aspecto da generosidade, aquele que faz com que tenhamos vontade de dar a outrem a exemplificação de como estamos bem com nós mesmos do modo que somos, para que sejamos iguais em felicidade. E talvez, exista generosidade em perceber que a forma como buscamos a felicidade e o bem estar conosco, com os nossos pensamentos e nossa postura diante da vida, evidentemente, viaja por outros nortes.


Jeanne Chaves